Normalitas https://normalitas.blogfolha.uol.com.br Espanholices, maravilhas do ordinário, brotos de brócolis Sat, 04 Dec 2021 00:01:00 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 O pato, o palácio e a Padilha https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/10/26/o-pato-o-palacio-e-a-padilha/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/10/26/o-pato-o-palacio-e-a-padilha/#respond Tue, 26 Oct 2021 17:28:16 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/game-of-thrones-em-Alcázar-Sevilha-300x215.png https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=1135 Quando eu vim pra Espanha, anos atrás, pairava sobre minha cabeça um bololô de fantasias. Imaginava ruas coalhadas de laranjeiras e touradas, ciganas, paellas e personagens do Almodóvar gritando “olé” e fazendo clicclic com sapatos de flamenco na calçada (me deixem com mi imaginación, ostiii).

Hoje em dia, meus estereótipos se diversificaram ou, pelo menos, regionalizaram-se. Agora sei que o catalão tem fama de pão-duro, que os galegos são considerados meio tontos e arredios, que os madrilenhos se acham o centro do universo e os andaluzes………

… Bom. Pelo menos a parte das laranjeiras é verdade.

Recentemente, num arroubo mochileiro pós-pandemia, visitei Sevilha, coração da terra andaluza. Foi minha primeira vez no sul espanhol, uma das zonas mais pobres e também mais brilhantemente ricas em cultura e história do país.

Peguei fila pra entrar no famoso palácio de Alcázar, epítome da salada histórica mediterrânea ao longo do último milênio.

Esse impressionante complexo de edifícios e jardins apresenta uma fusão lôka de mil estilos, consequência de sua sucessiva dominação por diferentes povos-y-tendências: islâmico (da época de sua fundação, na Alta Idade Média), mudéjar (um estilo transicional entre muçulmano e cristão), gótico-barroco-renascentista-brutalista-etc.

Nesse lugar único y portentoso, gravaram alguma temporada do Game of Thrones (ambientaram aí o reino de Dorne, na quinta temporada) e cenas do mítico Lawrence da Arábia (1962).

Cena de Game of Thrones ambientada no palácio de Alcázar, em Sevilha (Reprodução)

Em Sevilha, dei um pulo também no Archivo de las Índias, onde se guarda um dos dois originais do Tratado de Tordesilhas –aquele em que portuguischis e españholis passam a régua no mapa múndi então conhecido e dizem, tu fica com a esquerda, eu com a direita (o outro original está na Torre do Tombo, em Lisboa).

Eu queria ter virado notícia como a brazilêra que invadiu o Archivo e devorou o Tratado a dentadas (egofantasias) enquanto aproveita pra gritar ForaBolfffso (imaginem os papeizinhos voando qual paçoca Amor, que legauu), mas infelizmente tal docu se encontrava no sótão quando eu fui, guardadinho para ser preparado para uma exposição, junto com outros preciosos documentos.

Pena, gente. Fica pra próxima, tá.

***

O palácio de Alcázar, erguido durante a Alta Idade Média e depois reapropriado e recauchutado em 34579 estilos umas 2480798 vezes ao longo da história, é a principal atração turística de uma cidade que, depois de ser um longevo centro de poder e disputas políticas da Península, vive hoje em dia do turismo.

Lindo. Imponente. Interessante. E, ao mesmo tempo —

Vou dizer. Nas ruas de Sevilha, não vi toureiro, não vi a cigana de Bizet (Carmen, a ópera, é ambientada na cidade). É tudo lindo e cheio de passados monumentais? É. A comida é boa e farta, as “tapas” (porçõezinhas de comidiñas) são fenomenais? Sim. Um dia conto mais. A Giralta, a catedral, o castelo….? Sí, sí. Na famosa Plaza de España, criada para a Exposição Iberoamericana de 1929, gravaram Star Wars e mais Lawrence da Arábia (1962)? Yea. É uma cidade magaviosa. Mas.

Talvez seja complexo de colonizada. Ou mais ou menos colonizada, que ao mesmo tempo eu sou descendente de italiano e japonês, ou seja, cheguei na festa tupiniquim muito tarde, e todos os meus antepassados se ferraram pra fazer a vida no Brazel, como outros muitos etc.

Todo aquele luxo, toda aquela pompa régia. Quem pagou? O pato e o palácio?

Lembro de uma conversa com um senhor português durante uma road trip em Portugal. Pra meu choque, ele afirmou que seu país tava economicamente na m… porque “deixou” o Brasil e suas outras colônias virarem independentes.

Pois é, ora poix, nada fixe.

Em lugar de argumentar, também lembro que optei por guardar silêncio e balançar meu pezinho na borda da piscina do hotel, vendo como fazia círculos na água.

Por isso, me emocionei, mas não tanto quanto imaginava, diante da visão do ostensivo-magnífico palácio de Alcázar, até hoje utilizado pela realeza espanhola como hotel privê em suas visitas à cidade (é o palácio real em atividade mais antigo do mundo etc).

Pátio das Donzelas no palácio de Alcázar, Sevilha (Susana Bragatto / Folhapress)

Balançou um pouco mais meu corazón, por exemplo, a antiguidade das muralhas defensoras remanescentes e seus líquens e rodapés pré-ibéricos.

Ou Itálica, sítio arqueológico perto de Sevilha onde o imperador Trajano nasceu e mosaicos romanos sobrevivem entre oliveiras. Tá certo que tal assentamento, o primeiro fundado pelos romanos na Hispania, era basicamente um super resort de gente bacana do Império Romano, feito, again, à base de suor escravo e subjugação de muuuchos povos… mas que chata sou, não?

Minto. Dentro de Alcázar, um lugar em particular me chamou mucho a atenção: a cisterna (aljibe) subterrânea do palácio, onde, diz a lenda, banhava-se a María de Padilla, amante do rey Don Pedro I de Castilla (aka O Cruel ou O Justiceiro, dependendo do retratista).

Jardins do palácio de Alcázar, Sevilha (Susana Bragatto / Folhapress)

Sim, essa Maria Padilha. Fonte de inspiração para uma das pombagiras mais famosas dos cultos afrobrasileiros, e aqui na Espanha também retratada como mulher livre e ousada para seu tempo. Como a Carmen, a hipnótica cigana enroladora de cigarros da ópera sevilhana de Bizet (que, por sua vez, curiosidade, nunca esteve em Sevilha).

Conhecido como “los baños de doña María de Padilla”, esse espelho de água criado na época almohade (lá pelo século 12) reflete as abóbadas góticas que o abrigam, construídas entre os séculos 12 e 13, gerando um olho mágico de simetrias onde, sim, adoraríamos imaginar a Padilha lavando o sovaco, sob a mirada apaixonada de seu Pedruco.

Banhos de Maria Padilha no palácio de Alcázar, Sevilha (Susana Bragatto / Folhapress)

Pena que provavelmente é só uma fantasia. Ou não. Na época de Pedro e Padilha, o mundo cristão não era muito fã de banho, mas é verdade que Sevilha já possuía então muitos banhos coletivos ou hammams –ao lado dos pátios interiores e fontes de água, um dos grandes legados da influência árabe na Península.

O pátio de doña María é da mesma época. O aspecto atual guarda pitadas do terremoto de 1755 (o mesmo que derrubou Lisboa) e afrescos renascentistas nas paredes laterais, atualmente em recuperação. Belíssima pedida para um selfie dentro de um majestowwwso castelo castellano.

***

Na saída, detrás de uns explodentes lírios brancos no jardim, escuto um jardineiro muito idoso comentando com uma turista que essas flores eram utilizadas como psicoativas, ao que a senhora abanava a cabeça, não sei se entendendo nada ou tudo demais. Olhei à minha volta e voltei atrás. Minha paixão pelo castelo coronado de lendas pintou no epílogo….

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O sonho da bolota https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/10/10/o-sonho-da-bolota/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/10/10/o-sonho-da-bolota/#respond Sun, 10 Oct 2021 17:08:57 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/quimet-prato-vazio-1-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=1095 (Parte II: O Âmago)

Eu lembro que eram dias frios, e que o chão estava coberto delas. As bolotas de espinhos. Que soltavam gritos bichóvicos de agonia à medida que eu avançava, hesitante e hipnotizada, massacrando-as com minhas galochas de borracha. Solene e mórbida, eu ia pedindo desculpas.

