Normalitas https://normalitas.blogfolha.uol.com.br Espanholices, maravilhas do ordinário, brotos de brócolis Sat, 04 Dec 2021 00:01:00 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 É pra ontem: a febre dos supermercados ‘fantasmas’ na Espanha https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/11/07/e-pra-ontem-a-febre-dos-supermercados-fantasmas-na-espanha/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/11/07/e-pra-ontem-a-febre-dos-supermercados-fantasmas-na-espanha/#respond Sun, 07 Nov 2021 16:51:03 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/propaganda-das-sopas-garriga-Barcelona-detalhe-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=1158 — Tô meio deprê.

— Estamos todos.

É a morte da Marília Mendonça. Ou a mudança de estação. O Borso, a crise astral, Mercúrio retrógrado, a falta de grana, envelhecer. E a pandemia. É aquele ex, hormônios, neurotransmissores, chocolate, a saudade de ___________ [preencher com tua nostalgia favorita]. Ter muito, ter pouco. E tudo, ou nada disso.

Dizem que pior que o medo de morrer é o medo de viver.

Não podemos evitar, como humanoides, a incessante Busca de Sentido, sempre acompanhada da sua hermana Análise de Riscos. Por sobrevivência ou neurose, somos máquinas de buscar respostas e encontrar problemas. Prever, prevenir. Imaginar. Inventar. Solucionar. Controlar. Melhorar. Rinse, repeat, insônia.

Essa sanha imparável por explicar e aperfeiçoar tudo, claro, nos trouxe até aqui (eu, no caso, “curada” de um enfermidade que a esta altura poderia ter me eliminado del planeta).

Também nos transformou em espécimes ultraprotegidos das intempéries e dos olhos alheios, vivendo em caixotes equipados com tudo pra esquentar, esfriar, banhar, liquidificar, entreter e fazer as batatas mais sequinhas do mundo com Air Fryer.

E em bichos peculiares que escondem e enfeitam genitais, desenvolvem corcovas precoces por Whatsappitis e Instagramitis e pulam parriba e pabaixo em bichos metálicos movidos a rodas, asas, engrenagens, C12H26, electricityy–yyy, cantarolando Dua Lipa e achando a miséria da Edith Piaf poética.

Tudo isso, acompanhado do tesão incontrolável por palavras como Conforto, Remoto, Facilidade, Conveniência, Rapidez.

Um dos 18975489 filhotes desse thread: os supermercados fantasmas de Barcelona.

Quando ouvi falar deles pela primeira vez, há pouco tempo, fui curiosear porque o nome me pareceu gracioso.

Um tipo de “dark store”, os tais supermercados fantasmas são uma das últimas modas do q-commerce (de “quick”, rápido). E vão além: não basta já a entrega no mesmo dia à la Amazon. Tem que ser já. Agora. Me entrega tutti os hortifruti que eu nem sei que vou querer daqui a 5 minutos. Adivinhem meus pensamentu, logaritmos de meodeos.

A empresa turca Getir, que comprou a startup barcelonesa Blok e abriu 19 pontos de operação na Espanha (13 em Madrid, 6 em Barcelona) em 2021, promete entregar o que você quiser na porta da tua casa em 10 minutos. Tipo um “Daki” daqui. Como reclame, argumenta: “Cada minuto importa”. Num vamo negar. Já tô clicando, rápido.

Os supermercados fantasmas não são mais do que galpões de armazenamento e distribuição de produtos, com logísticas descentralizadas que barateiam o custo e agilizam o serviço.

Convenientes, sem dúvida. Getir funciona 24/7 até a meia-noite, e sexta e sábado até a 1h da manhã. Prometem entregas em até 10 minutos. Pro caso de você precisar urgente daquela pizza de pepperoni ou de uma banana nanica de madrugada (no questions here).

Por um lado, o modelo de negócio é muy atrativo e tende a se alastrar rápido, na esteira de outros serviços de entrega como a gigantesca Glovo, maior arrecadação de fundos da história startupeira da Espanha, e cujas indefectíveis maletas amarelas hoje em dia transportam até maconha a domicílio –inadvertidamente, claro.

Por outro, já houve atritos com vizinhanças. Como no bairro residencial de Les Corts, em Barcelona –o lançamento de uma unidade da Getir em uma rua de pedestres onde há duas escolas gerou protestos dos moradores em outubro.

Note bem, não é que a maior parte dessa gente não gostaria de ter sua compra em minutos na porta de casa. Mas todos temiam um aumento considerável de tráfego de motos elétricas e bikes dos “riders”/entregadores.

Depois de dois meses de negociação com intervenção da prefeitura, a empresa se comprometeu a transformar o local em um espaço de formação de pessoal.

Resta saber quanto tempo o governo vai demorar pra regulamentar a atividade, antes que os supermercados fantasmas se espalhem qual vírus e seja tarde demais –problema que a cidade turística de Barcelona viveu com o Airbnb e a subsequente especulação imobiliária.

Enquanto isso, vou refletindo sobre o que poderia precisar daqui a 10 minutos. “Pense nisso, a vida passa demasiado rápido”, alerta o app da Getir. Obrigada pelo toque. “Por isso te entregamos a compra em minutos: para que você possa investir o tempo no que realmente importa”.

Entregam abraços?

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O pato, o palácio e a Padilha https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/10/26/o-pato-o-palacio-e-a-padilha/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/10/26/o-pato-o-palacio-e-a-padilha/#respond Tue, 26 Oct 2021 17:28:16 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/game-of-thrones-em-Alcázar-Sevilha-300x215.png https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=1135 Quando eu vim pra Espanha, anos atrás, pairava sobre minha cabeça um bololô de fantasias. Imaginava ruas coalhadas de laranjeiras e touradas, ciganas, paellas e personagens do Almodóvar gritando “olé” e fazendo clicclic com sapatos de flamenco na calçada (me deixem com mi imaginación, ostiii).

Hoje em dia, meus estereótipos se diversificaram ou, pelo menos, regionalizaram-se. Agora sei que o catalão tem fama de pão-duro, que os galegos são considerados meio tontos e arredios, que os madrilenhos se acham o centro do universo e os andaluzes………

… Bom. Pelo menos a parte das laranjeiras é verdade.

Recentemente, num arroubo mochileiro pós-pandemia, visitei Sevilha, coração da terra andaluza. Foi minha primeira vez no sul espanhol, uma das zonas mais pobres e também mais brilhantemente ricas em cultura e história do país.

Peguei fila pra entrar no famoso palácio de Alcázar, epítome da salada histórica mediterrânea ao longo do último milênio.

Esse impressionante complexo de edifícios e jardins apresenta uma fusão lôka de mil estilos, consequência de sua sucessiva dominação por diferentes povos-y-tendências: islâmico (da época de sua fundação, na Alta Idade Média), mudéjar (um estilo transicional entre muçulmano e cristão), gótico-barroco-renascentista-brutalista-etc.

Nesse lugar único y portentoso, gravaram alguma temporada do Game of Thrones (ambientaram aí o reino de Dorne, na quinta temporada) e cenas do mítico Lawrence da Arábia (1962).

Cena de Game of Thrones ambientada no palácio de Alcázar, em Sevilha (Reprodução)

Em Sevilha, dei um pulo também no Archivo de las Índias, onde se guarda um dos dois originais do Tratado de Tordesilhas –aquele em que portuguischis e españholis passam a régua no mapa múndi então conhecido e dizem, tu fica com a esquerda, eu com a direita (o outro original está na Torre do Tombo, em Lisboa).

Eu queria ter virado notícia como a brazilêra que invadiu o Archivo e devorou o Tratado a dentadas (egofantasias) enquanto aproveita pra gritar ForaBolfffso (imaginem os papeizinhos voando qual paçoca Amor, que legauu), mas infelizmente tal docu se encontrava no sótão quando eu fui, guardadinho para ser preparado para uma exposição, junto com outros preciosos documentos.

