Normalitas https://normalitas.blogfolha.uol.com.br Espanholices, maravilhas do ordinário, brotos de brócolis Sat, 04 Dec 2021 00:01:00 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 O sonho da bolota https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/10/10/o-sonho-da-bolota/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/10/10/o-sonho-da-bolota/#respond Sun, 10 Oct 2021 17:08:57 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/quimet-prato-vazio-1-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=1095 (Parte II: O Âmago)

Eu lembro que eram dias frios, e que o chão estava coberto delas. As bolotas de espinhos. Que soltavam gritos bichóvicos de agonia à medida que eu avançava, hesitante e hipnotizada, massacrando-as com minhas galochas de borracha. Solene e mórbida, eu ia pedindo desculpas.

As cúpulas das castanheiras se juntavam num abraço, e a luz filtrada sobre nós me fazia pensar em capelas marcianas, o luto da avó, alfaces hidropônicas.

Não. Sou uma mentirosa.

Porque, naquele longínquo tempo, quando minha cabecinha dura batia nos cotovelo dos adulto, minha avó ainda vivia, eu ainda não tinha visto um marciano (mas isso fica pra outro dia) e não fazia ideia de que um dia faria ideia do que são alfaces hidropônicas.

O sonho da bolota…

Agora, uma verdade: eu-pequena achava que castanha e ouriço-do-mar eram meio que a mesma coisa, do mesmo jeito que Bagu, nosso jabuti, era meio que uma tartaruga, só que de terra.

O fato é que o contraste entre a casca hostil e a maciez amadeirada das bolotas de castanhas foi pra mim uma das primeiras Pequenas Grandes Impressões De Sei Lá Quê Sobre A Vida.

A gente coletava ouriços-de-castanha nesse bosque perto do sítio dos meus avós japoneses em Piedade, interior paulista, e minha mãe preparava uma compota com essas castanhas que meu pai comia de colherada. Sinceramente, eu via mais graça em pavê de chocolate.

***
Ora, ora. Anos depois, aqui estou eu, ainda batendo a minha cabeça dura nos cotovelo dos adulto, falando como se soubesse do que tô falando sobre, quem diria, uma pequena porção de castanhas confeitadas sobre cama de foie gras num boteco barcelonês.

Inesquecível foie gras com castanhas e cogumelos do Quimet & Quimet, em Barcelona: ayyayaye (Susana Bragatto / Folhapress)

A culpa dessa microrreviravolta, já disse na parte I desse artigo, é do Anthony Bourdain. Que eu curto tirar o meu da reta e adoro uma simplificação.

Em seu livro Cozinha Confidencial, que o lançou à fama de chef-roquenroler-arretado, ele recorda uma viagem que fez quando criança à França, com os pais e o irmão.

Além de a trip virar uma école-infantil-da-boemia-criminal pro Bourdainzinho, com cigarriño entre amiguinhos franceses aos domingos e “vin ordinaire” diluído pras crianças, foi aí que ele teve seus primeiros Assombros Com A Comida/Vida.

Primeiro, por meio de uma sopa Vichyssoise a bordo do navio (“fria!”, recorda, pra seu espanto).

Depois, uma ostra. Sugá-la recém-abatida direto da concha diante dos pais, do pescador grosseiro véideguerra e do irmão pequeno, encolhido de asco, era ir contra o mundo, era ser marvado, era ser fodão. Comer aquela gosma meio-viva, meio-sexual, extraterrena era saltar ao desconhecido, ganhar superpoderes, transcender o inominável. “Everything was different now. Everything“. Pronto, eis como nasce um caráter (torrey anos de terapia com essa frase).

Assim, é fácil entender por que o Quimet & Quimet, bodega centenária localizada em um bairro popular de Barcelona, pouco mais que uma portinhola abarrotada de vinhos e produtos de mercearia boiando em bandejas de metal, ganhou o corazón do Bourdain. Ele amava Barcelona e amava esse buteco. Vejamos.

Quimet & Quimet, bodega centenária no bairro de Poble Sec, em Barcelona (Susana Bragatto / Folhapress)

Terminei o artigo anterior dessa coluna falando que o dono do bar era ríspido ou, pelo menos, antipático, comparado com o nosso espírito hospitaleiro brazilêro. Tenho um estranho fascínio por esse tipo de gente. Banquei a submissa-bajuladora: pedi uma recomendação.

E veio a primeira, sem um sorriso, mas, segundo consta, bem harmonizada: um vinho branco fresco com um “montadito” (cousas sobre uma torrada) de anchovas sobre pimiento de piquillo (espécie de pimentão vermelho assado em conserva, onipresente na culinária botequística espanhola) e coroado por uma guindilla (pimenta) curtida no vinagre.

“Montadito” de anchovas e piquillo do Quimet & Quimet (Susana Bragatto / Folhapress)

Quim, o señor supracitado, é pai do Quim, que também nos atende. O jovem é a quinta geração de Quins. Jeez.

São pouco mais de sete da noite de uma quarta. Locais e turistas vão surgindo dos buêro, formando fila e burburinho na entrada. Quim (de Joaquim, Quimet, em catalão) pai e Quim filho me explicam: tenho 45 minutos. Porque há lista de espera, e é necessário rotatividade.