As cúpulas das castanheiras se juntavam num abraço, e a luz filtrada sobre nós me fazia pensar em capelas marcianas, o luto da avó, alfaces hidropônicas.

Não. Sou uma mentirosa.

Porque, naquele longínquo tempo, quando minha cabecinha dura batia nos cotovelo dos adulto, minha avó ainda vivia, eu ainda não tinha visto um marciano (mas isso fica pra outro dia) e não fazia ideia de que um dia faria ideia do que são alfaces hidropônicas.

O sonho da bolota…

Agora, uma verdade: eu-pequena achava que castanha e ouriço-do-mar eram meio que a mesma coisa, do mesmo jeito que Bagu, nosso jabuti, era meio que uma tartaruga, só que de terra.

O fato é que o contraste entre a casca hostil e a maciez amadeirada das bolotas de castanhas foi pra mim uma das primeiras Pequenas Grandes Impressões De Sei Lá Quê Sobre A Vida.

A gente coletava ouriços-de-castanha nesse bosque perto do sítio dos meus avós japoneses em Piedade, interior paulista, e minha mãe preparava uma compota com essas castanhas que meu pai comia de colherada. Sinceramente, eu via mais graça em pavê de chocolate.

***
Ora, ora. Anos depois, aqui estou eu, ainda batendo a minha cabeça dura nos cotovelo dos adulto, falando como se soubesse do que tô falando sobre, quem diria, uma pequena porção de castanhas confeitadas sobre cama de foie gras num boteco barcelonês.

Inesquecível foie gras com castanhas e cogumelos do Quimet & Quimet, em Barcelona: ayyayaye (Susana Bragatto / Folhapress)

A culpa dessa microrreviravolta, já disse na parte I desse artigo, é do Anthony Bourdain. Que eu curto tirar o meu da reta e adoro uma simplificação.

Em seu livro Cozinha Confidencial, que o lançou à fama de chef-roquenroler-arretado, ele recorda uma viagem que fez quando criança à França, com os pais e o irmão.

Além de a trip virar uma école-infantil-da-boemia-criminal pro Bourdainzinho, com cigarriño entre amiguinhos franceses aos domingos e “vin ordinaire” diluído pras crianças, foi aí que ele teve seus primeiros Assombros Com A Comida/Vida.

Primeiro, por meio de uma sopa Vichyssoise a bordo do navio (“fria!”, recorda, pra seu espanto).

Depois, uma ostra. Sugá-la recém-abatida direto da concha diante dos pais, do pescador grosseiro véideguerra e do irmão pequeno, encolhido de asco, era ir contra o mundo, era ser marvado, era ser fodão. Comer aquela gosma meio-viva, meio-sexual, extraterrena era saltar ao desconhecido, ganhar superpoderes, transcender o inominável. “Everything was different now. Everything“. Pronto, eis como nasce um caráter (torrey anos de terapia com essa frase).

Assim, é fácil entender por que o Quimet & Quimet, bodega centenária localizada em um bairro popular de Barcelona, pouco mais que uma portinhola abarrotada de vinhos e produtos de mercearia boiando em bandejas de metal, ganhou o corazón do Bourdain. Ele amava Barcelona e amava esse buteco. Vejamos.

Quimet & Quimet, bodega centenária no bairro de Poble Sec, em Barcelona (Susana Bragatto / Folhapress)

Terminei o artigo anterior dessa coluna falando que o dono do bar era ríspido ou, pelo menos, antipático, comparado com o nosso espírito hospitaleiro brazilêro. Tenho um estranho fascínio por esse tipo de gente. Banquei a submissa-bajuladora: pedi uma recomendação.

E veio a primeira, sem um sorriso, mas, segundo consta, bem harmonizada: um vinho branco fresco com um “montadito” (cousas sobre uma torrada) de anchovas sobre pimiento de piquillo (espécie de pimentão vermelho assado em conserva, onipresente na culinária botequística espanhola) e coroado por uma guindilla (pimenta) curtida no vinagre.

“Montadito” de anchovas e piquillo do Quimet & Quimet (Susana Bragatto / Folhapress)

Quim, o señor supracitado, é pai do Quim, que também nos atende. O jovem é a quinta geração de Quins. Jeez.

São pouco mais de sete da noite de uma quarta. Locais e turistas vão surgindo dos buêro, formando fila e burburinho na entrada. Quim (de Joaquim, Quimet, em catalão) pai e Quim filho me explicam: tenho 45 minutos. Porque há lista de espera, e é necessário rotatividade.

Parto sem pausa pro segundo round: uma “tapa” (porção) de nêsperas (outra memória da minha infância) em calda com queijo de cabra e mais anchovas. Por cima, uma translúcida emulsão de vinagre que é dichorá de alegria. Vem também a famosa “tapa” de foie gras com compota de castanhas, algo de que nunca más me olvidaré.

Nêsperas da minha infância e tomaaaa mais anchovas no Quimet & Quimet, em Barcelona (Susana Bragatto / Folhapress)

Desta vez, peço um tinto e provo o Venta las Vacas 2015, um Ribera del Duero deliciê cujo distribuidor se chama, auspiciosamente, “uvas felices”.

“Quando o bar abriu [em 1914], essa região já era urbanizada”, conta Quim-pai. “Nossos fregueses eram gente do bairro: trabalhadores portuários, pequenas oficinas — todas essas lojas que agora estão fechadas ou são casas pertenciam a pequenos negócios… eram açougueiros, ferreiros, lavadeiras, sastres (alfaiates)…”.

O Quimet & Quimet, no mesmo endereço desde o princípio, seguia a estrutura das vivendas da zona: na parte da frente, o pequeno negócio; na parte de trás, o lar. “Toda a minha família nasceu aqui, e eu cresci nesta casa”, conta.

Quimet & Quimet from the sarjeta (Susana Bragatto / Folhapress)

Segue-se uma “tapa” de carrillada de cerdo ibérico (bochecha de porco) com fios de ovos, pimentão e outras simples maravilhas. A carne é overmacia, puxada no vinagre.

Bourdain, lembra Quim, apareceu no bar pela primeira vez lá pelos idos dos 2000, trazido por um amigo em comum, o chef estrela Michelin catalão Ferran Adrià, até hoje frequentador do local.

“Hoje em dia é normal, está por toda parte, mas naquela época eram uns três ou quatro ‘gatos’ que tinham essa relação roquenrol e aventureira com a comida”, comenta Quim. “Aquela geração de chefs tinha um caráter muito mais humilde”.

“A influência desses personagens foi tremenda, mas não só sobre o Quimet & Quimet, e sim sobre Barcelona como um todo”, diz. “O ambiente hoje em dia mudou muito com o Covid, mas naquela época havia turistas que vinham à cidade para ver a Sagrada Família e turistas que vinham expressamente para comer em Barcelona”.

Aliás, comenta, isso acontecia em toda a Espanha. “As pessoas vinham tanto para provar a nova cozinha quanto a clássica. Esses chefs também tinham de característico jamais desprezar a cozinha de sempre –ao contrário, valorizaram-na muito. Foram inovadores até nisso”.

Como muitas bodegas, o Quimet não tem cozinha, e tudo, preparado diante de nossozóio, sai de latas e vidros em conserva –mas QUE conservas.

Quim, quarta geração familiar à frente do Quimet & Quimet, em Barcelona (Susana Bragatto / Folhapress)

Enquanto meus cotovelos esfriam contra o metal prateado do balcão, diante de mim se desenrola uma ininterrupta coreografia tira&põe de bandejinhas coloridas dentro de uma vitrine de vidro.

Em cada uma, empilhados, curtidos, mergulhados, curados, escabechados ou caramelizados, anchovas do cantábrico, cecina (carpaccio de atum), pulpos recheados, mexilhões do tamanho do dedão do pé do Tostão, pimientos, berberechos, salmões, queijos, azeitonas gordas, bacalhau, nêsperas em calda, favas asturianas, alcachofras, camarões, fios de ovos, ovas, ostras, sigo?, o foie, QUE FOIE É ESSE, MINHA GENTE.