Pena, gente. Fica pra próxima, tá.

***

O palácio de Alcázar, erguido durante a Alta Idade Média e depois reapropriado e recauchutado em 34579 estilos umas 2480798 vezes ao longo da história, é a principal atração turística de uma cidade que, depois de ser um longevo centro de poder e disputas políticas da Península, vive hoje em dia do turismo.

Lindo. Imponente. Interessante. E, ao mesmo tempo —

Vou dizer. Nas ruas de Sevilha, não vi toureiro, não vi a cigana de Bizet (Carmen, a ópera, é ambientada na cidade). É tudo lindo e cheio de passados monumentais? É. A comida é boa e farta, as “tapas” (porçõezinhas de comidiñas) são fenomenais? Sim. Um dia conto mais. A Giralta, a catedral, o castelo….? Sí, sí. Na famosa Plaza de España, criada para a Exposição Iberoamericana de 1929, gravaram Star Wars e mais Lawrence da Arábia (1962)? Yea. É uma cidade magaviosa. Mas.

Talvez seja complexo de colonizada. Ou mais ou menos colonizada, que ao mesmo tempo eu sou descendente de italiano e japonês, ou seja, cheguei na festa tupiniquim muito tarde, e todos os meus antepassados se ferraram pra fazer a vida no Brazel, como outros muitos etc.

Todo aquele luxo, toda aquela pompa régia. Quem pagou? O pato e o palácio?

Lembro de uma conversa com um senhor português durante uma road trip em Portugal. Pra meu choque, ele afirmou que seu país tava economicamente na m… porque “deixou” o Brasil e suas outras colônias virarem independentes.

Pois é, ora poix, nada fixe.

Em lugar de argumentar, também lembro que optei por guardar silêncio e balançar meu pezinho na borda da piscina do hotel, vendo como fazia círculos na água.

Por isso, me emocionei, mas não tanto quanto imaginava, diante da visão do ostensivo-magnífico palácio de Alcázar, até hoje utilizado pela realeza espanhola como hotel privê em suas visitas à cidade (é o palácio real em atividade mais antigo do mundo etc).

Pátio das Donzelas no palácio de Alcázar, Sevilha (Susana Bragatto / Folhapress)

Balançou um pouco mais meu corazón, por exemplo, a antiguidade das muralhas defensoras remanescentes e seus líquens e rodapés pré-ibéricos.

Ou Itálica, sítio arqueológico perto de Sevilha onde o imperador Trajano nasceu e mosaicos romanos sobrevivem entre oliveiras. Tá certo que tal assentamento, o primeiro fundado pelos romanos na Hispania, era basicamente um super resort de gente bacana do Império Romano, feito, again, à base de suor escravo e subjugação de muuuchos povos… mas que chata sou, não?

Minto. Dentro de Alcázar, um lugar em particular me chamou mucho a atenção: a cisterna (aljibe) subterrânea do palácio, onde, diz a lenda, banhava-se a María de Padilla, amante do rey Don Pedro I de Castilla (aka O Cruel ou O Justiceiro, dependendo do retratista).

Jardins do palácio de Alcázar, Sevilha (Susana Bragatto / Folhapress)

Sim, essa Maria Padilha. Fonte de inspiração para uma das pombagiras mais famosas dos cultos afrobrasileiros, e aqui na Espanha também retratada como mulher livre e ousada para seu tempo. Como a Carmen, a hipnótica cigana enroladora de cigarros da ópera sevilhana de Bizet (que, por sua vez, curiosidade, nunca esteve em Sevilha).

Conhecido como “los baños de doña María de Padilla”, esse espelho de água criado na época almohade (lá pelo século 12) reflete as abóbadas góticas que o abrigam, construídas entre os séculos 12 e 13, gerando um olho mágico de simetrias onde, sim, adoraríamos imaginar a Padilha lavando o sovaco, sob a mirada apaixonada de seu Pedruco.

Banhos de Maria Padilha no palácio de Alcázar, Sevilha (Susana Bragatto / Folhapress)

Pena que provavelmente é só uma fantasia. Ou não. Na época de Pedro e Padilha, o mundo cristão não era muito fã de banho, mas é verdade que Sevilha já possuía então muitos banhos coletivos ou hammams –ao lado dos pátios interiores e fontes de água, um dos grandes legados da influência árabe na Península.

O pátio de doña María é da mesma época. O aspecto atual guarda pitadas do terremoto de 1755 (o mesmo que derrubou Lisboa) e afrescos renascentistas nas paredes laterais, atualmente em recuperação. Belíssima pedida para um selfie dentro de um majestowwwso castelo castellano.

***

Na saída, detrás de uns explodentes lírios brancos no jardim, escuto um jardineiro muito idoso comentando com uma turista que essas flores eram utilizadas como psicoativas, ao que a senhora abanava a cabeça, não sei se entendendo nada ou tudo demais. Olhei à minha volta e voltei atrás. Minha paixão pelo castelo coronado de lendas pintou no epílogo….

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O sonho da bolota https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/10/10/o-sonho-da-bolota/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/10/10/o-sonho-da-bolota/#respond Sun, 10 Oct 2021 17:08:57 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/quimet-prato-vazio-1-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=1095 (Parte II: O Âmago)

Eu lembro que eram dias frios, e que o chão estava coberto delas. As bolotas de espinhos. Que soltavam gritos bichóvicos de agonia à medida que eu avançava, hesitante e hipnotizada, massacrando-as com minhas galochas de borracha. Solene e mórbida, eu ia pedindo desculpas.

As cúpulas das castanheiras se juntavam num abraço, e a luz filtrada sobre nós me fazia pensar em capelas marcianas, o luto da avó, alfaces hidropônicas.

Não. Sou uma mentirosa.

Porque, naquele longínquo tempo, quando minha cabecinha dura batia nos cotovelo dos adulto, minha avó ainda vivia, eu ainda não tinha visto um marciano (mas isso fica pra outro dia) e não fazia ideia de que um dia faria ideia do que são alfaces hidropônicas.

O sonho da bolota…

Agora, uma verdade: eu-pequena achava que castanha e ouriço-do-mar eram meio que a mesma coisa, do mesmo jeito que Bagu, nosso jabuti, era meio que uma tartaruga, só que de terra.

O fato é que o contraste entre a casca hostil e a maciez amadeirada das bolotas de castanhas foi pra mim uma das primeiras Pequenas Grandes Impressões De Sei Lá Quê Sobre A Vida.

A gente coletava ouriços-de-castanha nesse bosque perto do sítio dos meus avós japoneses em Piedade, interior paulista, e minha mãe preparava uma compota com essas castanhas que meu pai comia de colherada. Sinceramente, eu via mais graça em pavê de chocolate.

***
Ora, ora. Anos depois, aqui estou eu, ainda batendo a minha cabeça dura nos cotovelo dos adulto, falando como se soubesse do que tô falando sobre, quem diria, uma pequena porção de castanhas confeitadas sobre cama de foie gras num boteco barcelonês.

Inesquecível foie gras com castanhas e cogumelos do Quimet & Quimet, em Barcelona: ayyayaye (Susana Bragatto / Folhapress)

A culpa dessa microrreviravolta, já disse na parte I desse artigo, é do Anthony Bourdain. Que eu curto tirar o meu da reta e adoro uma simplificação.

Em seu livro Cozinha Confidencial, que o lançou à fama de chef-roquenroler-arretado, ele recorda uma viagem que fez quando criança à França, com os pais e o irmão.

Além de a trip virar uma école-infantil-da-boemia-criminal pro Bourdainzinho, com cigarriño entre amiguinhos franceses aos domingos e “vin ordinaire” diluído pras crianças, foi aí que ele teve seus primeiros Assombros Com A Comida/Vida.

Primeiro, por meio de uma sopa Vichyssoise a bordo do navio (“fria!”, recorda, pra seu espanto).