Parto sem pausa pro segundo round: uma “tapa” (porção) de nêsperas (outra memória da minha infância) em calda com queijo de cabra e mais anchovas. Por cima, uma translúcida emulsão de vinagre que é dichorá de alegria. Vem também a famosa “tapa” de foie gras com compota de castanhas, algo de que nunca más me olvidaré.

Nêsperas da minha infância e tomaaaa mais anchovas no Quimet & Quimet, em Barcelona (Susana Bragatto / Folhapress)

Desta vez, peço um tinto e provo o Venta las Vacas 2015, um Ribera del Duero deliciê cujo distribuidor se chama, auspiciosamente, “uvas felices”.

“Quando o bar abriu [em 1914], essa região já era urbanizada”, conta Quim-pai. “Nossos fregueses eram gente do bairro: trabalhadores portuários, pequenas oficinas — todas essas lojas que agora estão fechadas ou são casas pertenciam a pequenos negócios… eram açougueiros, ferreiros, lavadeiras, sastres (alfaiates)…”.

O Quimet & Quimet, no mesmo endereço desde o princípio, seguia a estrutura das vivendas da zona: na parte da frente, o pequeno negócio; na parte de trás, o lar. “Toda a minha família nasceu aqui, e eu cresci nesta casa”, conta.

Quimet & Quimet from the sarjeta (Susana Bragatto / Folhapress)

Segue-se uma “tapa” de carrillada de cerdo ibérico (bochecha de porco) com fios de ovos, pimentão e outras simples maravilhas. A carne é overmacia, puxada no vinagre.

Bourdain, lembra Quim, apareceu no bar pela primeira vez lá pelos idos dos 2000, trazido por um amigo em comum, o chef estrela Michelin catalão Ferran Adrià, até hoje frequentador do local.

“Hoje em dia é normal, está por toda parte, mas naquela época eram uns três ou quatro ‘gatos’ que tinham essa relação roquenrol e aventureira com a comida”, comenta Quim. “Aquela geração de chefs tinha um caráter muito mais humilde”.

“A influência desses personagens foi tremenda, mas não só sobre o Quimet & Quimet, e sim sobre Barcelona como um todo”, diz. “O ambiente hoje em dia mudou muito com o Covid, mas naquela época havia turistas que vinham à cidade para ver a Sagrada Família e turistas que vinham expressamente para comer em Barcelona”.

Aliás, comenta, isso acontecia em toda a Espanha. “As pessoas vinham tanto para provar a nova cozinha quanto a clássica. Esses chefs também tinham de característico jamais desprezar a cozinha de sempre –ao contrário, valorizaram-na muito. Foram inovadores até nisso”.

Como muitas bodegas, o Quimet não tem cozinha, e tudo, preparado diante de nossozóio, sai de latas e vidros em conserva –mas QUE conservas.

Quim, quarta geração familiar à frente do Quimet & Quimet, em Barcelona (Susana Bragatto / Folhapress)

Enquanto meus cotovelos esfriam contra o metal prateado do balcão, diante de mim se desenrola uma ininterrupta coreografia tira&põe de bandejinhas coloridas dentro de uma vitrine de vidro.

Em cada uma, empilhados, curtidos, mergulhados, curados, escabechados ou caramelizados, anchovas do cantábrico, cecina (carpaccio de atum), pulpos recheados, mexilhões do tamanho do dedão do pé do Tostão, pimientos, berberechos, salmões, queijos, azeitonas gordas, bacalhau, nêsperas em calda, favas asturianas, alcachofras, camarões, fios de ovos, ovas, ostras, sigo?, o foie, QUE FOIE É ESSE, MINHA GENTE.

Acepipes dus dioses no Quimet & Quimet, Barcelona (Susana Bragatto / Folhapress)

“Aqui, com o tipo de comida que servimos, que não tem nada a ver com a cozinha que praticavam esses chefs que nos visitavam, sempre nos apoiaram e valorizaram muito”, conta Quim.

E como era o Bourdain no Quimet?

“Muito cordial e simples… mas [essas são pessoas que] buscam mais o conceito: sei lá, quem sabe não falemos de família ou de futebol ou música; mas falamos de comida”.

A essa altura eu tô concentrada numa porção de alcachofras com pasta de pimentão e caviar e outra de pupurri de frutos do mar, incluindo uma muy fálica navaja que tento inutilmente desfalificar pra foto.

Melhor mexilhão em lata da vida desta que vos escreve (Susana Bragatto / Folhapress)

Pergunto ao Quim do que o Bourdain mais gostava no bar. “Le encantaba el pimiento“, dispara, rápido.

“É um contraste, porque o Ferran (Adrià) não gostava de pimentão”, lembra. Mas tanto faz: no fim, “o que importa é a qualidade do produto. Trata-se de buscar a melhor matéria-prima, a elaboração, e luego a combinação pode ser melhor ou pior. Mas, se o produto não é bom, se acabó Hola!“.

E, assim, sem nenhuma palavra mais, Quim-pai me abandona pra se ocupar, com sua seca e eficaz amabilidade, de outros fregueses recém-chegados.

Ah, o charme catalão. Diretos como um jab de direita numa liquidação da Zara. O amor sem tapinha no ombro, mas amor.