Acepipes dus dioses no Quimet & Quimet, Barcelona (Susana Bragatto / Folhapress)

“Aqui, com o tipo de comida que servimos, que não tem nada a ver com a cozinha que praticavam esses chefs que nos visitavam, sempre nos apoiaram e valorizaram muito”, conta Quim.

E como era o Bourdain no Quimet?

“Muito cordial e simples… mas [essas são pessoas que] buscam mais o conceito: sei lá, quem sabe não falemos de família ou de futebol ou música; mas falamos de comida”.

A essa altura eu tô concentrada numa porção de alcachofras com pasta de pimentão e caviar e outra de pupurri de frutos do mar, incluindo uma muy fálica navaja que tento inutilmente desfalificar pra foto.

Melhor mexilhão em lata da vida desta que vos escreve (Susana Bragatto / Folhapress)

Pergunto ao Quim do que o Bourdain mais gostava no bar. “Le encantaba el pimiento“, dispara, rápido.

“É um contraste, porque o Ferran (Adrià) não gostava de pimentão”, lembra. Mas tanto faz: no fim, “o que importa é a qualidade do produto. Trata-se de buscar a melhor matéria-prima, a elaboração, e luego a combinação pode ser melhor ou pior. Mas, se o produto não é bom, se acabó Hola!“.

E, assim, sem nenhuma palavra mais, Quim-pai me abandona pra se ocupar, com sua seca e eficaz amabilidade, de outros fregueses recém-chegados.

Ah, o charme catalão. Diretos como um jab de direita numa liquidação da Zara. O amor sem tapinha no ombro, mas amor.

E assim vai se encerrando o ato dois da noite Frinder co’s Quim: apaixonar-se.

Primeiro, uma sensação crescente de conforto e familiaridade vai inundando o corazón. O vinho ajuda, claro. Também ao observar o movimento, pouco a pouco o visitante vai se integrando, sentindo-se mais próximo dos outros comensais. À minha esquerda, há um cara que eu juro que é famoso. Ou não. A gente se entreolha e sorri, confraternização de bar é assim em qualquer canto do mundis. Nunca vou saber quem é, mas, de verdade, não me interessa.

Só há tempo para um epílogo, que meu tempo-no-bar já acaba –e tinha que incluir mais castanhas.

De saída, um casal de idosos passa por mim gritando ao Quim-pai: “que maravilha de castanhas com vinagre! O que que é aquilo! Adeu, adeu!“. Ato seguido, lá tô eu comendo castanhas com vinagre. E queijos de proximidad sem conservantes acompanhados de uma gelatina de vinho moscatel. Eu queria outra taça de tinto pra acompanhar, mas o Quim-pai é taxante: nem pensar. Se quer algo com o doce, vai tomar o que eu der.

Sim, senhor. Cacilda. Obediente, provo uma sidra moderadamente ácida e nem de longe borbulejante e genérica como as Xereser de minha juventud (me desculpem os expertos).

Queijos com gelatina de moscatel do Quimet & Quimet, Barcelona (Susana Bragatto / Folhapress)
Sidra artesanal no Quimet & Quimet, Barcelona (Susana Bragatto / Folhapress)

***

“Nunca foi minha intenção ser um repórter, um crítico, um porta-voz”, declarou Bourdain uma vez. “Sou um contador de histórias. Eu vou pros lugares, eu volto. Eu conto o que esses lugares me fizeram sentir”.

Deu a minha hora. Já vou, já vou. Só me deixam terminar a sobremesa rapidim, mas ó, déiz minutiño y tchau tchau tchauuuu.

Semi-enxotada, de pança cheia e com uns vin na cabeça, sento na sarjeta do outro lado da rua com meu amigo, que chegou no meio da velada pra me ajudar ca comilanzza. Enquanto fumo um cigarrinho roubado (parei, mas hoje não), contemplo o burburinho incessante diante daquela portinha de moldura vermelha que me devolveu as castanhas da minha infância.

Bourdain, Bourdain. Tô contigo.

 

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Este artigo não é sobre um aperitivo de foie gras com castanhas https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/10/03/este-artigo-nao-e-sobre-um-aperitivo-de-foie-gras-com-castanhas/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/10/03/este-artigo-nao-e-sobre-um-aperitivo-de-foie-gras-com-castanhas/#respond Sun, 03 Oct 2021 18:40:29 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/quimet-foie-com-castanhas-1-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=1071 (Parte I: O Entorno)

Pronto, o elefante gourmet na sala.

Isso que eu conto aconteceu quase uma semana atrás. Mas ainda persiste em minha memória, fresca y aromática, a combinação (pra mim) inédita de sabores, arrematada por finas lâminas de champignon com seiláque bruxarias.

Tudo culpa do Anthony Bourdain, penso.

Sou uma p* pagapau. Naquele dia, quando saí de casa, tava ansiosa como se fosse trombar um match do Frinder pela primeira vez.

Desci na estação de metrô Parallel, zona oeste de Barcelona, microtaquicárdica.

Na saída, passo pela famosa sala Apolo, um espaço de espetáculos y nightclub onde já tocou de Smashing Pumpkins a (com todíssimo respeito) bandas de amigos.

Ali perto, avisto também um edifício fechado onde, até a pandemia, havia um clube de striptease. Ecos da época de ouro da avenida del Paralelo e seu burburinho cultural, com cinemas, teatros, circos, contrastes. Até hoje, o quarteirão ainda guarda um arzim meio Moulin Rouge versão remelexo-Augusta.

Aaah, Barcelowna. Nesse bairro popular que se chama Poble Sec (literalmente, “Vila Seca”), tem de tudo. Vai vendo.

Alguém tomando um pico de heroína na maior tranquilidade, enquanto o entardecer dourado acaricia cabeciñas brancas de anciões locais a passeio.

Turistas rubios (loiros) olhando pro céu enquanto arrastam maletas ou tiram fotos, alheios ao cara vomitando num canto imundo, o rosto congestionado de sofrimentos.

(É. E tem gente que pensa que aqui nazoropa num tem disso)

Lojinhas minúsculas oferecendo fotos pra documentos, capinha pra celular, frutas, bocadillos de chorizo e dois coquetéis por um.

Passo por uma mina tranquilamente lendo um livro escorada numa árvore da calçada. Uma senhora com pinta de 105971086 cirurgias plásticas, os peitos brilhantes saltando de um apertado corset verde. E uns jovens altíssimos gritando em árabe entre si, com seus relógios dourados, perfumes contundentes e moletons oversize onde se lê

Balenciaga Balenciaga Balenciaga.

E eu, com meu vestidinho amarelo e minha sandalinha de couro fazendo tec tec no asfalto sujo.

Na esquina do meu destino, um Burger Kingui. O nome da rua é de um poeta pré-romântico chamado Cabanyes. Mas isso foi ideia dos franquistas. Eles deram uma “disfarçada” no nome original, que fazia referência a outro Cabanyes –este, um herói militar catalão nas batalhas contra o exército espanhol de Felipe IV no século 17.

***

Quando finalmente chego onde tinha que chegar, bizoiando do lado oposto da calçada, brota em minh’alma o primeiro julgamentozinho negativo: putz, não é o que eu esperava. (E o que eu esperava? Glamour, tapetes vermelhos, faisão à Provençal (que p* é essa?!)?)

Expectativas, essas sandalinhas de couro fazendo tec tec no asfalto sujo.

Quimet & Quimet (esse é o nome do meu date-destino) é um dos bares mais icônicos de Barcelona. Já era popular antes mesmo de virar parada turística obrigatória nos anos 2000, quando foi super elogiado pelo chef rocker Anthony Bourdain, de passagem pela cidade.

Essa pérola da gastronomia botetística está afincada no lugar onde tem que estar, desde 1915, quando o primeiro Quim (“Quimet”, em catalão) de uma longa linhagem de boteco owners servia bebidas e comidas para os trabalhadores da vizinhança obreira de Poble Sec.