Depois, uma ostra. Sugá-la recém-abatida direto da concha diante dos pais, do pescador grosseiro véideguerra e do irmão pequeno, encolhido de asco, era ir contra o mundo, era ser marvado, era ser fodão. Comer aquela gosma meio-viva, meio-sexual, extraterrena era saltar ao desconhecido, ganhar superpoderes, transcender o inominável. “Everything was different now. Everything“. Pronto, eis como nasce um caráter (torrey anos de terapia com essa frase).

Assim, é fácil entender por que o Quimet & Quimet, bodega centenária localizada em um bairro popular de Barcelona, pouco mais que uma portinhola abarrotada de vinhos e produtos de mercearia boiando em bandejas de metal, ganhou o corazón do Bourdain. Ele amava Barcelona e amava esse buteco. Vejamos.

Quimet & Quimet, bodega centenária no bairro de Poble Sec, em Barcelona (Susana Bragatto / Folhapress)

Terminei o artigo anterior dessa coluna falando que o dono do bar era ríspido ou, pelo menos, antipático, comparado com o nosso espírito hospitaleiro brazilêro. Tenho um estranho fascínio por esse tipo de gente. Banquei a submissa-bajuladora: pedi uma recomendação.

E veio a primeira, sem um sorriso, mas, segundo consta, bem harmonizada: um vinho branco fresco com um “montadito” (cousas sobre uma torrada) de anchovas sobre pimiento de piquillo (espécie de pimentão vermelho assado em conserva, onipresente na culinária botequística espanhola) e coroado por uma guindilla (pimenta) curtida no vinagre.

“Montadito” de anchovas e piquillo do Quimet & Quimet (Susana Bragatto / Folhapress)

Quim, o señor supracitado, é pai do Quim, que também nos atende. O jovem é a quinta geração de Quins. Jeez.

São pouco mais de sete da noite de uma quarta. Locais e turistas vão surgindo dos buêro, formando fila e burburinho na entrada. Quim (de Joaquim, Quimet, em catalão) pai e Quim filho me explicam: tenho 45 minutos. Porque há lista de espera, e é necessário rotatividade.

Parto sem pausa pro segundo round: uma “tapa” (porção) de nêsperas (outra memória da minha infância) em calda com queijo de cabra e mais anchovas. Por cima, uma translúcida emulsão de vinagre que é dichorá de alegria. Vem também a famosa “tapa” de foie gras com compota de castanhas, algo de que nunca más me olvidaré.

Nêsperas da minha infância e tomaaaa mais anchovas no Quimet & Quimet, em Barcelona (Susana Bragatto / Folhapress)

Desta vez, peço um tinto e provo o Venta las Vacas 2015, um Ribera del Duero deliciê cujo distribuidor se chama, auspiciosamente, “uvas felices”.

“Quando o bar abriu [em 1914], essa região já era urbanizada”, conta Quim-pai. “Nossos fregueses eram gente do bairro: trabalhadores portuários, pequenas oficinas — todas essas lojas que agora estão fechadas ou são casas pertenciam a pequenos negócios… eram açougueiros, ferreiros, lavadeiras, sastres (alfaiates)…”.

O Quimet & Quimet, no mesmo endereço desde o princípio, seguia a estrutura das vivendas da zona: na parte da frente, o pequeno negócio; na parte de trás, o lar. “Toda a minha família nasceu aqui, e eu cresci nesta casa”, conta.

Quimet & Quimet from the sarjeta (Susana Bragatto / Folhapress)

Segue-se uma “tapa” de carrillada de cerdo ibérico (bochecha de porco) com fios de ovos, pimentão e outras simples maravilhas. A carne é overmacia, puxada no vinagre.

Bourdain, lembra Quim, apareceu no bar pela primeira vez lá pelos idos dos 2000, trazido por um amigo em comum, o chef estrela Michelin catalão Ferran Adrià, até hoje frequentador do local.

“Hoje em dia é normal, está por toda parte, mas naquela época eram uns três ou quatro ‘gatos’ que tinham essa relação roquenrol e aventureira com a comida”, comenta Quim. “Aquela geração de chefs tinha um caráter muito mais humilde”.

“A influência desses personagens foi tremenda, mas não só sobre o Quimet & Quimet, e sim sobre Barcelona como um todo”, diz. “O ambiente hoje em dia mudou muito com o Covid, mas naquela época havia turistas que vinham à cidade para ver a Sagrada Família e turistas que vinham expressamente para comer em Barcelona”.

Aliás, comenta, isso acontecia em toda a Espanha. “As pessoas vinham tanto para provar a nova cozinha quanto a clássica. Esses chefs também tinham de característico jamais desprezar a cozinha de sempre –ao contrário, valorizaram-na muito. Foram inovadores até nisso”.

Como muitas bodegas, o Quimet não tem cozinha, e tudo, preparado diante de nossozóio, sai de latas e vidros em conserva –mas QUE conservas.

Quim, quarta geração familiar à frente do Quimet & Quimet, em Barcelona (Susana Bragatto / Folhapress)

Enquanto meus cotovelos esfriam contra o metal prateado do balcão, diante de mim se desenrola uma ininterrupta coreografia tira&põe de bandejinhas coloridas dentro de uma vitrine de vidro.

Em cada uma, empilhados, curtidos, mergulhados, curados, escabechados ou caramelizados, anchovas do cantábrico, cecina (carpaccio de atum), pulpos recheados, mexilhões do tamanho do dedão do pé do Tostão, pimientos, berberechos, salmões, queijos, azeitonas gordas, bacalhau, nêsperas em calda, favas asturianas, alcachofras, camarões, fios de ovos, ovas, ostras, sigo?, o foie, QUE FOIE É ESSE, MINHA GENTE.

Acepipes dus dioses no Quimet & Quimet, Barcelona (Susana Bragatto / Folhapress)

“Aqui, com o tipo de comida que servimos, que não tem nada a ver com a cozinha que praticavam esses chefs que nos visitavam, sempre nos apoiaram e valorizaram muito”, conta Quim.

E como era o Bourdain no Quimet?

“Muito cordial e simples… mas [essas são pessoas que] buscam mais o conceito: sei lá, quem sabe não falemos de família ou de futebol ou música; mas falamos de comida”.

A essa altura eu tô concentrada numa porção de alcachofras com pasta de pimentão e caviar e outra de pupurri de frutos do mar, incluindo uma muy fálica navaja que tento inutilmente desfalificar pra foto.

Melhor mexilhão em lata da vida desta que vos escreve (Susana Bragatto / Folhapress)

Pergunto ao Quim do que o Bourdain mais gostava no bar. “Le encantaba el pimiento“, dispara, rápido.

“É um contraste, porque o Ferran (Adrià) não gostava de pimentão”, lembra. Mas tanto faz: no fim, “o que importa é a qualidade do produto. Trata-se de buscar a melhor matéria-prima, a elaboração, e luego a combinação pode ser melhor ou pior. Mas, se o produto não é bom, se acabó Hola!“.

E, assim, sem nenhuma palavra mais, Quim-pai me abandona pra se ocupar, com sua seca e eficaz amabilidade, de outros fregueses recém-chegados.

Ah, o charme catalão. Diretos como um jab de direita numa liquidação da Zara. O amor sem tapinha no ombro, mas amor.

E assim vai se encerrando o ato dois da noite Frinder co’s Quim: apaixonar-se.

Primeiro, uma sensação crescente de conforto e familiaridade vai inundando o corazón. O vinho ajuda, claro. Também ao observar o movimento, pouco a pouco o visitante vai se integrando, sentindo-se mais próximo dos outros comensais. À minha esquerda, há um cara que eu juro que é famoso. Ou não. A gente se entreolha e sorri, confraternização de bar é assim em qualquer canto do mundis. Nunca vou saber quem é, mas, de verdade, não me interessa.

Só há tempo para um epílogo, que meu tempo-no-bar já acaba –e tinha que incluir mais castanhas.