E assim vai se encerrando o ato dois da noite Frinder co’s Quim: apaixonar-se.

Primeiro, uma sensação crescente de conforto e familiaridade vai inundando o corazón. O vinho ajuda, claro. Também ao observar o movimento, pouco a pouco o visitante vai se integrando, sentindo-se mais próximo dos outros comensais. À minha esquerda, há um cara que eu juro que é famoso. Ou não. A gente se entreolha e sorri, confraternização de bar é assim em qualquer canto do mundis. Nunca vou saber quem é, mas, de verdade, não me interessa.

Só há tempo para um epílogo, que meu tempo-no-bar já acaba –e tinha que incluir mais castanhas.

De saída, um casal de idosos passa por mim gritando ao Quim-pai: “que maravilha de castanhas com vinagre! O que que é aquilo! Adeu, adeu!“. Ato seguido, lá tô eu comendo castanhas com vinagre. E queijos de proximidad sem conservantes acompanhados de uma gelatina de vinho moscatel. Eu queria outra taça de tinto pra acompanhar, mas o Quim-pai é taxante: nem pensar. Se quer algo com o doce, vai tomar o que eu der.

Sim, senhor. Cacilda. Obediente, provo uma sidra moderadamente ácida e nem de longe borbulejante e genérica como as Xereser de minha juventud (me desculpem os expertos).

Queijos com gelatina de moscatel do Quimet & Quimet, Barcelona (Susana Bragatto / Folhapress)
Sidra artesanal no Quimet & Quimet, Barcelona (Susana Bragatto / Folhapress)

***

“Nunca foi minha intenção ser um repórter, um crítico, um porta-voz”, declarou Bourdain uma vez. “Sou um contador de histórias. Eu vou pros lugares, eu volto. Eu conto o que esses lugares me fizeram sentir”.

Deu a minha hora. Já vou, já vou. Só me deixam terminar a sobremesa rapidim, mas ó, déiz minutiño y tchau tchau tchauuuu.

Semi-enxotada, de pança cheia e com uns vin na cabeça, sento na sarjeta do outro lado da rua com meu amigo, que chegou no meio da velada pra me ajudar ca comilanzza. Enquanto fumo um cigarrinho roubado (parei, mas hoje não), contemplo o burburinho incessante diante daquela portinha de moldura vermelha que me devolveu as castanhas da minha infância.

Bourdain, Bourdain. Tô contigo.

 

(Siga o Normalitas no Instagram)*

*aos que me seguiam em @normalitasblog: tiraram a pemba da minha conta do ar. Provisoriamente, compartilho a conta acima

]]>
0
Este artigo não é sobre um aperitivo de foie gras com castanhas https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/10/03/este-artigo-nao-e-sobre-um-aperitivo-de-foie-gras-com-castanhas/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/10/03/este-artigo-nao-e-sobre-um-aperitivo-de-foie-gras-com-castanhas/#respond Sun, 03 Oct 2021 18:40:29 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/quimet-foie-com-castanhas-1-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=1071 (Parte I: O Entorno)

Pronto, o elefante gourmet na sala.

Isso que eu conto aconteceu quase uma semana atrás. Mas ainda persiste em minha memória, fresca y aromática, a combinação (pra mim) inédita de sabores, arrematada por finas lâminas de champignon com seiláque bruxarias.

Tudo culpa do Anthony Bourdain, penso.

Sou uma p* pagapau. Naquele dia, quando saí de casa, tava ansiosa como se fosse trombar um match do Frinder pela primeira vez.

Desci na estação de metrô Parallel, zona oeste de Barcelona, microtaquicárdica.

Na saída, passo pela famosa sala Apolo, um espaço de espetáculos y nightclub onde já tocou de Smashing Pumpkins a (com todíssimo respeito) bandas de amigos.

Ali perto, avisto também um edifício fechado onde, até a pandemia, havia um clube de striptease. Ecos da época de ouro da avenida del Paralelo e seu burburinho cultural, com cinemas, teatros, circos, contrastes. Até hoje, o quarteirão ainda guarda um arzim meio Moulin Rouge versão remelexo-Augusta.

Aaah, Barcelowna. Nesse bairro popular que se chama Poble Sec (literalmente, “Vila Seca”), tem de tudo. Vai vendo.

Alguém tomando um pico de heroína na maior tranquilidade, enquanto o entardecer dourado acaricia cabeciñas brancas de anciões locais a passeio.

Turistas rubios (loiros) olhando pro céu enquanto arrastam maletas ou tiram fotos, alheios ao cara vomitando num canto imundo, o rosto congestionado de sofrimentos.

(É. E tem gente que pensa que aqui nazoropa num tem disso)

Lojinhas minúsculas oferecendo fotos pra documentos, capinha pra celular, frutas, bocadillos de chorizo e dois coquetéis por um.

Passo por uma mina tranquilamente lendo um livro escorada numa árvore da calçada. Uma senhora com pinta de 105971086 cirurgias plásticas, os peitos brilhantes saltando de um apertado corset verde. E uns jovens altíssimos gritando em árabe entre si, com seus relógios dourados, perfumes contundentes e moletons oversize onde se lê

Balenciaga Balenciaga Balenciaga.