Fachada do bar Quimet & Quimet, em Barcelona. A noite tá só começando e já tem fila (Susana Bragatto / Folhapress)

Bourdain, que foi ao Quimet & Quimet muitas vezes (a primeira, sendo levado por seu amigo local, o super estrelado chef Michelin Ferran Adrià) era fã da chamada “cozinha de mercado” ou, em catalão, “cuina de mercat”: basicamente, comida simples e deliciosa, com ingredientes frescos e de qualidade. Barcelona era um de seus lugares favoritos no mundo.

Explorar um lugar novo, pra ele, era o grande tesão. Não saber. Dar tudo errado. Nunca dar errado. Surpreender-se, surpreender. Enjoy the ride. Etc.

“Tenho uma tatuagem no braço que diz, em grego antigo: ‘Não tenho certeza de nada'”, escreveu ele uma vez, no seu característico estilo f**-se. “Acho que é um bom princípio operacional. Adoro aparecer num lugar pensando que vai ser de um jeito e tendo todo tipo de preconceitos estúpidos e, mesmo que de uma forma dolorosa e embaraçosa, verificar que estou errado. Se você conseguir aprender um pouco mais sobre o mundo a cada dia, já é uma vitória (it’s a win)”.

***

Imbuída desse espírito bourdiano, respiro fundo e atravesso a rua. Em geral, até que me considero valiente, mas hoje me sinto meio sem jeito de entrar no meu date-destino sozinha. Tec, tec.

A fachada de madeira pintada de vermelho profundo emoldura um ambiente diminuto, quase um cubículo, com umas três ou quatro micromesinhas onde alguns começam a se reunir em pé com seus drinques e tapas (pequenas porções de comidiñas). O bar acaba de abrir para o turno da noite.

As paredes estão cobertas de latas e vidros de conserva e garrafas de vinho e cerveja e uísque inglês até o teto, onde baila um ventilador desses bailantes tipo Martin Sheen pirando no hotel em Apocalypse Now.

Eu logro conseguir um lugarzinho no balcão, onde esparramo meus cotovelos, ladeada à esquerda por um homem que devora um prato de anchovas e cremes profusos e, à direita, por duas turistas que brindam com cava rosada enquanto pedem um negócio que parece pêssego em calda –com anchovas.

O dono do bar é ríspido, daquele jeito catalão que magoa uma sensibilidade brazilêra. Já tô com medo dele.

(Continua….)

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Leonard Cohen e seu coração espanhol https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/09/26/leonard-cohen-e-seu-coracao-espanhol/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/09/26/leonard-cohen-e-seu-coracao-espanhol/#respond Sun, 26 Sep 2021 20:26:01 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/Leonard-Cohen-CBC-Still-Collection_-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=1060 Um gentleman, seu chapéu. Suzanne. E o aroma de cedro espanhol.

Leonard Cohen, o bardo canadense, teria completado 87 anos no último 21 de setembro.

Até outro dia, não sabia da relação de amor que tinha ele com a Espanha.

Y entonces topei com seu discurso de agradecimento de 2011, quando veio a Oviedo para receber o Prêmio Príncipe de Astúrias, concedido a personalidades e instituições de destacada expressão nos campos das artes, humanidades, ciências e cooperação internacional.

Outros homenageados ao longo dos 40 anos do prêmio incluem gente tão diversa quanto Woody Allen, Mikhail Gorbachev, Nelson Mandela e Oscar Niemeyer.

“Depois de comer todos os chocolates e amendoins do minibar do hotel, escrevi umas linhas. Não creio que tenha que recorrer a elas”, começa Cohen, pra meu delírio interior. Chocolates, minduins.

“Sempre senti uma certa ambiguidade sobre um prêmio de poesia”, continua. “A poesia vem de um lugar que ninguém controla, que ninguém conquista; me parece charlatão aceitar um prêmio para uma atividade que eu não controlo. Se eu soubesse de onde vêm as boas canções, I’d go there more often”.

Eu poderia transcrever o discurso do hômi e call it a day. Que, né. Mas o bonito para esta coluna vem de uma anedota que ele nos facilita, ocorrida mais de meio século atrás, e que conecta seu corazón às terras españolas.

***

Um dia, Cohen moleke de vinteepoucos passeava pelo parque perto da casa da mãe em Montreal quando topou com um español tocando violão flamenco.

Esse encontro fortuito-serendipítico-e-acaso-existe-acasoenlavie? mudaria Tudo.

Naqueles tempos, conta o próprio, Cohen malemal surrava um violãozim entre amigos, e nem passava por sua cabeça considerar-se músico, muito menos um cara com voz artística própria.

De repente, ouvindo o español dedilhar escalas de emociones ancestrais, como uma andorinha desavisada fritada em voo por um relâmpago (imagino yo), pensou: É ISSO.

Fechou um preço e um horário com o fulano, jovem como ele, e se encontraram no dia seguinte na casa da mãe do Cohen. Lição número um: #fail, guitarra 3 x Cohen zero.

Depois de um par de dias, com algo de sofrência e persistência, conta ele que conseguiu mais ou menos entender a progressão harmônica de seis acordes “em que muitas, muitas canções flamencas se baseiam”, e que se tornaria uma das inspirações seminais para suas composições.

No quarto dia, o espanhol não veio. Cohen ligou pra pensão onde o cara tava ficando: tinha tirado a própria vida.

Alguns anos depois, Cohen visitaria a famosa loja de instrumentos e luthieria da família Conde, então situada na rua Gravina, número 7, em Madri.

Aí compraria o que seria seu companheiro de vida e palcos, um violão flamenco Conde número 26, feito de cedro espanhol, braço de cipreste brasileiro e pequenas partes de ébano, numa conjuração de madeiras de “pelo menos 30 anos”, como explica a página web. Hoje em dia, um modelo similar pode ser adquirido por uns módicos 11 mil euros (quase R$ 70 mil) plus impostos.

O local atualmente é administrado por Felipe Conde e pode ser visitado na rua Arrieta, 4, no centro de Madri.

Cohen não é o único famoso a ter um modelo Conde. A ele se somam David Byrne, Bob Dylan, Lenny Kravitz, Paco de Lucía (que criou um modelo Conde exclusivo) e Al Di Meola, entre outros.

Às vésperas de botar seu indefectível chapéu trilby e vir receber o tal prêmio peposo das xxtrela, conta, ele despiu a guitarrinha Conde de seu case e levantou-a. “Parecia feita de hélio –era tão leve”, diz.

“Eu a aproximei do meu rosto (…) e inalei a fragrância da madeira viva. You know that wood never dies”.

“Aspirei o aroma do cedro, tão fresco como no dia em que adquiri o violão. E uma voz pareceu me dizer, ‘você é um homem velho e nunca agradeceu; nunca trouxe sua gratidão de volta à terra onde essa fragrância nasceu’. Por isso, venho aqui esta noite para agradecer a essa terra e a alma dessa gente que me deu tanto…”

***

Gente, estou emotiva. Depois de duas (, duas) garrafas de Albariño compartilhadas com uma amiga querida em uma “finca” (granja, sítio) na montanha de Collserola, perto de Barcelona, e acompanhada de robustos javalis que capinavam a relva à nossa volta (há muchos na região), é fácil perder –ou encontrar –lampejantes perspectivas.

Mentira que eu não sabia do caso de amour do Cohen com a España. Ele deu à filha o nome de Lorca por causa do poeta granadino (de Granada) Federico García Lorca. Escreveu a linda “Take This Waltz” como uma homenagem/”guiño” ao poema “Pequena Valsa Vienense”.

E, sempre que podia, contava que Lorca “arruinou” sua vidiña adolescente de 15 anos quando ele topou com sua obra num sebo em Montreal.

“Eu li as linhas,

‘Por el arco de Elvira
voy a verte pasar
para sufrir tus muslos (coxas)
y ponerme a llorar’.

“Passei as décadas seguintes”, contou Cohen, em algum concerto num dia longínquo de passadas translações, “passei as décadas seguintes buscando os arcos de Elvira, buscando aquelas coxas, e buscando minhas lágrimas”…

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Ava Gardner, o holandês voador e um sonho espanhol https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/08/13/ava-gardner-o-holandes-voador-e-um-sonho-espanhol/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/08/13/ava-gardner-o-holandes-voador-e-um-sonho-espanhol/#respond Fri, 13 Aug 2021 18:55:36 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/Pandora-the-party-2-300x215.png https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=937 Tô lá fazendo meu topless na areia quando escuto um sambão.