De saída, um casal de idosos passa por mim gritando ao Quim-pai: “que maravilha de castanhas com vinagre! O que que é aquilo! Adeu, adeu!“. Ato seguido, lá tô eu comendo castanhas com vinagre. E queijos de proximidad sem conservantes acompanhados de uma gelatina de vinho moscatel. Eu queria outra taça de tinto pra acompanhar, mas o Quim-pai é taxante: nem pensar. Se quer algo com o doce, vai tomar o que eu der.

Sim, senhor. Cacilda. Obediente, provo uma sidra moderadamente ácida e nem de longe borbulejante e genérica como as Xereser de minha juventud (me desculpem os expertos).

Queijos com gelatina de moscatel do Quimet & Quimet, Barcelona (Susana Bragatto / Folhapress)
Sidra artesanal no Quimet & Quimet, Barcelona (Susana Bragatto / Folhapress)

***

“Nunca foi minha intenção ser um repórter, um crítico, um porta-voz”, declarou Bourdain uma vez. “Sou um contador de histórias. Eu vou pros lugares, eu volto. Eu conto o que esses lugares me fizeram sentir”.

Deu a minha hora. Já vou, já vou. Só me deixam terminar a sobremesa rapidim, mas ó, déiz minutiño y tchau tchau tchauuuu.

Semi-enxotada, de pança cheia e com uns vin na cabeça, sento na sarjeta do outro lado da rua com meu amigo, que chegou no meio da velada pra me ajudar ca comilanzza. Enquanto fumo um cigarrinho roubado (parei, mas hoje não), contemplo o burburinho incessante diante daquela portinha de moldura vermelha que me devolveu as castanhas da minha infância.

Bourdain, Bourdain. Tô contigo.

 

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*aos que me seguiam em @normalitasblog: tiraram a pemba da minha conta do ar. Provisoriamente, compartilho a conta acima

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Este artigo não é sobre um aperitivo de foie gras com castanhas https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/10/03/este-artigo-nao-e-sobre-um-aperitivo-de-foie-gras-com-castanhas/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/10/03/este-artigo-nao-e-sobre-um-aperitivo-de-foie-gras-com-castanhas/#respond Sun, 03 Oct 2021 18:40:29 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/quimet-foie-com-castanhas-1-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=1071 (Parte I: O Entorno)

Pronto, o elefante gourmet na sala.

Isso que eu conto aconteceu quase uma semana atrás. Mas ainda persiste em minha memória, fresca y aromática, a combinação (pra mim) inédita de sabores, arrematada por finas lâminas de champignon com seiláque bruxarias.

Tudo culpa do Anthony Bourdain, penso.

Sou uma p* pagapau. Naquele dia, quando saí de casa, tava ansiosa como se fosse trombar um match do Frinder pela primeira vez.

Desci na estação de metrô Parallel, zona oeste de Barcelona, microtaquicárdica.

Na saída, passo pela famosa sala Apolo, um espaço de espetáculos y nightclub onde já tocou de Smashing Pumpkins a (com todíssimo respeito) bandas de amigos.

Ali perto, avisto também um edifício fechado onde, até a pandemia, havia um clube de striptease. Ecos da época de ouro da avenida del Paralelo e seu burburinho cultural, com cinemas, teatros, circos, contrastes. Até hoje, o quarteirão ainda guarda um arzim meio Moulin Rouge versão remelexo-Augusta.

Aaah, Barcelowna. Nesse bairro popular que se chama Poble Sec (literalmente, “Vila Seca”), tem de tudo. Vai vendo.

Alguém tomando um pico de heroína na maior tranquilidade, enquanto o entardecer dourado acaricia cabeciñas brancas de anciões locais a passeio.

Turistas rubios (loiros) olhando pro céu enquanto arrastam maletas ou tiram fotos, alheios ao cara vomitando num canto imundo, o rosto congestionado de sofrimentos.

(É. E tem gente que pensa que aqui nazoropa num tem disso)

Lojinhas minúsculas oferecendo fotos pra documentos, capinha pra celular, frutas, bocadillos de chorizo e dois coquetéis por um.

Passo por uma mina tranquilamente lendo um livro escorada numa árvore da calçada. Uma senhora com pinta de 105971086 cirurgias plásticas, os peitos brilhantes saltando de um apertado corset verde. E uns jovens altíssimos gritando em árabe entre si, com seus relógios dourados, perfumes contundentes e moletons oversize onde se lê

Balenciaga Balenciaga Balenciaga.

E eu, com meu vestidinho amarelo e minha sandalinha de couro fazendo tec tec no asfalto sujo.

Na esquina do meu destino, um Burger Kingui. O nome da rua é de um poeta pré-romântico chamado Cabanyes. Mas isso foi ideia dos franquistas. Eles deram uma “disfarçada” no nome original, que fazia referência a outro Cabanyes –este, um herói militar catalão nas batalhas contra o exército espanhol de Felipe IV no século 17.

***

Quando finalmente chego onde tinha que chegar, bizoiando do lado oposto da calçada, brota em minh’alma o primeiro julgamentozinho negativo: putz, não é o que eu esperava. (E o que eu esperava? Glamour, tapetes vermelhos, faisão à Provençal (que p* é essa?!)?)

Expectativas, essas sandalinhas de couro fazendo tec tec no asfalto sujo.

Quimet & Quimet (esse é o nome do meu date-destino) é um dos bares mais icônicos de Barcelona. Já era popular antes mesmo de virar parada turística obrigatória nos anos 2000, quando foi super elogiado pelo chef rocker Anthony Bourdain, de passagem pela cidade.

Essa pérola da gastronomia botetística está afincada no lugar onde tem que estar, desde 1915, quando o primeiro Quim (“Quimet”, em catalão) de uma longa linhagem de boteco owners servia bebidas e comidas para os trabalhadores da vizinhança obreira de Poble Sec.

Fachada do bar Quimet & Quimet, em Barcelona. A noite tá só começando e já tem fila (Susana Bragatto / Folhapress)

Bourdain, que foi ao Quimet & Quimet muitas vezes (a primeira, sendo levado por seu amigo local, o super estrelado chef Michelin Ferran Adrià) era fã da chamada “cozinha de mercado” ou, em catalão, “cuina de mercat”: basicamente, comida simples e deliciosa, com ingredientes frescos e de qualidade. Barcelona era um de seus lugares favoritos no mundo.

Explorar um lugar novo, pra ele, era o grande tesão. Não saber. Dar tudo errado. Nunca dar errado. Surpreender-se, surpreender. Enjoy the ride. Etc.

“Tenho uma tatuagem no braço que diz, em grego antigo: ‘Não tenho certeza de nada'”, escreveu ele uma vez, no seu característico estilo f**-se. “Acho que é um bom princípio operacional. Adoro aparecer num lugar pensando que vai ser de um jeito e tendo todo tipo de preconceitos estúpidos e, mesmo que de uma forma dolorosa e embaraçosa, verificar que estou errado. Se você conseguir aprender um pouco mais sobre o mundo a cada dia, já é uma vitória (it’s a win)”.

***

Imbuída desse espírito bourdiano, respiro fundo e atravesso a rua. Em geral, até que me considero valiente, mas hoje me sinto meio sem jeito de entrar no meu date-destino sozinha. Tec, tec.

A fachada de madeira pintada de vermelho profundo emoldura um ambiente diminuto, quase um cubículo, com umas três ou quatro micromesinhas onde alguns começam a se reunir em pé com seus drinques e tapas (pequenas porções de comidiñas). O bar acaba de abrir para o turno da noite.

As paredes estão cobertas de latas e vidros de conserva e garrafas de vinho e cerveja e uísque inglês até o teto, onde baila um ventilador desses bailantes tipo Martin Sheen pirando no hotel em Apocalypse Now.