E eu, com meu vestidinho amarelo e minha sandalinha de couro fazendo tec tec no asfalto sujo.

Na esquina do meu destino, um Burger Kingui. O nome da rua é de um poeta pré-romântico chamado Cabanyes. Mas isso foi ideia dos franquistas. Eles deram uma “disfarçada” no nome original, que fazia referência a outro Cabanyes –este, um herói militar catalão nas batalhas contra o exército espanhol de Felipe IV no século 17.

***

Quando finalmente chego onde tinha que chegar, bizoiando do lado oposto da calçada, brota em minh’alma o primeiro julgamentozinho negativo: putz, não é o que eu esperava. (E o que eu esperava? Glamour, tapetes vermelhos, faisão à Provençal (que p* é essa?!)?)

Expectativas, essas sandalinhas de couro fazendo tec tec no asfalto sujo.

Quimet & Quimet (esse é o nome do meu date-destino) é um dos bares mais icônicos de Barcelona. Já era popular antes mesmo de virar parada turística obrigatória nos anos 2000, quando foi super elogiado pelo chef rocker Anthony Bourdain, de passagem pela cidade.

Essa pérola da gastronomia botetística está afincada no lugar onde tem que estar, desde 1915, quando o primeiro Quim (“Quimet”, em catalão) de uma longa linhagem de boteco owners servia bebidas e comidas para os trabalhadores da vizinhança obreira de Poble Sec.

Fachada do bar Quimet & Quimet, em Barcelona. A noite tá só começando e já tem fila (Susana Bragatto / Folhapress)

Bourdain, que foi ao Quimet & Quimet muitas vezes (a primeira, sendo levado por seu amigo local, o super estrelado chef Michelin Ferran Adrià) era fã da chamada “cozinha de mercado” ou, em catalão, “cuina de mercat”: basicamente, comida simples e deliciosa, com ingredientes frescos e de qualidade. Barcelona era um de seus lugares favoritos no mundo.

Explorar um lugar novo, pra ele, era o grande tesão. Não saber. Dar tudo errado. Nunca dar errado. Surpreender-se, surpreender. Enjoy the ride. Etc.

“Tenho uma tatuagem no braço que diz, em grego antigo: ‘Não tenho certeza de nada'”, escreveu ele uma vez, no seu característico estilo f**-se. “Acho que é um bom princípio operacional. Adoro aparecer num lugar pensando que vai ser de um jeito e tendo todo tipo de preconceitos estúpidos e, mesmo que de uma forma dolorosa e embaraçosa, verificar que estou errado. Se você conseguir aprender um pouco mais sobre o mundo a cada dia, já é uma vitória (it’s a win)”.

***

Imbuída desse espírito bourdiano, respiro fundo e atravesso a rua. Em geral, até que me considero valiente, mas hoje me sinto meio sem jeito de entrar no meu date-destino sozinha. Tec, tec.

A fachada de madeira pintada de vermelho profundo emoldura um ambiente diminuto, quase um cubículo, com umas três ou quatro micromesinhas onde alguns começam a se reunir em pé com seus drinques e tapas (pequenas porções de comidiñas). O bar acaba de abrir para o turno da noite.

As paredes estão cobertas de latas e vidros de conserva e garrafas de vinho e cerveja e uísque inglês até o teto, onde baila um ventilador desses bailantes tipo Martin Sheen pirando no hotel em Apocalypse Now.

Eu logro conseguir um lugarzinho no balcão, onde esparramo meus cotovelos, ladeada à esquerda por um homem que devora um prato de anchovas e cremes profusos e, à direita, por duas turistas que brindam com cava rosada enquanto pedem um negócio que parece pêssego em calda –com anchovas.

O dono do bar é ríspido, daquele jeito catalão que magoa uma sensibilidade brazilêra. Já tô com medo dele.

(Continua….)

(Siga o Normalitas no Instagram)*

*aos que me seguiam em @normalitasblog: tiraram a pemba da minha conta do ar. Provisoriamente, compartilho a conta acima 🙂

]]>
0
Com 80% de vacinados, Espanha espera uma discreta alta de casos no outono https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/09/17/com-80-de-vacinados-espanha-espera-uma-discreta-alta-de-casos-no-outono/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/09/17/com-80-de-vacinados-espanha-espera-uma-discreta-alta-de-casos-no-outono/#respond Fri, 17 Sep 2021 20:47:08 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/café-e-morangos-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=1051 No bar, de manhã. Portio café bar, diante do maravilindo parque do Clot, Barcelona, pra quem está na área. Comum, pros olhos comuns.

Sento lá pra desfrutar de um americano antes de ir ao trabalho. Desfrutar, essa palavra que se usa tanto aqui. Sol ardido, aquecimento global mediterrâneo. Gente local acha engraçado eu ser brasileira e dizer que o calor aqui ultimamente consegue ser pior que São Paulo metida no engarrafamento da Vinte e Três de Maio ao meio-dia de um verão.

Também, os espanhóis não sabem o que é engarrafamento –digo yo, não sem um orgulho imbecil.

Mas, voltando ao bar.