Coisa de chamar a atenção, porque não estoy em Copacabana, mas numa baiazinha na fronteira da Catalunha Profunda, em Tossa de Mar, um belo balneário mediterrâneo com interesse histórico-medieval a uma hora e pouco de Barcelona, em Girona.

Não resisto e interpelo a mulher que tá botando som por alto-falantes na praia, do lado de um telão desligado com o mar de fundo.

Brasileira, claro, de Belô.

Brasileiro, quando encontra os patrícios na gringa, via de regra, fica todo emocionado.

“Eu, hein, de onde cê conhecia essa pessoa?”, já me perguntaram mais de uma vez. “Nada, acabo de conhecer, mas brasileiro quando se topa no mundão é assim, sai logo perguntando da vida, dando abraço, falando da saudade e combinando um churrasco lá em casa….”.

Clarice, que vive em Tossa há anos, me conta que vai ter projeção de filme à noite, aproveitando a lua cheia.

Não qualquer filme: mais exatamente, a superprodução que botou esse discreto vilarejo de pescadores na rota dos interesses hollywoodianos, há exatos 70 anos.

Cena de abertura de “Os Amores de Pandora”, 1951 (Reprodução)

A cena de abertura mostra uns “extras” contratados pra atuarem como os pescadores locais que trocam uma ideia em catalão chulo enquanto puxam uma rede anormalmente pesada do mar:

–Què creus que hi tenim a n’aquí, una ballena (O que você acha que temos aqui, uma baleia)?

–Una manada de ballenes!

As “ballenes” resultam ser cadáveres. Fim da cena de abertura.

***

“Os Amores de Pandora” (Albert Lewin, 1951) estrela Ava Gardner e James Mason nos papéis principais.

Ava interpreta Pandora Reynolds, cantora arretada e devoradoradehomens de passagem pela Espanha, que quebra as perna ao se apaixonar perdidamente por um misterioso e circunspecto holandês que atraca seu navio na baía de Tossa (no filme, Esperanza).

(quem nunca, não é mesmo)

Ava Gardner no filme “Os Amores de Pandora”, de 1951 (Reprodução)

O filme é uma mistura de mito grego, dramalhão hollywoodiano e a lenda do holandês errante, com toques surrealistas devidamente co-orquestrados pelo fotógrafo e artista vanguardista dadaísta surrealista ista ista Man Ray.

Ray se meteu com a fotografia do filme, salpicou a cenografia com umas esculturas romanas descabeçadas aqui e ali e criou o genial tabuleiro de xadrez que aparece em uma das cenas (assistam, assistam), além de ter metido a mão, dizem, no roteiro.

Por essas e outras, vale a pena ver a produção. Atentem para a cena superrr moderna da corrida de carros e a sequência que mostra uma louca festa de ricaços na praia –dá pra sentir o cheiriño de fotomontagem, desconstrução narrativa, subversão lógica à la dadá.

Cena de “Os Amores de Pandora”, de 1951 (Reprodução) (Me chamem pra essa festa, por favor)

Surrealismos à parte, “Os Amores de Pandora” não deixa de ser um desfile estilizado de belas paragens mediterrâneas, becos poéticos, dramas burgueses, boa comida, noitadas com dança flamenca e touradas sanguinolentas (estrelando o toureiro-na-vida-real Mario Cabré, com quem, dizem, Ava teve um lance durante as filmagens).

A Espanha de “Pandora” é naïf y estereotipada no úrtimo, o que, por sinal, convinha ao desejo de “abertura” (…!) do governo franquista no início dos anos 1950. A interpretação caricatural de Cabré como o toureiro Juan Montalvo me fez sentir uns cringe deitada à luz do luar na praia de Tossa.

Ava Gardner e James Mason no Filme “Os Amores de Pandora” (1951) (Divulgação)
Mario Cabré como o toureiro Juan Montalvo em “Os Amores de Pandora”, 1951 (Reprodução)
Tossa de Mar, Catalunha, em cena de “Os Amores de Pandora”, de 1951 (Reprodução)

O filme foi rodado em diferentes pontos da chamada Costa Brava, incluindo a bela Platja (praia) d’Aro e a praça de touros de Girona.

Mas é Tossa, esse lindo pueblo catalão de menos de 6 mil habitantes, que ganha os louros como A Cidadezinha Espanhola da Ava.

 

***

Ava, Ava. Era a primeira vez que pisava em solo espanhol, e não seria a última –muito menos isenta de drama, mas isso fica pra outro artigo. Tinha então 28 anos e já dois divórcios nas costas, além de um namorico incipiente com Frank Sinatra.

O cantor Frank Sinatra e a atriz Ava Gardner, com quem se casou em 1951 (Reprodução)

A passagem da estrela por Tossa está em toda parte, a começar pela parte mais alta da Vila Vella, onde contempla o mar, eternizada em uma estátua de bronze de tamanho natural. Também há fotos suas em bares, restaurantes como o Tonet e hotéis da região. Todo mundo quer uma casquinha da Ava.

E do Frank. Na época, Sinatra era o beau da bella. Tinha largado mulher e três filhos pra estar com ela. E, dizem, ciumento, veio vigiar o set e aproveitar pra tomar uns bons drink (imagino).

Também lá está ele eternizado em Tossa em fotos e anedotas entrelaçadas nos papos fugazes com os locais, uma gente muy catalana e ao mesmo tempo acolhedora, e que, por motivos abstratos e flanológicos, e até onde minha totalmente parcial exploração de terreno pode concluir, costuma tomar o partido da Ava, ao mesmo tempo que vê o Sinatra como um acossador que era dado ao álcool e ao maltrato à mulher.

Por exemplo, um dono de bar à beira-mar me comentou, entre terno e divertido, que Ava “era terrível” (hmmm) e fez menção ao seu fugaz caso com Cabré, o toureiro do filme.

De fato, Ava diria depois a um biógrafo que foi “só uma noite”, e que o toureiro era um “diablo guapo”. “Depois de uma daquelas noites espanholas românticas, cheias de estrelas, dança e drinques, me despertei e me encontrei ao lado de Mario Cabré”, conta ela em suas memórias.

Tossa, Sua Linda (Susana Bragatto / Folhapress)
Tossa de Mar, Vila Vella medieval, Catalunha. Ainda vou ter uma casinha dessas (Susana Bragatto / Folhapress)

Já Cabré, muitos anos depois, confessaria que se apaixonou pela diva “como un ceporro (panaca!)”. Também poeta, em seu “Dietario Poético para Ava Gardner”, de 1950, escreveu: “Rocio sobre amapolas, tus labios guardan asombros”….

Três anos mais tarde, em 1953, Ava viria a Madri para viver um tempo. Ali, teria um caso tórrido com outro toureiro, o lendário e controvertido Luis Miguel Dominguín, amigo de Dalí e de Franco, bróder do Orson Welles e do Hemingway (Hemingway, essa onipresença), mulherengo dukacete. Também causo pra outro artigo.

***

À noitinha, sento na areia fresca da praia de Tossa, entre famílias, casais e grupinhos barulhentos de xóvenes, para ver “Pandora”. Estou só. Venho quase sempre sozinha a Tossa. É meu refúgio, minha ilha da fantasia. Um dia, penso, vou ter uma casinha de pedra dentro da zona da “Muralla”.

Tossa foi declarada Monumento Histórico-Artístico Nacional em 1931 e é hoje o único pueblo medieval fortificado preservado de toda a costa catalã.

À direita do telão, um breve desvio de olhar nos leva para as torres da cidade amuralhada. Coisa mais linda. Com um perímetro de uns 300 metros quadrados, a cidade “Vella” foi construída entre os séculos XII e XIV como defesa contra a pirataria.

Lua cheia, Ava Gardner nadando nua no mar, ruínas medievais. E volto a pensar na simples letra de Paulo Onça em versão de Jorge Aragão ecoada horas antes. Confesso que não está nas minhas playlists, mas semeia em minh’alma uma estranha saudade de casa:

Queria o prazer do amoooor / Assim desejando estoooou
Só vou sossegar / Quando te conquistaaaar………..