Eu logro conseguir um lugarzinho no balcão, onde esparramo meus cotovelos, ladeada à esquerda por um homem que devora um prato de anchovas e cremes profusos e, à direita, por duas turistas que brindam com cava rosada enquanto pedem um negócio que parece pêssego em calda –com anchovas.

O dono do bar é ríspido, daquele jeito catalão que magoa uma sensibilidade brazilêra. Já tô com medo dele.

(Continua….)

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*aos que me seguiam em @normalitasblog: tiraram a pemba da minha conta do ar. Provisoriamente, compartilho a conta acima 🙂

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Leonard Cohen e seu coração espanhol https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/09/26/leonard-cohen-e-seu-coracao-espanhol/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/09/26/leonard-cohen-e-seu-coracao-espanhol/#respond Sun, 26 Sep 2021 20:26:01 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/Leonard-Cohen-CBC-Still-Collection_-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=1060 Um gentleman, seu chapéu. Suzanne. E o aroma de cedro espanhol.

Leonard Cohen, o bardo canadense, teria completado 87 anos no último 21 de setembro.

Até outro dia, não sabia da relação de amor que tinha ele com a Espanha.

Y entonces topei com seu discurso de agradecimento de 2011, quando veio a Oviedo para receber o Prêmio Príncipe de Astúrias, concedido a personalidades e instituições de destacada expressão nos campos das artes, humanidades, ciências e cooperação internacional.

Outros homenageados ao longo dos 40 anos do prêmio incluem gente tão diversa quanto Woody Allen, Mikhail Gorbachev, Nelson Mandela e Oscar Niemeyer.

“Depois de comer todos os chocolates e amendoins do minibar do hotel, escrevi umas linhas. Não creio que tenha que recorrer a elas”, começa Cohen, pra meu delírio interior. Chocolates, minduins.

“Sempre senti uma certa ambiguidade sobre um prêmio de poesia”, continua. “A poesia vem de um lugar que ninguém controla, que ninguém conquista; me parece charlatão aceitar um prêmio para uma atividade que eu não controlo. Se eu soubesse de onde vêm as boas canções, I’d go there more often”.

Eu poderia transcrever o discurso do hômi e call it a day. Que, né. Mas o bonito para esta coluna vem de uma anedota que ele nos facilita, ocorrida mais de meio século atrás, e que conecta seu corazón às terras españolas.

***

Um dia, Cohen moleke de vinteepoucos passeava pelo parque perto da casa da mãe em Montreal quando topou com um español tocando violão flamenco.

Esse encontro fortuito-serendipítico-e-acaso-existe-acasoenlavie? mudaria Tudo.

Naqueles tempos, conta o próprio, Cohen malemal surrava um violãozim entre amigos, e nem passava por sua cabeça considerar-se músico, muito menos um cara com voz artística própria.

De repente, ouvindo o español dedilhar escalas de emociones ancestrais, como uma andorinha desavisada fritada em voo por um relâmpago (imagino yo), pensou: É ISSO.

Fechou um preço e um horário com o fulano, jovem como ele, e se encontraram no dia seguinte na casa da mãe do Cohen. Lição número um: #fail, guitarra 3 x Cohen zero.

Depois de um par de dias, com algo de sofrência e persistência, conta ele que conseguiu mais ou menos entender a progressão harmônica de seis acordes “em que muitas, muitas canções flamencas se baseiam”, e que se tornaria uma das inspirações seminais para suas composições.

No quarto dia, o espanhol não veio. Cohen ligou pra pensão onde o cara tava ficando: tinha tirado a própria vida.

Alguns anos depois, Cohen visitaria a famosa loja de instrumentos e luthieria da família Conde, então situada na rua Gravina, número 7, em Madri.

Aí compraria o que seria seu companheiro de vida e palcos, um violão flamenco Conde número 26, feito de cedro espanhol, braço de cipreste brasileiro e pequenas partes de ébano, numa conjuração de madeiras de “pelo menos 30 anos”, como explica a página web. Hoje em dia, um modelo similar pode ser adquirido por uns módicos 11 mil euros (quase R$ 70 mil) plus impostos.

O local atualmente é administrado por Felipe Conde e pode ser visitado na rua Arrieta, 4, no centro de Madri.

Cohen não é o único famoso a ter um modelo Conde. A ele se somam David Byrne, Bob Dylan, Lenny Kravitz, Paco de Lucía (que criou um modelo Conde exclusivo) e Al Di Meola, entre outros.

Às vésperas de botar seu indefectível chapéu trilby e vir receber o tal prêmio peposo das xxtrela, conta, ele despiu a guitarrinha Conde de seu case e levantou-a. “Parecia feita de hélio –era tão leve”, diz.

“Eu a aproximei do meu rosto (…) e inalei a fragrância da madeira viva. You know that wood never dies”.

“Aspirei o aroma do cedro, tão fresco como no dia em que adquiri o violão. E uma voz pareceu me dizer, ‘você é um homem velho e nunca agradeceu; nunca trouxe sua gratidão de volta à terra onde essa fragrância nasceu’. Por isso, venho aqui esta noite para agradecer a essa terra e a alma dessa gente que me deu tanto…”

***

Gente, estou emotiva. Depois de duas (, duas) garrafas de Albariño compartilhadas com uma amiga querida em uma “finca” (granja, sítio) na montanha de Collserola, perto de Barcelona, e acompanhada de robustos javalis que capinavam a relva à nossa volta (há muchos na região), é fácil perder –ou encontrar –lampejantes perspectivas.

Mentira que eu não sabia do caso de amour do Cohen com a España. Ele deu à filha o nome de Lorca por causa do poeta granadino (de Granada) Federico García Lorca. Escreveu a linda “Take This Waltz” como uma homenagem/”guiño” ao poema “Pequena Valsa Vienense”.

E, sempre que podia, contava que Lorca “arruinou” sua vidiña adolescente de 15 anos quando ele topou com sua obra num sebo em Montreal.

“Eu li as linhas,

‘Por el arco de Elvira
voy a verte pasar
para sufrir tus muslos (coxas)
y ponerme a llorar’.

“Passei as décadas seguintes”, contou Cohen, em algum concerto num dia longínquo de passadas translações, “passei as décadas seguintes buscando os arcos de Elvira, buscando aquelas coxas, e buscando minhas lágrimas”…

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Com 80% de vacinados, Espanha espera uma discreta alta de casos no outono https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/09/17/com-80-de-vacinados-espanha-espera-uma-discreta-alta-de-casos-no-outono/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/09/17/com-80-de-vacinados-espanha-espera-uma-discreta-alta-de-casos-no-outono/#respond Fri, 17 Sep 2021 20:47:08 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/café-e-morangos-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=1051 No bar, de manhã. Portio café bar, diante do maravilindo parque do Clot, Barcelona, pra quem está na área. Comum, pros olhos comuns.

Sento lá pra desfrutar de um americano antes de ir ao trabalho. Desfrutar, essa palavra que se usa tanto aqui. Sol ardido, aquecimento global mediterrâneo. Gente local acha engraçado eu ser brasileira e dizer que o calor aqui ultimamente consegue ser pior que São Paulo metida no engarrafamento da Vinte e Três de Maio ao meio-dia de um verão.

Também, os espanhóis não sabem o que é engarrafamento –digo yo, não sem um orgulho imbecil.

Mas, voltando ao bar.

O dono, wapo (guapo, bonitón) senhor de olhos verdes cansados, sempre atende com simpatia. Parece uma dessas naturezas tipo deixa-rolar que não retêm o dia de ontem –embora o canto caído das pálpebras me sugira nostalgia.

Olhaí, esse é o Bar das Digressões.

Oito e meia da manhã e dois caras no terraço ao meu lado com encardidas camisetas da labuta mandando ver na cerveja. Passam de falar do Pepe que botou foto nova de um carrão no Facebook, como terá conseguido grana pra um negócio tão caro, no lo veo, para se recomendar mutuamente… comidas.