O dono, wapo (guapo, bonitón) senhor de olhos verdes cansados, sempre atende com simpatia. Parece uma dessas naturezas tipo deixa-rolar que não retêm o dia de ontem –embora o canto caído das pálpebras me sugira nostalgia.

Olhaí, esse é o Bar das Digressões.

Oito e meia da manhã e dois caras no terraço ao meu lado com encardidas camisetas da labuta mandando ver na cerveja. Passam de falar do Pepe que botou foto nova de um carrão no Facebook, como terá conseguido grana pra um negócio tão caro, no lo veo, para se recomendar mutuamente… comidas.

— Fresas (morangos) en la crema catalana, tío. En trocitos. Te lo digo: tienes que probar.

Que delicadeza, esses dois hômi de voz trovejante e máscara pendurada no queixo falando de morangos. “Crema catalana” é o crème brûlée regional (e alguém estará bufando de raiva com essa comparação).

Apuro o ouvido, sou uma comadre buscando humanezas. E dicas culinárias.

— … También los caracoles están buenísimos. (mania de caracóis o povo tem aqui, um dos poucos pratos típicos que não balançam meu corazón). Y las gambas (camarões), con alioli casero.

O restaurante, diz o nome do restaurante!

***

A Espanha registrou hoje (17) a menor taxa de novos contágios de Covid do último ano: 2.333 casos. Já é o terceiro país com mais vacinados do planeta, atrás apenas dos Emirados Árabes Unidos e Portugal, com quase 80% da população coberta (76% com a pauta completa).

Desde o final de junho, quando o governo nos libertou do uso da máscara nas ruas, ocorreu aqui um fenômeno interessante: a maioria optou por continuar usando a máscara. Eu incluída.

Às vésperas do outono no hemisfério norte, a alta taxa de vacinação na Espanha não significa pouco. Espera-se um minipico de casos com a chegada do frio, mas nem de longe parecida com as seis ondas anteriores. A campanha começará agora a aplicar uma terceira dose na população de risco, como pacientes de câncer, portadores de Síndrome de Down com mais de 40 anos, idosos em asilos e imunodeprimidos.

Comentava com a minha irmã, que vive em São Paulo, que a polícia aqui está usando uma tática extrema para dissolver multidões de jovens que, ultimamente, com a flexibilização das medidas sanitárias, têm se reunido para os “botellones” (festas na rua regadas a árco). Com a ajuda do corpo de bombeiros, tasca mangueira de água nos críos.

–Se fosse no Brasil, não ia funcionar –comentou ela. — Iam pensar que é Carnaval!

Parc del Clot, seu lindo (Susana Bragatto / Folhapress)

No bar do José Luís, que é como se chama o señor de olhos líquidos, a conversa entre nossos dois heróisdujour deriva para temas sindicais, sem que eu consiga descobrir de que restaurante estão falando. Quase me levanto, histérica, e grito “quero sabeeer!”, mas faz calor e eu tô atrasada. Volto ao meu café, ao meu dia comum, nesse bar tão corriqueiro, nessa hora nascente da manhã.

–José Luís! Un par de carajillos*! Y un par de chupitos**!

Oito e meia da manhã, um bar qualquer, e eu sonhando com um chupito myself.

Ou co’a cobertura crocante de caramelo da crema catalana, que a gente quebra com a colher e abocaña com o creme de ovos y leite, aromatizado com canela, baunilha e raspas de limão ou laranja (ou anis, na versão do über chef Michelin catalão Ferrán Adrià).

* café com árco (rum, Bailey’s, uísque…)
** dose de árco

(Siga o Normalitas no Instagram)

]]>
0
A terceira onda e a frutinha embriagante https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/01/15/a-terceira-onda-e-a-frutinha-embriagante/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/01/15/a-terceira-onda-e-a-frutinha-embriagante/#respond Fri, 15 Jan 2021 21:34:59 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/el-oso-y-el-madroño-maria-castellano-menor-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=459 Nããããooooo!
Eu quis des-ler, mas não deu.

Esses dias, em meio a notícias sobre a voluptuosa frente fria que cobriu a Espanha de branco e imagens de españoles fazendo guerrinha de neve em Madri…

Eu vi cozóio que a terra há de transformar em tomatiños cherry.

Em caixa alta, em manchetes de todas as cores, a expressão fatídica, até pouco tempo atrás mera quimera: LA TERCERA OLA (a terceira onda).

Só eu que penso sempre no Pedro e o Lobo (versão truncada on acid)?

Pausa pra um pouco de neve e um cão feliz na Puerta de Toledo, em Madri, janeiro de 2021 (Reprodução / David Canales)

Taí. De um dia pro outro, alguém decidiu que a Espanha vem vivendo a Terceira Onda da pandemia desde o Natal, quando o afrouxamento do protocolo anticovidiano teria favorecido a expansão do vírus.

Nem a vacinação, que começou no último dia 27 de dezembro, pode (por ora) conter o que já virou cíclico: expansão de contágios > colapso de hospitais > samba do crioulo doido de restrições novas a cada semana/10 dias/2 semanas, quase sempre anunciadas de última hora > incerteza, teorias, protestos, mais manchetes > rinse, cry, repeat.