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Por trás do Messianismo https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/08/06/por-tras-do-messianismo/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/08/06/por-tras-do-messianismo/#respond Fri, 06 Aug 2021 17:18:13 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/Lionel-Messi-durante-amistoso-entre-Barcelona-e-Arsenal-agosto-de-2019-Josep-Lago-AFP-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=927 Enquanto choram na Espanha por conta da saída do Messi do Barcelona, anunciada nesta quinta-feira (5), eu choro aqui no meu sofazinho por uma separação.

Daquelas, sabe? Que deixam a cara inchada de choro e matam o amanhã. Ainda que até amanhã.

Mas voltando ao Messi.

Os espanhóis e, notadamente, os “culés” (torcedores do FC Barcelona) estão tristíssimos com a saída do ídolo, ainda sem novo destino certo.

O motivo principal seriam “obstáculos econômicos e estruturais”, embora outros desgastes ao longo dos últimos tempos, como o já famoso quase-adeus do burofax, também tenham cumprido seu papel. Tudo é louro do Messi, tudo é culpa do Messi, OJogadorMaisFodásticoDoMundo. São quase 18 anos de clube. Um longo casamento.

Joan Laporta, presidente atual do FC Barcelona, apareceu nas manchetes de hoje afirmando que “O Barça está acima do Messi, e não vamos hipotecá-lo por ninguém”.

Mas o povo chora. Bancas de jornal amanheceram com a estampa do argentino em todas as capas; na tevê, breves entrevistas com seres de todas as nacionalidades e idades nas ruas de Barcelona repetem o invariável “fica, Messi”, e súplicas semelhantes.

(me pergunto por que não me entrevistaram, pra que eu pudesse dizer: “que se dane. Alguém me dá um trocado do salário de US$ 126 milhões que ele recebeu em 2020? Tô precisando de um Maserati”. E: “Neymaaaaaaaar, eôÔô”, só pra dar uma balançadinha)

Um argentino que vive em Barcelona (e há muitos) choraminga no microfone: eu só estava aqui por causa do Messi! Pra onde ele for, eu vou! E decreta: o turismo em Barcelona sem o Messi já era!!

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As imagens de Messi-Messi-Messi nos bombardeiam em meio às transmissões dos jogos olímpicos. O canal espanhol mostra uma entrevista com o carateca nativo que levou prata nos jogos olímpicos (a espanhola Sandra Sánchez levou o ouro, batendo a favorita japonesa Kiyou Shimizu).

Suado, ele passa a mão no topete, olha de soslaio pra câmera, sabe que é gato. Vale pontos na hora de conseguir sponsors.

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É evidente que a galiña dos ovos de ouro dos esportes hype hoje em dia irremediavelmente passa pelo merchandising centrado em figuras de idolatria.

Especialistas em negócios e mercadotecnia do esporte estão agora mesmo analisando o impacto econômico que poderá ter a saída do Messi para o Barça. Não será pouco.

O FC Barcelona é considerado o segundo clube mais valioso do mundo, empatado com o Real Madrid. Estima-se o valor de cada uma dessas marcas espanholas em US$ 1,4 bilhão, só superadas pelo Manchester, o clube mais frapfrap do mundo, avaliado em US$ 1,7 bilhão.

Os dois principais patrocinadores do Barça, Nike e Rakuten, estão devidamente de cabelo em pé com a notícia da saída do craque. Tinham acordos e campanhas já acertadas com o FCB e Messi.

A marca do FC Barcelona, obviamente, amparava-se muito no merchandising associado ao jogador, assim como em contratos publicitários e direitos de transmissão televisiva. Perderá, seguramente.

Estima-se que a marca Messi rende pelo menos o dobro do que rende qualquer outro jogador do time. Mais de metade do que se vende em roupas e acessórios oficiais está associada com o jogador, e mais da metade da bilheteria de partidas está vinculada ao craque.

Uma única camiseta da Liga com o número 10 no site oficial do clube pode chegar a custar 160 euros (ou quase R$ 1.000).

Um dos clássicos passeios turísticos em Barcelona era ver uma partida no Camp Nou com o Messi. O argentino virou um dos ícones da cidade, junto com os dragões de Gaudí. Agora… no more. Ainda que até amanhã. Lágrimas, lágrimas.

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Não é agressão homofóbica, é purê de batatas: investigação sobre morte de brasileiro desperta polêmica na Espanha https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/07/16/nao-e-agressao-homofobica-e-pure-de-batatas-investigacao-sobre-morte-de-brasileiro-desperta-polemica-na-espanha/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/07/16/nao-e-agressao-homofobica-e-pure-de-batatas-investigacao-sobre-morte-de-brasileiro-desperta-polemica-na-espanha/#respond Fri, 16 Jul 2021 20:55:00 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/bocas-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=884 Impressionante.

O recente assassinato de um jovem brasileiro despertou um monstro na sociedade espanhola.

Ou muitos –o que não é de todo mau. Saiam dos armários, monstros.

Às 3 da manhã do último dia 3 de julho, um sábado de reabertura pós-covidiana, Samuel Luiz Muñiz, 24 anos, nascido no Brasil e criado aqui por pai brasileiro e mãe espanhola, falava animadamente ao celular numa videochamada, acompanhado de uma amiga, numa rua movimentada de bares da Corunha, cidade da Galícia, quando passa um casal.

O cara –dizem — acabava de ser expulso da boate próxima por conta de tretas escandalosas com a namorada, que o acompanhava no momento. Pensa que está sendo filmado e, ato seguido, parte pra cima. O primeiro grito de guerra que se ouviu, segundo testemunhas, incluía a provocação: PUTO MARICÓN!

(“viado de merda”, em tradução livre e dolorosa)

Uns poucos dias antes, o país tinha se colorido para os protestos e festas do Orgulho. Também uns poucos dias antes, depois de muita disputa, aprovou-se finalmente o anteprojeto da chamada “lei trans”, que contempla direitos do coletivo LGBTQIA+.

Mais de uma dezena de caras se juntaram à cena, convocados pelo primeiro. Os investigadores acreditam que todos os agressores eram amigos e vizinhos, com idades que variam, estima-se, entre uns 17 e 25 anos. Alguns estão detidos, outros, ainda não.

Samuel foi encurralado por uma chuva de porrada. A perícia, analisando as gravações das câmeras de segurança no local, calcula que ele tentou esquivar os golpes por uns 200 metros antes de cair ao solo e ser morto por golpes que resultaram em um traumatismo craniano. Mas nem precisa câmera: há muitíssimas testemunhas.

Como se diz aqui: así de claro.

***

Com toda essa exposição, parece claro como o dia que, além de homicídio, deve entrar na conta dos agressores o agravante de crime de ódio –neste caso, com motivação homofóbica.

Parece claro, mas não é, gente.

Pois essa é a revolta. Os investigadores e parte da imprensa espanhola, como se manuseassem com patas de elefante a taça de cristal mais swarowskiana do mundo, hesitam em considerar o assassinato de Samuel um crime motivado por homofobia, porque, segundo os tais investigadores, seria complicado provar que os agressores já conheciam o Samuel e sua orientação sexual.

Oi?

Samuel Luiz Muñiz, morto em ataque na Espanha (Reprodução / Facebook)

Nos últimos dias (talvez na tentativa genuína de botar uns pingos em alguns iiis), alguns editoriais da mídia “variopinta” do país (adoro essa palavra, tão sonorososa) botaram de escanteio o PapoReto em prol de mil teorias criativas, entrevistas com “expertos” de toda sorte e azar etc.

Algumas dessas teorias se concentram em esmiuçar fatores “motivadores” do crime, como a namorada do cara (aaaah, mulheres, essas malditas), a infância triste do menino rico (a identidade de um dos agressores principais, conhecido apenas como “Álvaro F.” ou “Yumba”, seu apelido, começa a vir à tona), os partidos de direita e de esquerda (é verdade que Vox, partido de ultradireita, tem 45478908 incitações de ódio a 41835708 coletivos no currículo), a maconha, o haxixe, outras mil drogas, o alcoolismo entre jovens, o endless topic dos imigrantes e a cultura da violência com seus videogames e filmes de porrada.