— Fresas (morangos) en la crema catalana, tío. En trocitos. Te lo digo: tienes que probar.

Que delicadeza, esses dois hômi de voz trovejante e máscara pendurada no queixo falando de morangos. “Crema catalana” é o crème brûlée regional (e alguém estará bufando de raiva com essa comparação).

Apuro o ouvido, sou uma comadre buscando humanezas. E dicas culinárias.

— … También los caracoles están buenísimos. (mania de caracóis o povo tem aqui, um dos poucos pratos típicos que não balançam meu corazón). Y las gambas (camarões), con alioli casero.

O restaurante, diz o nome do restaurante!

***

A Espanha registrou hoje (17) a menor taxa de novos contágios de Covid do último ano: 2.333 casos. Já é o terceiro país com mais vacinados do planeta, atrás apenas dos Emirados Árabes Unidos e Portugal, com quase 80% da população coberta (76% com a pauta completa).

Desde o final de junho, quando o governo nos libertou do uso da máscara nas ruas, ocorreu aqui um fenômeno interessante: a maioria optou por continuar usando a máscara. Eu incluída.

Às vésperas do outono no hemisfério norte, a alta taxa de vacinação na Espanha não significa pouco. Espera-se um minipico de casos com a chegada do frio, mas nem de longe parecida com as seis ondas anteriores. A campanha começará agora a aplicar uma terceira dose na população de risco, como pacientes de câncer, portadores de Síndrome de Down com mais de 40 anos, idosos em asilos e imunodeprimidos.

Comentava com a minha irmã, que vive em São Paulo, que a polícia aqui está usando uma tática extrema para dissolver multidões de jovens que, ultimamente, com a flexibilização das medidas sanitárias, têm se reunido para os “botellones” (festas na rua regadas a árco). Com a ajuda do corpo de bombeiros, tasca mangueira de água nos críos.

–Se fosse no Brasil, não ia funcionar –comentou ela. — Iam pensar que é Carnaval!

Parc del Clot, seu lindo (Susana Bragatto / Folhapress)

No bar do José Luís, que é como se chama o señor de olhos líquidos, a conversa entre nossos dois heróisdujour deriva para temas sindicais, sem que eu consiga descobrir de que restaurante estão falando. Quase me levanto, histérica, e grito “quero sabeeer!”, mas faz calor e eu tô atrasada. Volto ao meu café, ao meu dia comum, nesse bar tão corriqueiro, nessa hora nascente da manhã.

–José Luís! Un par de carajillos*! Y un par de chupitos**!

Oito e meia da manhã, um bar qualquer, e eu sonhando com um chupito myself.

Ou co’a cobertura crocante de caramelo da crema catalana, que a gente quebra com a colher e abocaña com o creme de ovos y leite, aromatizado com canela, baunilha e raspas de limão ou laranja (ou anis, na versão do über chef Michelin catalão Ferrán Adrià).

* café com árco (rum, Bailey’s, uísque…)
** dose de árco

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O assobio ancestral dos canários https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/09/10/o-assobio-ancestral-dos-canarios/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/09/10/o-assobio-ancestral-dos-canarios/#respond Fri, 10 Sep 2021 20:27:04 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/silbo-gomero3-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=1044 Estávamos num hotelzinho rural na perdida y maravilinda cidade de Juià, no Baix Empordà, serra catalã.

Na mesa do café, entre jamones ibéricos e uma cava rosada que eu trafiquei diretamente da Xampanyería, famosa bodega de Barcelona, falávamos sobre a África.

Meu saudoso ex-namorildo catalão lembrava uma viagem sua a Botsuana e à tribo dos sãs ou sans, também conhecidos como bosquimanos.

Um nativo se destacava dos demais, com seus tênis náike e inglês impecável. Batia numa pedra e dizia: aqui há escorpiões. E havia.

“Conhecemos muito bem o nosso entorno!”, disse. “We are the new generation”. Ele também falava a língua tradicional, cheia de sons guturais e golpes de glote.

Daí que lembrei do meu (ex-, saudoso também) sogro canário, quando me contou algo fantástico sobre a ilha de La Gomera, a segunda menor do arquipélago espanhol de Canárias.

Marcada por uma topografia vulcânica, coberta por uma vegetação que parece um patchwork de cerrado e Mata Atlântica (lá, conhecida como laurisilva), a ilha é famosa também por uma língua ancestral, até hoje ensinada nas escolas.

O assobio (“silbo”) gomero remonta a eras pré-hispânicas, quando castelhanos se mesclavam com as tribos de origem berber (do norte da África) conhecidas genericamente como “guanches”.

Meu sogro lembra quando era pequeno e ouvia os “mayores” (mais velhos) articulando zilhones de conversas aka cantosdepassarinhos por meio de assobios que, dizem, podem chegar a até quatro, cinco quilômetros de distância.

Essa linguagem ancestral coletiva era usada para transmitir notícias sobre mortes, incêndios, perigos, tudo o que pudesse afetar a comunidade.

Mas não se trata de uma relíquia antropológica, e sim de uma língua viva y operante: alguma xovem canária comentou, numa matéria na tevê, que usa o “silbo” pra se comunicar com amigos em festas, por exemplo :). Alguém comparou a um Whatsapp dazantiga…

Uma professora de silbo gomero explica: “nas conversas assobiadas, é muito importante o contexto, porque uma única palavra assobiada pode ter até 30 significados diferentes na linguagem falada”.

E é fácil aprender? “Uma vez que você aprende como botar os dedos na boca e na língua, é só praticar”, diz.

Como a estrutura linguística do assobio canário é silábica e vocálica, dá pra transmitir mensagens em qualquer língua do planeta. Até em prutuguêis do Brazeeel! Imagina um gomero cantando tico-tico no fubá em gomerês —

Desde 2009, essa bunita tradição é considerada Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Unesco. O aprendizado da linguagem assobiada gomera está integrado à educação básica, o que favorece sua preservação para as futuras gerações.

O silbo gomero aparece inclusive em filmes, como The Whistler (La Gomera – A Ilha dos Assobios), thriller do diretor romeno Corneliu Porumboiu:

Olha que cousa maravilhosa. Conversa entre pastores de cabras, com direito a legenda. E crianças aprendendo a assobiar na escola. Pqp, esses gomeros son mucho amour…!

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Um passeio pelo maior sebo da Espanha https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/09/03/um-passeio-pelo-maior-sebo-da-espanha/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/09/03/um-passeio-pelo-maior-sebo-da-espanha/#respond Fri, 03 Sep 2021 20:19:44 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/El-Siglo4-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=1017 O chão se enrola em si mesmo, formando quadrados vertiginosos que suportam poltronas de veludo. O palco está vazio, exceto por um piano de armário onde falta uma tecla, um ré central –tomo nota, mentalmente, enquanto dedilho.

No lugar de paredes, livros. Muitos. Los que quieras.

Enfileirados, empilhados, eretos, debruçados, pairam sobre as cabeças passeantes umas coleções extensíssimas, arte, psicologia, clássicos, edições raras.

Nada como um pianiño, umas revistinha e uma versão-for-kids de (In My) Solitude (Susana Bragatto / Folhapress)

Num outro aposento, sobre uma mesa com tampa de vidro e cadeiras estilo Luís XV, um gordo lustre ilumina um livro infantil ilustrado, talvez recentemente folheado por mãozinhas ou mãozonas: Las pesadillas de Winnie the Pooh (Os Pesadelos do Ursinho Puff).

Logo ao lado, uma cozinha industrial, moderna e minimalista, rodeada de –adivinhou –mais livros. Ali, rolam aulas de culinária e outros eventos gastronômicos.

Outras estantes carregam fotos de toureiros, bibelôs, dedicatórias esmaecidas, pôsteres de outra Espanha, histórias de outras vidas.