Quanto à nova mutação “britânica” do vírus, não só chegou ao território español em sua forma “importada” como já foram detectados casos autóctones, sem vínculo epidemiológico com o Reino Unido. A Mais Nova Teoria Provisória sugere que essa nova cepa circula entre nós há pelo menos um mês.

Zaragoza coberta de neve (Reprodução / Nerea Peña)

No entanto, são muito poucos os britCovid detectados até agora, mormente graças a uma feliz descoberta: um kit de PCR da marca Thermo Fischer que indica resultados (positivos) diferentes segundo a mutação do vírus. Portanto: a culpa da Terceira Onda Espanhola é de-nóis-mermo, não da cepa 70% mais contagiosa dos brexitados.

Assim, pelo menos até final de janeiro, seguimos sem bares e restaurantes a partir das 15h30, muitos comércios fechados, toque de recolher e confinamentos perimetrais. É o lobo, é o lobo.

***

Mudando de bicho: lembrei da história sobre a frutinha alcoólica do Mediterrâneo por causa de uma foto que vi hoje.

Mostra a famosa escultura conhecida como “El Oso y el madroño” (o urso e o medronho), símbolo heráldico de Madri, afincada na praça da Puerta del Sol, a mais importantchi da cidade. No caso, rodeada da neve assaz inusual dos últimos dias.

“El oso y el madroño”, escultura de Antonio Navarro Santafé. Puerta del Sol, Madri, janeiro de 2021 (Reprodução / David Canales)

Há quem afirme que o urso na realidade é uma ursa, símbolo de fortaleza e fertilidade. Poderia inclusive ser uma referência à constelação da Ursa Menor, por conta das 7 estrelas na bandeira de Madri. Até manifestação feminista já houve pra redefinir o sexo do urso, que, por sinal, permanece escondido debaixo do basto pelo metálico.

Quanto à frutinha comida pel@ urs@, é parente das “berries” e colore os bosques mediterrâneos ibéricos durante as estações frias.

Conhecida pelo menos desde a Antiguidade (com um possível “cameo”, por exemplo, na história dos doze trabalhos de Hércules, quando ele mata o gigante Gerião e o sangue deste se transforma num arbusto de frutiñas madroñeras), até hoje é popularmente utilizada para preparar licores, sidras, vinhos, vinagres, “salsas” e marmeladas.

Madroño in natura (Reprodução)

Durante a Idade Média, o madroño (que em português de PrutugaL se chama MEDRONHO ಠ‿ಠ ) se popularizou por suas propriedades medicinais. Naquela época, diziam que podia curar até a peste. Hoje em dia, estudos incipientes indicam que pode ser legal pra prevenir doenças cardiovasculares, por exemplo.

No século 20, deixou de ser vendida em mercados. Agora o lance pra encontrar o madroño (vaya nombre danado) é basicamente se aventurar no mato entre setembro e dezembro.

Vi meu primeiro arbusto de madroño durante um passeio pelos bosques de Sant Mateu, perto de Barcelona, no “Parc de la Serralada Litoral”. Eu, o namorildis e um amigo paramos maravilhados (ok, eu) diante de um arbusto pintadim de vermelho naquela tarde dourada outonal (ah: o madroño é um dos poucos bichos plantíficos que pode dar flor e fruto ao mesmo tempo, um esplendorrr).

Meu amigo, um italiano do norte muy blasé e Sabido em Cultura Popular, comentou: dizem que comer demais essa frutiña dá enxaqueca e embriaga. Passou por nós uma mulher com cara de This Bosque Is Mine, que nos disse: que nada, podem comer sem miedo!

Posso atestar que não fiquei bêbzda, infelizmente. Mas depois soube que a fama é real: o fruto do madroño começa seu processo de fermentação alcoólica ainda na árvore, e quando a gente come já virou mezzo cachaça-de-frutinha.

Daí seu nome em latim: Arbutus unedo, de “unum edo” –comer um só. Ou alguns de seus apelidos mundão afora, como “borrachines” (de “borracho”, bêbado). @ urs@ de Madri, señoras y señoretes, está bêbad@, bêbad@ de frutinh@s silvestres…

(Siga o Normalitas no Instagram)

]]>
0
Mais um meteorito, por favor https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2020/12/18/mais-um-meteorito-por-favor/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2020/12/18/mais-um-meteorito-por-favor/#respond Fri, 18 Dec 2020 23:27:35 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/turrones-2-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=415 PRÓLOGO QUEIXOSO

Nesta última quinta (17) o governo espanhol anunciou as mais novas restrições depois das mais novas restrições coronísticas para as festas de fim de ano.

Entre elas, os restaurantes e bares vão ter horários reduzidos (de novo) e lotação máxima ainda mais limitada (de novo), e por consequência houve panelaço contra o governo (de novo).

Entrementes, um conhecido me procura pelo fofobuqui: será que eu sei de algum emprego para seu primo que acaba de chegar in town?

Meu amigo –tenho vontade de dizer –, nesta tierra combalida por invasões víricas num tem Natal, num tem trabalho. Não este ano de mil anos de doismilevintedepoisdohôminacruz.

A não ser, quem sabe, em uma das 148078 startups de comida a domicílio florescendo qual torrones no polo tecnológico de Barcelona.

 

TORRONES: SOBRE AMÊNDOAS, FINALMENTE

A cousa aqui tá tão complicada que hoje eu quero falar de amêndoas.