Como disse essa pessôua abaixo, ecoando a pergunta de muitos:


Gente, vamos perguntar pra sobrinha de três anos que eu não tenho. Ela deve saber a resposta.

Vamos nos perguntar, de verdade, se linchar um cara a pontapés e socos até morrer ainda pode ser considerado culpa da sociedade, do videogame, do purê de batatas.

Coitados dos que foram obrigados a comer brócolis quando eram crianças. Talvez essa tortura imperdoável tenha gerado esses seres humanos distorcidos, com sede de vingança.

A maioria dos detidos até agora pela morte do Samuel nunca cometeu um crime –que se saiba. Mas eu discordo.

Imagino que suas atitudes criminosas começaram muito antes. No primeiro pensamento, no primeiro gesto de desprezo ao próximo, por Não Ser Considerado Igual. Caramba. Quantos pronomes teremos que usar, quantos fluxogramas e rodas vivas e defesas precisaremos inventar?

Os dois senegaleses que tentaram apartar a briga viraram microcelebridades e ganharam até promessa de regularização de papéis express do governo, abraços e agradecimentos on camera etc. Como se a legalização fosse um prêmio ao “bom imigrante”. Hm.

Notem bem, não que não seja bacana. Mas, gente… pensa. Se, ao invés de um imigrante considerado “exótico” (sim, falemos as palavras pelos seus nomes! eu, brasileira, aqui sou considerada “exótica” também, peraí que vou buscar minhas bananas!), fosse um branco cis local, duvideodó que haveria toda essa encenação condescendente e tipificadora.

Não preciso de phD em abaporucicabas pra ousar afirmar: que puta circo do c***.

***

Outro dia, conheci um jovem que saiu em tudo quanto é jornal aqui na Catalunha há coisa de um mês. Tinha um ostensivo olho roxo sobre a máscara e um talho na sobrancelha. Outro crime homofóbico.

Sobreviveu, sim. Com a mandíbula deslocada, dentes quebrados e uma conta no dentista de 7 mil euros (em torno de R$ 42 mil) que ainda não sabe como vai pagar.

Segundo diferentes associações espanholas vinculadas ao coletivo LGBTQIA+, está claro que há uma subnotificação de casos de homofobia no país.

O diretor do Observatório Madrilenho contra a LGTBfobia estima que apenas 30% ou, “extrapolando os dados”, como declarou a um jornal local, inclusive 2 a 5% dos incidentes chegam ao conhecimento institucional.

Além do mais, os últimos anos vêm registrando um aumento de incidências. Entre os motivos, comenta-se o fortalecimento do discurso de ultradireita, sobretudo materializado no partido Vox, o terceiro mais poderoso do país, e a volta à vida social pós-pandemia.

“Hoje, senti algo que nunca tinha sentido antes”, desabafou comigo o rapaz com o olho roxo. “Vesti uma camisa rosa, mas, na hora de sair, tive medo. Por causa de um pensamento que jamais teria me ocorrido antes: e se alguém decidir me agredir — pela cor da minha camisa?”

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Vai um abraço aí? https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/04/02/vai-um-abraco-ai/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/04/02/vai-um-abraco-ai/#respond Fri, 02 Apr 2021 14:31:26 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/Pili-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=640 — Não me meto porque não posso!!!

Demoro um milissegundo pra perceber que é com a gente.

O grito interrompe meu longo abraço com uma amiga numa calçada de Barcelona, numa tarde de sol. Fazia meses, quantos?, que a gente não se via. Maior emoção. Pandemia, u know.

A gente se aparta e vê uma señora de seus setenta, baixinha, óculos na pontiña do nariz, observando-nos com lágrimas nos olhos e as mãos dramaticamente entrelaçadas apoiando seu rostinho corado, os óculos embaçando em cima da máscara cirúrgica.

Saquei na hora. Perguntei: quer um abraço também? E tasco um puta abraço nela. Começa a se sacudir de choro. Os transeuntes nos olham com curiositê.

Mais calma, nos conta: perdeu o marido para um câncer de cólon fulminante no início do ano. Seu filho mora longe, em Valência. Só o viu pros atos funerários. Pandemia, pandemia.

Ela teve coronavírus, eu também. Seguem-se tapinhas empáticos nas costas. É duro, é duro. Mas estamos aqui.

“Não tenho ninguém, e há muito tempo não sei o que é um abraço. Obrigada, obrigada”, diz.

Maria del Pilar, Pili para os íntimos, é bailarina. Nos mostra fotos. Essa sou eu encenando a crucificação de Cristo, essa sou eu numa apresentação de tango. Aqui eu dançava sevillanas. Olha que pedaço de mulher eu era!

A gente aquiesce. Puta gata, mesmo. Minha amiga também é bailarina e coreógrafa, digo –de quê?, pergunta Pili. “De street dance”, responde a referida, modestamente. Pili faz cara de quem não entende e segue. Ela precisa falar falar falar, e desembesta a contar sua vida, os últimos meses, a mostrar fotos de seu marido, um simpático senhor com bigodinho grisalho, que por sinal, penso, parecia um pouco com meu tio.

“Nos últimos anos, comecei a me apresentar em residências geriátricas”, conta. “Tadinhos dos velhinhos. Tão sozinhos”.

Os asilos foram um dos maiores focos da pandemia espanhola, com milhares de mortos e denúncias de abandono e maus tratos.

Ela diz que um dia uma senhora numa cadeira de rodas, as mãos crispadas por artrite e outros paranauês pouco amáveis da idade, se recusou a jogar dominó com os companheiros. Desanimada, desencorajada. Pili tascou: olha. Se você só tivesse meia hora de vida, você jogaria? E a velhinha entrou no jogo.

Em outra conversa numa dessas visitas a uma residência, comentou a um señor uma dessas filofrases básicas que não escreveu a Clarice mas todo mundo tatua na bunda: a vida, seu Pepe, é um momento. “Às vezes, nem isso” –retrucou Pepe, esse sábio desconhecido.

Tento me despedir inúmeras vezes. Minha amiga é mais suave que eu, mas mesmo minhas habilidades cortantes falham aqui. Pili nos sorve até a última gotiña, como água no deserto. Não quer deixar a gente ir. Pergunta aonde vamos, onde vivemos, e, finalmente, dou meu número pra ela. “Posso te mandar bom dia, boa tarde e boa noite com corações?”, pergunta ela. Eu respondo, sacando o máximo de bom humor de minhas profundezas biliosas: Pilar, se você fizer isso, juro por Dios que te bloqueio.

Quando já nos íamos, ela grita à distância: ei, vocês gostam de frango? Porque o frango assado do Carrefour, meninas, é uma delícia, e está muito bem de preço!! E, borbulhante como veio, se esvai pela tarde de luz primaveril.

Pili, Pili. Pequenas grandes significâncias da pandemia. Em tempo: até agora, não me mandou corações pelo whatsapp. Mas a linda foto que vocês veem neste prosaico artigo, sim. Bailando, bailando…

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Nossos belos corpos de cada dia https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/03/26/nossos-belos-corpos-de-cada-dia/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/03/26/nossos-belos-corpos-de-cada-dia/#respond Fri, 26 Mar 2021 23:48:11 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/ruiz_andrea01-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=632 Outro dia, num desses friflannigans casuais pelo buraco negro da internerd, topei com uma capa da revista feminina Cosmopolitan dos anos 1980.

Tava lá, adornando a figura de uma mina de maiô lilás cavadón e topete do picapau: “As estrelas da TV ensinam seus segredos para se manter lindas e magras”.
E: “A forma ideal feminina –como você se compara? (confira nosso gráfico para descobrir)”.

Por todas as deusas! A.Forma.Ideal.Feminina.

Thanks god(ess) que estamos em 2021, O Ano Em Que Podemos Ser Livres Pra Ser O Que Quisermos.

Ou não?