Relíquias e delicadezas da livraria El Siglo, o maior sebo da Espanha (Susana Bragatto / Folhapress)
Avec Carmen Miranda à la española (Susana Bragatto / Folhapress)

Este é o El Siglo (O Século), o maior sebo da Espanha, um mundo fabuloso e complexo entocado num galpão dentro do Mercantic, famoso mercado de antiguidades e artigos lokos de segunda mão no município de Sant Cugat, a meia hora de Barcelona.

A livraria ostenta esse título desde 2013, quando incorporou os 100 mil exemplares de outro templo sebístico de Barcelona, o La Canuda, que funcionava desde 1948 no centro perto da Plaza Catalunya e fechou as portas pra dar lugar a alguma super loja de fast fashion das que hoje abundam por ali.

Hoje, o El Siglo possui em torno de 150 mil livros, revistas e documentos distribuídos em 800 metros quadrados. É lugar pra chegar, se perder por horas e emergir com algum livrinho barato (ou não) na mão.

Adentro o hall principal, onde há um bar e o burburinho de uma discreta massa, num domingo de sol de final de agosto. Tô emocionada.

Não só pela impressionante abundância de volumes e lustres de cristal, que dão ao local um arzim épico-charmoso de templo-dos-traça-lovers. Mas, principalmente, porque é dia de música ao vivo.

Um dos palcos dentro da livraria El Siglo, o maior sebo da Espanha (Susana Bragatto / Folhapress)
Ursinho Puff também é cultura (Susana Bragatto / Folhapress)

Minha primeira vez em muito, muito tempo.

Os indícios de uma pandemia ainda rondam aqui e ali: vemos gente mascarada, álcool em gel e mesinhas distantes umas das outras. Mas, de resto, a experiência é mansa y dulce.

A música ao vivo tem voltado aos poucos em alguns lugares. Ainda não muito.

Encontramos um cantinho pra sentar, equilibrando no colo vermutes e vinhos verdejo. Nesse salão principal, num palco maior que o mencionado acima, um duo de baixo acústico e piano começa a produzir as primeiras notas de um standard de jazz desses que a gente cantarola e não lembra de onde conhece.

Depois, entra a cantora: uma catalã entoando chansons francesas. Ne me quitte paaaaaaas, e a gente vai balançando ao ritmo dessa súplica poética, tentando esquecer por um momento que, apesar de 70,9% da população imunizada após 8 meses de campanha de vacinação, ainda temos alguns milhares de casos novos de Covid no país diariamente; e empurrando pro fundo do intestinus delgadus os alertas dos tais Especialistas Epidemiologistas, que vêm nos dizendo: cuidado que pode vir mais, cuidado que tem o frio chegando, cuidado que a vacina não funciona assim tão bem com as novas variantes.

Concerto na livraria El Siglo, o maior sebo da Espanha, agosto de 2021. Saca esse público comportadim, que fofo 😉 (Susana Bragatto / Folhapress)
The Spanish way em El Siglo (Susana Bragatto / Folhapress)
Livraria El Siglo, o maior sebo da Espanha, agosto de 2021 (Susana Bragatto / Folhapress)
Vai um livriño aí? (Susana Bragatto / Folhapress)
Palco principal da livraria El Siglo, o maior sebo da Espanha, agosto de 2021 (Susana Bragatto / Folhapress)

Hoje não, por favor. Termino meu verdejo, o último de muitos. Tout peut s’oubliee–eeeeer lalalala.

Debaixo do braço, trupicando, mas ainda em pé, levamos uma edição marota setentista de Leaves of Grass, de Walt Whitman. Pra não sair de mãos abanando, pra arrematar a visita com uma mesura a esse belo lugar, pra declamar em voz alta, detrás de uma máscara cirúrgica 2021, num canto alumiado de algum aposento da alma cansada, I celebrate myself, and sing myself….

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O verde nosso de cada dia https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/08/28/o-verde-nosso-de-cada-dia/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/08/28/o-verde-nosso-de-cada-dia/#respond Sat, 28 Aug 2021 19:46:12 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/parc-del-laberint-d´horta-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=984

(ou: ode aos parques anônimos de Barcelona)

Domingo de manhã e tô explorando uma outra parte de Barcelona, desconhecida pra mim até agora, na zona de Sants-Montjuïc.

E olha que levo anos nessa ciudad.

Sem querer, ao dobrar uma esquina qualquer, descubro, por exemplo, o Jardim dos Direitos Humanos, um oásis metido entre edifícios residenciais y uma casa de linhas clean e planta livre com ar meio 1950s.

A essa hora fresca da manhã, cedo ainda e sem canícula (como se chama a onda de calor que nos vem surrando por aqui), avisto um cara penteando um labrador, duas senhoras passeando lado a lado com seus respectivos poodles, fonte, flores, e é isso.

Jardí dels Drets Humans, Barcelona (Susana Bragatto / Folhapress)

Nada especial, francamente. Me faz pensar no Burle Marx, em São Paulo, por conta do espelho d´água e alguns espécimes tropicais aqui e ali. Deve ser saudade de casa, e me sento na beiradinha da água pra contemplar o conjunto.

Descubro depois que esse jardim foi erigido sobre um antigo pátio de descanso para operários da fábrica Philips, e que a tal construção 1950s supracitada de fato foi projetada em 1960 pela mulher do dono da fábrica, uma paisagista holandesa.

***

Barcelona tem três parques-estrela: o Güell, Montjuïc e Ciutadella. Fontes com estátuas douradas, torceduras gaudinianas, caminhos de palmeiras, cenários preferidos de eventos culturais, uma maravilha, cartões-postais da cidade.

Ironicamente, como em outros lugares, a maioria dos parques barceloneses nasceu como necessidade colateral da Revolução Industrial. De repente, era tanta gente e concreto na cidade que faltava verde.

Parc Güell, projetado por Gaudí, Barcelona (Divulgação)

O primeiro grande reduto-oásis a ser construído foi o Parc de la Ciutadella, um projeto ambicioso feito sob encomenda para receber a Exposição Universal de 1888.

Na primeira metade do século XX, com a onda de renovação urbana modernista, surgiriam outros grandes parques, como o Güell, projetado por Gaudí (1923), e os Jardins da montanha adjacente de Montjuïc, criados especialmente para a Exposição Internacional de 1929.

Parc de la Ciutadella, um dos mais famosos cartões-postais de Barcelona (Reprodução)

Um icônico personagem articulador desse processo de parquificação intensiva de Barcelona foi o arquiteto e paisagista catalão Nicolau Rubió i Tudurí, que esteve à frente da Direção de Parques Públicos da cidade até o exílio na França, em 1937, após o início da Guerra Civil Espanhola.

***

Mas hoje meu corazón quer homenagear os cantos verdes anônimos das nossas vizinhanças. Esses que só talvez, ou casualmente, cê descobre que têm nome e história. E que, no vaivém rotineiro da city cruel, te acolhem com sombras de árvores e momentos de pazzz.

Como o Parque de La Pégaso, perto de casa, no bairro histórico-operário de Sagrera. É meu preferido. Foi construído onde antes havia uma companhia de caminhões que, justamente, produzia os famosos modelos Pégaso.

Sempre vou lá fazer o meu chi kung e meu workout-de-app debaixo de eucaliptos esvoaçantes. Os quais, por sua vez, me recordam a casa onde cresci, atrás da qual tinha uma espécie de bosque que nos brindava com um ruído namastê-selvagi agradabilérrimo cada vez que vinha uma tempestade de verão.

Fico feliz quando coincido com a hora em que ligam as fontes pra limpar os tanques de água (onde às vezes rola um pato ou um cachorro nadando).

Pronto. Aí vem o labrador ca bolinha azul na boca.

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Essa mina não tá falando  naa-di-náa (como diriam aqui, sincopando), cê pode pensar.

O tal labrador (ca bolinhazul na boca) (Susana Bragatto / Folhapress)

Não tô, mesmo. Esse é o (meu) ponto. Hoje o papo é normcore (faça um muxoxo, vamos, que o tempo urge, que o parafuso aperta, que o julgamento cozinha o miojo além do ponto…).