Mais exatamente, de torrones.

Diz a hiihi-istória que o “turrón” espanhol nasceu em algum lugar da Alicante medieval, sob influência da cultura árabe.

A base, diferente da nossa versão brazilêra de amendoim e frutas cristalizadas, é de amêndoas, açúcar e mel.

Esse parente do torrone italiano e do nougat macio francês é uma instituição espanhola, exportado pros quatro cantos do globo e presença obrigatória na mesa de Natal.

(Ouvindo esta lindíssima canção no repeat)

Época de Natal ativa meus mixed feelings sobre doces espanholis e a Hegemonia da Amêndoa.

A Espanha tem um lance com amêndoas. Aqui se cultiva mais de uma centena de variedades. Pra doce é popular a marcona. O país é o terceiro maior produtor mundial, atrás de Austrália e Califórnia. É amêndoa a dar co’ pau. Natural que usem “a saco” (= muito, profusamente) em doces e em pratos como o ajoblanco, aka gaz(s)pacho branco, sopa fria original da região de Málaga.

Em zonas onde há produção de olivas, também se aproveitam as mesmas máquinas sacudidoras (!) para a colheita de amêndoas. Migrar de uma produção a outra é algo que tem atraído mais e mais produtores locais.

Como a oliveira, a amendoeira pode chegar a viver um século ou mais. E, quando o “almendro” dá flor, é bonito paka. Parecem as cerejeiras-sakuras lá de casa, na distante y saudosa Grande São Paulus.

Pausa para uma foto poética de flor de amendoeira (Reprodução)

***

Junto com o frio do outono español, a amêndoa emerge em todas partes, brotando em gôndolas e ilhas glicósicas de todo santo y não-santo supermercado.

Por exemplo, os supracitados turrones. Numa mesa de Natal española pode até faltar panetone (que aqui também se come, privilegiando-se as receitas não-industrializadas de “pastelerías” ou “obradores”), mas turrón, nem pensar.

São tantos tipos quanto cores del arco-íris. Alguns levam caramelo, outros, ovos, chocolate, canela, limão; mas todos, absolutamente todos que se prezem, contêm amêndoas amêndoas amêndoas.

((Por sinal, acho que se você falar amêndoas amêndoas amêndoas umas 15 vezes olhando pro espelho segurando uma vela alguma coisa mágica deve acontecer))

Não satisfeitos, os espanhóis também inventaram polvorones, bombons de amêndoas igualmente ubíquos nessa época do ano. Parecem uma paçoca gordinha bolotuda. Têm sua graça calórica, desde que com um líquido potável à mão, evidentemente. Mesma coisa pros “mantecados”, que sempre levam banha de porco e, em algumas variedades, amêndoas amêndoas amêndoas.

Pra completar o domínio almendrístico, nesta época além do mais se come muito marzipan, aqui chamado de mazapán, em suas muitas versões locais. Na Catalunha e em outros lugares da Espanha, por exemplo, é popular o panellet, coberto de pinhões. Os locais comem o dito no dia-de-todos-os-santos, junto com as castanhas assadas e os “boniatos” (batata-doce).

***

Fato número 1 sobre tais doces de amêndoas: em sua maioria são simples, simplérrrimos. O torrone clássico ou “turrón de Alicante” é possivelmente o mais parecido com o que se vende aí no Brazel. Leva amêndoas inteiras tostadas, clara de ovo e mel. Um quebra-queixo do caráleo.

Outra variedade muy conhecida é o turrón de Jijona, que leva o nome de onde tradicionalmente é feito, um pueblecito famoso de Alicante. Parece uma paçoca cremosa, feita à base de uma mistura homogênea de amêndoas moídas, mel e clara de ovo.

Um de meus preferidos é o de gema queimada –o equivalente em barra da famosa “crema catalana”, versão catalã do creme brûlée (embora eu esteja provavelmente ferindo orgulhos ao fazer essa comparação, ó vida).
***

Meteoritos, hay que comerlos (Susana Bragatto / Folhapress)

Minha mãe quando era xovem perdeu dente pra uma rapadura. Espero não repetir a ancestralidade com um turrón.

Fico pensando nos seres humanos mais velhos: imagino que terão que se decantar por versões mais macias. Apesar de que suas dentaduras provavelmente são mais fortes que meus dentes.

Na casa do sogrón, um Pai de Família estilo paternal-maternal-sanguíneo, desses que cozinham pra todo mundo, te cumprimentam com um tapaço nas costas e vão botando vinho na tua taça até cê dizer xjxxxjjjá tá bxxbom graxiaaass, é ele quem pilota os torrones de sobremesa, com o café (e maixx viñoou), sobre uma sólida e bem vivida tábua de madeira.

Pilotar os tabletes de torrones é absolutamente necessário, especialmente os duros. Ele pega a faca afiada: não pra cortar. Pra marretar com o cabo.

Comemos os (des)troços. Vestígios gamaglobulinos meteóricos de civilizações extraterrenas. De amêndoas amêndoas amêndoas. Me sinto em Saturno por um momento, entre anéis e pedras flutuantes do Chapolin. A concentração etílica suavemente me conduz à tentação de fazer um comentário maroto em voz alta, mas meu restinho de sobriedade e um tanto de overdose de açúcar me detêm, e eu estendo a mão para mais um trocinho de meteorito. Não pense nas calorias, Susana, que é (quase) Natal, apesar de tudo.