No último ano, o longo confinamento por que passamos nós e, por consequência, nossos corpiños, sem dúvida alimentou a sanha do ser humanus por ver e ser visto na internet. Por se sentir melhor. Tamo/távamos em casa de bôuas (ou de malas) com níveis astronômicos de ansiedade, mesmo. Sozinhos. Carentes. Preocupados. Bora dar scroll numas fotinha pra esquecer os noticiários. Nenon?

Ao longo dos meses, pulularam tik tokers (tik tok, esse bagulho estrela do lockdown) e influencers de redes sociais posando com filtros e biquinhos e traseiros overempinados, ocasionalmente tacando alguma peça de homewear ou um bowl de salada no composê e legendando com algo tipo: “ao natural”, “vamos nos cuidar”, “ser feliz”, essas merdas.

Ao natural my ass, e com muita celulite.

O mundo retocado pseudoespontâneo das redes, evidentemente, pode levar o cidadão ou cidadã, mirim ou não, a se comparar. A virar voyeur de modelo de instagram. Ou, ato seguido, a sentir-se o cocô do cavalo do bandido por não ter 1804791 seguidores e 1074701804189 likes ou a bunda da Kardashian.

Por isso, o projeto Anatomia do Confinamento, da fotógrafa barcelonesa Andrea Ruiz, me chamou a atenção.

Ao longo de 2020, Ruiz juntou autorretratos de 61 mulheres. Realizados em diferentes lares entre França, Argentina e Espanha, coletam corpos, a maioria, desnudos; inteiros ou fragmentados. Sinceros.

Ação traz reação: esse é um dos protestos artísticos que GRAÇAS A LAS DIOSAS têm emergido para se contrapor à corrente elegíaca do PadrãoDeBeleza e da objetificação do corpo feminino. Outro projeto que adoro, de uma dupla de mãe e filha, na linha quesef***vamosernóisaindaquecusteumaslágrimas: @stylelikeu. Etc.

Nos instantâneos reunidos por Ruiz, não há retoque, não há manipulação mais do que o desejo individual de se mostrar sem amarras, sem moldes ou poses pré-fabricadas, sem medo de ser o que se é, sem a intermediação de outro olhar. Com estrias, pelos, “michelínes” (gíria espanhola pra pneuzinho), cicatrizes, barrigão nada encolhido. Ô, coisa difícil não (se) julgar, não?

“Sempre tive a inquietação por mostrar aquilo que não se vê, que escondemos ou que a sociedade invibiliza”, conta a fotógrafa, que também mantém uma conta no Instagram, @mespapaia, dedicada a “compartilhar informação sobre ginecologia autogestionada, menstruação consciente, ativismo feminista e temas relacionados”.

“Durante a quarentena, tinha claro que precisava fazer algo com todas essas mensagens negativas sobre o corpo que chegavam a nós, mulheres –mantenha a forma durante a quarentena, fique ‘guapa’ para quando acabe o confinamento etc”, exemplifica.

A partir daí, propôs o projeto nas redes e começaram a chegar voluntárias, muitas.

As fotos são todas sem rosto e anônimas. Não só para despersonificar as personagens e facilitar sua participação; também para que “qualquer mulher possa se identificar com os corpos e pessoas que veem nas imagens”, diz Ruiz.

Gosto de pensar nos sentimentos embebidos nas imagens. Nestas, eu vejo amor e aceitação. Bora nessa.

A coletânea pode ser vista na web da artista e, até o fim de março, no Espai Jove Casa Sagnier, em Barcelona.

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Jovem espanhola viraliza com discurso de ódio https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/02/19/jovem-espanhola-viraliza-com-discurso-de-odio/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/02/19/jovem-espanhola-viraliza-com-discurso-de-odio/#respond Sat, 20 Feb 2021 00:08:04 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/gesto-nazi-isabel-peralta-1129395-1-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=548 Espanha, ano do boi de metal do calendário chinês. No mesmo dia em que o rapper Pablo Hasél foi preso, provocando uma série de manifestações pela liberdade de expressão em todo o país, outro “ícone” jovem ascendeu ao pódio midiático e virótico das redes.

Mas por motivos bastante diversos.

Foi no último sábado (12), em Madri, durante um evento de umas 300 pessoas convocado pela organização neonazista Juventude Patriota.

Durante o ato –uma homenagem à Divisão Azul, formada por voluntários espanhóis que lutaram na Segunda Guerra Mundial sob as ordens de Adolf Hitler –, assume o microfone uma moçoila.

Entre outras pérolas, ela mandou esta: “O inimigo sempre vai ser o mesmo, ainda que com distintas máscaras: o judeu. Porque não há nada mais certeiro do que esta afirmação: o judeu é o culpado.”

Ora, que loucura, um cara preso por cantar contra a monarquia e uma adolescente solta fazendo Heil Hitler de rouge allure.

Pera. Antes de seguir, contemplem:

Vejam a foto e me digam se a carinha de influencer do Instagram não é, infelizmente, parte inapelável do show.

Junto com a aparência, as caras e bocas com que pontua seu discurso viraram meme, comentário, presença replicada por 1308741708 em nossas retinas cansadas de tanta notícia.

(e por mim aqui também, porque, não, a gente não pode deixar quieto)

Claro que viralizou, a desgraçada.

***

Isabel Medina Peralta, 18, estudante de História, é filha de Juan Manuel Medina, atual membro do Partido Popular. Trata-se de um direitista de carteiriña, com passado vinculado à Aliança Nacional, partido neonazista espanhol.

Pois, pasme, esse pai ultraconservador (e é ela quem conta em uma das muitas entrevistas que ‘ganhou’ nos últimos dias) a expulsou de casa, alarmado e farto de tentar tirar os nazilivros de suas mãos. “Meus pais não me dirigem a palavra”, disse.

Com a imediata viralização do discurso antissemita da jovem esta semana, alguns foram logo conectando a nazitrupe ao Vox, partido de ultradireita espanhol, afeito a discursos xenófobos, homofóbicos e racistas.

Em uma conta do Twitter que desde então foi encerrada pela plataforma, Peralta retrucou: nananina. “Eles [Vox] são sionistas, capitalistas, democratas e constitucionais. Nós, não”. Ahtá.

O baile contraditório de -ismos e outros supersuprainfraconceitos nas falas da xovem me dão cócegas. Tristeza. Histeria. Horror.

A menina se declara “fascista”, mas partidária de um “regime socialista”.

Ela nega, no entanto, a alcunha de “influencer nazi” que algum órgão de imprensa lhe deu. “Nunca me definiria como nazista”, disse, em entrevista ao jornal El Español, que a apelidou de “musa falangista”, em referência ao a uma das primeiras agremiações políticas fascistas da Espanha. “Me considero nacional-socialista e fascista, mas, pra mim, nazi é só um rapado que aparece nos filme de Hollywood”.

Hmm.

Anote, que vem então a receita infalível pra ser um bom nacional-socialista-não-nazi: “nele, impera a elegância, escuta Wagner (sic), não se dedica a bancar o malandro ou ao vandalismo, mas luta por uns ideais e segue firme com eles”.

Antes de ser justamente expelida das redes sociais, Peralta chegou a brindar o universo com outras atrocidades. “Nossa civilização se afunda no ocaso de um arco-íris nauseabundo”, tuitou, numa wagneriana trovinha homofóbica.

Em outros momentos, chamou imigrantes de “bazófia (lixo, resto)” que se dedica a “violar e roubar”, declarou ser racista (“não estou a favor da mestiçagem”…..ಠ_ಠ!!), contra o feminismo (“desvirtua a mulher e a manipula”), e por aí vai, porque chega de dar ibope pra tanta mierda.

Não, não podemos tratá-la simplesmente como uma jovem ensandecida de batonzinho vermelho. Infelizmente, é muito mais do que isto. Atrás de uma ‘influencer’ dessa vem gente bailando com a flautinha de Hamelin.

A Federação de Comunidades Judaicas da Espanha (FCJE) condenou o discurso de Peralta e demandou uma investigação pública por crime de ódio.

Isabel, do hebreu Elisheba. Peralta, de Pedralta, zona alta de Navarra, e Medina (cidade, em árabe) –ambos, sobrenomes toponímicos adotados por muitos judeus sefarditas ao longo dos séculos.

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