Quanto de nossas vidas de transeuntes (sobretudo, urbanos) deixamos desvividas pelos cantos com tanto excesso de tudo, me pergunto. Sorvendo, deglutindo, consumindo avidamente tudo ao redor, de informação a semáforos a twix sabor abacaxi.

Podemos resistir ao FOMO e apenas contemplar um arbustinho, uma primavera em frô? (também me pergunto, porque pra mim mesma às vezes é difícil)

Parc del Centre de Poble Nou, Barcelona (Susana Bragatto / Folhapress)

As ilhas de verde, tão corriqueiras na paisagem de Barcelona, são, entre outras bênçãos, espaços de Fazer Nada. De Encontro e Contemplação. Alguns, como eu, loopam pelos caminhos entre árvores pra dar conta da corridinha matutina, mas o mais comum por aqui é isso: a Desaceleração.

Parc del Clot, em Barcelona, construído aproveitando uma antiga vila ferroviária (Reprodução)
Aula de tai-chi pós-pandemia no Parque de Can Dragó, Barcelona (Susana Bragatto / Folhapress)
Minha estátua preferida, na Plaça del Congrés Eucarístic, Sagrera, Barcelona. Sempre vou lá trocar uma ideia ca comadre (Susana Bragatto / Folhapress)

Como os inúmeros bancos e bulevares de pedestres, os Parques Anônimos de Quase Cada Esquina são, aqui, parte pulsante-vital do tecido social. Convites à ocupação das ruas. Desaceleram, mas alimentam o corazón.

Vê, o labrador agora tá perseguindo pombas. Quer latir, mas leva a bolinha azul na boca…

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O diabo, a nuvem e alguma lágrima https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/08/20/o-diabo-a-nuvem-e-alguma-lagrima/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/08/20/o-diabo-a-nuvem-e-alguma-lagrima/#respond Fri, 20 Aug 2021 22:04:05 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/20210815_211259-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=962 O que nuvens de celofane, diabos soltando fogo e sistemas planetários têm em comum?

Se cê chutou Carnaval, quase.

(eu chutaria Terry Gilliam, mas é que eu sou romântica)

Aqui na Espanha, o Carnaval não é assim Aqueeeela Data Do Corazón como pra gente aí no Brazel. As exceções honrosas talvez sejam os carnavais de Tenerife ou Cádiz, internacionalmente conhecidos.

Apesar disso, a verdade verdadeira é que, na percepção parcial, mas consistente dessa imigrante que vos fala, os espanhóis são uns party animals. Nunca vi tanta festa de rua como aqui.

O calendário anual de festas populares inclui centenas delas, entre grandes, pequenas e minúsculas. Em parte, motivadas pelo profundo histórico religioso-cristão do país, com homenagem a santo, data bíblica e tal.

Mas tem pra tudo: festa pra abrir primavera, pra fechar o verão, pra homenagear o patrono da cidade, pra festejar a colheita de cogumelos (os de comer no strogonoff, gente), pra fazer guerra de tomate (a famosa Tomatina, em Valência) e por aí vai.

Festa da Tomatina, Buñol, Espanha (Reuters / Juan Medina)

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A pandemia, claro, afetou o ritmo de fiesta español costumeiro. Em 2020, tudo cancelado.

Este ano, em agosto, finalmente começam a ressurgir algumas celebrações aqui e ali, embora dependa muito da localidade –Madri, por exemplo, suspendeu por ora as principais festas populares do mês, por cautela covidiana.

Carnaval da ilha de Tenerife, Espanha. Parece um bokado com o nosso (AFP PHOTO / Desiree Martin)

Em Barcelona, a grande festa popular de agosto acontece esta semana até o próximo sábado (21), depois de uma última edição pandêmica completamente virtual (aka: não aconteceu) em 2020.

É a “Festa Major” (festa maior) do catalaníssimo bairro de Gràcia.

Onde, por cierto, eu vi o diabo, a nuvem, o arco-íris e muito mais.

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As festas maiores são um clássico espanhol. Acontecem em diversas partes do país ao longo do ano. Cada bairro, distrito ou município pode ter a sua, com dinâmica e peculiaridades próprias. Algumas tradições remontam pelo menos à Idade Média.

Festa maior de Gràcia, 1915 (Reprodução)

E o marr legal: quase sempre, os próprios moradores e negócios locais participam da organização, decorando ruas e organizando pequenos concertos (concertos, que era isso mesmo?) e “barras” (balcões de bar) para servir drinques e “tapas”.

Em Barcelona, com seus 10 distritos e 73 bairros, há cerca de 20 festas maiores ao longo do ano. A mais famosa é, sem dúvida, a de Gràcia, celebrada há mais de 200 anos.
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Passear pela festa de Gràcia 2021 é assim meio mágico. Digo yo.

Ainda mais este ano, em que ressurge com gostinho de fênix.

Festa Maior de Gràcia, Barcelona, 2021 (Susana Bragatto / Folhapress)

Festa Maior de Gràcia, Barcelona, 2021 (Susana Bragatto / Folhapress)

Há algo singelo e comovente nas decorações temáticas com celofane e papel machê penduradas entre os balcões, sobre os postes de luz, enlaçadas em persianas e fios de eletricidade.

Algumas me lembram trabalho de aula de arte da escola.

Outras parecem aventuras protospielberguianas.

Mas a maioria fica no meio do caminho entre o esmero de mãos não necessariamente expertas, mas amorosas. O resultado é um conjunto vistoso, que nos brinda aos críticos-malas-que-não-metem-a-mão-na-massa como eu com um espetáculo imersivo mezzo alucinatório, mezzo poético.

Em meio ao caos das ruas festivas, os locais montam mesas na rua e celebram o esforço (às vezes, de meses) com um banquete pra eles mesmos e amigos. Quero chegar a ser uma insider assim um dia. Hay que vivir en Gràcia.

Festa Maior de Gràcia, Barcelona, 2021 (Susana Bragatto / Folhapress)

Festa Maior de Gràcia, Barcelona, 2021 (Susana Bragatto / Folhapress)

Cada rua tem uma onda diferente. Uma lata de tinta que vomita mil cores sobre nossas cabeças; planetas e meteoros banhados por luzes sci-fi; intermináveis guirlandas de flores, polvos, dragões.
Depois que termina a festa, qualquer um pode bater na porta da associação da rua e pedir um pedacinho da decoração de lembrança.

Minha amiga catalã já tinha escolhido o que queria pedir: uma longa trança de flores e folhas de papel.

***

Lembro da minha primeira festa maior de Gràcia, nos idos de 2000 e algo. Não dava pra andar na rua de tanta gente. E mal se via a decoração, de tantos turistas bêbados alçando canecas de cerveja. Terminei a noite banhada em cerveja, e olha que eu nem curto cerveja, chaval.

Também mal ouvia a música com tanto alarido de gentecontente.

A única experiência da minha vida que se compara a essa badalada festa de bairro pré-pandemia é o carnaval de Olinda, quando, uma vez, eu fui carregada pelo movimento autônomo da multidão enquanto por sinal chupava um sorvete de cajá (proezas pessoais, falemos delas).

Ah, Brazel.

É legal, mas, neste momento pós-pandemia, tá diferente.

Este ano, em Gràcia, teve fila indiana pra entrar em cada uma das ruas decoradas. Está mais organizado, mais contido. Mas, ainda assim, bunito.

Porque festa popular, gente, é pra mim mais do que um banho de cerveja e uns boffs ou um passeio em família. Mais do que nunca, nesses tempos demasiado surreais, talvez ofereçam também uma oportunidade de conjurar aquela lágrima há tanto guardada no canto do olho, inspirada pela sensação indescritível, mas quentinha e confraternizadora, de pertencer ao jogo do mundo, ao tempo dos ventos, ao balouçar dos crepons.

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