(Siga o Normalitas no Instagram)

]]>
0
O curioso conselho anti-Covid de um marroquino em Barcelona https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2020/10/15/o-curioso-conselho-anti-covid-de-um-marroquino-em-barcelona/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2020/10/15/o-curioso-conselho-anti-covid-de-um-marroquino-em-barcelona/#respond Thu, 15 Oct 2020 11:04:52 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2020/10/marrocos-tagine-1-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=243 — E como estão as coisas no Brasil, com o vírus e aquele Bolsonaro?

Mohammed é marroquino e vive há anos em Barcelona. É um dos 761 mil de sua nacionalidade com residência espanhola –de longe, a maior comunidade de estrangeiros no país. Pra se ter uma ideia, são nove vezes mais numerosos que os brasileños em tierras ibéricas (somos pouco mais de 84 mil, segundo o censo mais recente de 2020).

Alto, com seus 50-e-algo, Mohammed fala castelhano fluente. Sempre aprendo palavras com ele. Trabalha com controle de pragas em edifícios e chega com um sorrisón no rosto. Gosta de um dedo de prosa, eu também.

E, como todos que cruzam meu caminho, sabe quem é Bolsonaro, e menciona seu nome com um pesar cúmplice na voz. E corrige: não pergunta do vírus, quer saber da economia.

— Bom, Mohammed, cê sabe. Qué te voy a contar… o Brasil não é a Europa.

Justo nesse dia, me deu pregui desse assunto, gente. Todo mundo me pergunta, somos famosos. E não por nossas margens plácidas. Sendo uma prosaica brasileña vivendo na gringa, virei porta-voz acidental de assuntos-internacionais-toopiniquins-de-orelhada-de-jornal. Isso ou alvo de olhares compassivos edulcorados com comentários lamentosos sobre Bolsillonaro e certas catástrofes não-naturais.

(Exceção do garçom argentino no café francês de outro dia, bolsonarista ferrenho (!), que entrou numa superpiromaníaca discussão com um mineiro desavisado que ousou questioná-lo enquanto sorvia seu chazinho de menta. Eu, sádica, fiquei só observando)

Perdón, precisava desabafar. Passou, passou.

— E como estão as coisas em Marrocos, Mohammed? Alguém de Marrakech me disse que os contágios de coronavírus estão disparando de novo –devolvo, enquanto ele substitui uma caixinha de papel com uma barata freeze-frame de patinhas pra cima por outra limpinha que pega de sua maleta marrom tipo gato félix.

Ele me confirma, diz que estão em 2.000 a 3.000 casos novos por dia, numa incidência acumulada de 100 por 100 mil habitantes –por ora, consideravelmente menor que na Europa ocidental, onde estamos entrando em modus confinamentus de nuevo (inclusive na Catalunha, onde a partir de hoje fecham bares e restaurantes por 15 dias). Por ora.

— Mas lá em Marrocos a mortalidade é baixa. Sabe por quê? [suspense] Porque todo mundo cozinha e come em casa.

Silêncio meditativo. Hm.

— Bom, eu também como em casa e tive coronavírus –brinco. É uma terça pela manhã, faz frio e eu ainda não tomei café. Vagamente penso, em livre associação de semi-ideias: como era mesmo a (divina, transcendental) receita de cavalinha à escabeche da minha mãe?

— É, mas você tá bem, né? Em Marrocos a gente não come na rua. Não come fritura como aqui. É tudo feito no vapor. E com muitas especiarias boas para a imunidade, como o gengibre, a cúrcuma…

Passamos a falar de receitas. De repente me deu uma vontade louca de comer um bom tagine, que provei pela primeira vez quando estive mochilando in Marruecos.

Tagines, cozidos típicos marroquinos. Todos aprovados in situ por esta que vos escreve (Susana Bragatto / Folhapress)

O prato, que se pode encontrar em cada esquina, é basicamente um cozido de legumes e carnes, que podem ser acompanhados de tubérculos, arroz ou cuscuz, feito em fogo baixo em um típico pote de barro com tampa cônica.

— Eu tenho síndrome do intestino irritável, me conta Mohammed. Faço tudo ao vapor. ¨Adobo¨ o frango (olhaí palavrinha legal: aqui as gentes não temperam a carne, adubam), ponho alecrim, gengibre, depende do dia vou mudando o tempero. Quase sem sal, que não posso. Acrescento verduras, maçã, abóbora, o que tiver no momento.

Maçã? É, maçã, pera, o que houver, diz. Anoto mentalmente a ideia de botar fruta no cozido.

— Ok, vocês comem em casa, mas os mercados estão cheios, suponho?

Sim.

— E as pessoas não usam máscara, suponho?

Muito pouco.

— E então…?

— Come em casa, Susana. Come em casa!

E se despede com o tal sorrisón, prometendo me ajudar a encontrar uma boa panela de barro pra fazer tagine aqui em Barcelona.

(Siga o Normalitas no Instagram)

]]>
0