Normalitas https://normalitas.blogfolha.uol.com.br Espanholices, maravilhas do ordinário, brotos de brócolis Sat, 04 Dec 2021 00:01:00 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Uvas, máscaras, vacina: qual delas poderá (realmente) conter o vírus? https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/11/19/uvas-mascaras-vacina-qual-delas-podera-realmente-conter-o-virus/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/11/19/uvas-mascaras-vacina-qual-delas-podera-realmente-conter-o-virus/#respond Fri, 19 Nov 2021 21:14:57 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/grapes-3696472_1920-1-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=1175 Estamos, eu e ela, observando-nos em silêncio. “Que merda”, consigo dizer.

A tia. De apenas 45 anos. Saudável, sem nenhum problema anterior de saúde. Faleceu. De Covid.

A conversa é especialmente triste porque estamos a um oceano de distância de entes queridos. Os seus, em Minas; os meus, em São Paulo. A saudade e a sensação de impotência são sintomas pandêmicos comuns entre nós, imigrantes que, por escolha ou destino, deixamos o nosso país e, com ele, parte de nossa família –pelo menos até a próxima viagem.

***

Well, well, enquanto isso, eis que o coronavírus está botando suas proteínas de fora na Europa mais uma vez.

E uma das perguntas que não quer calar é: será a vacina realmente suficiente para conter uma sexta-sétima-nonagésima onda de contágios?

Embora, por enquanto, os epicentros do novo surto sejam países como Áustria e Alemanha, a Espanha, que já desfilou pelo Top 5 covídico mundial, começou também a monitorar mais de perto o comportamento pandêmico em seu território.

Verdade que cabem 17 Espanhas no território brasileiro, e comparações seriam simplórias. Mas, em dimensões relativas, a Espanha não deixa de ser o quarto maior país da Europa, e o contraste no ritmo de contágios conforme a região é grande.

Ruas de Barcelona no verão, julho de 2021 (Susana Bragatto / Folhapress)

País Basco e Navarra, por exemplo, apresentam as maiores incidências acumuladas do país nos últimos 14 dias, com 214 e 315 casos por 100 mil habitantes, respectivamente.

Em contraste, Madri, que, com Catalunha, liderou o ranking nacional de contágios durante o primeiro ano da pandemia, tem agora mesmo 93 casos por 100 mil habitantes (Catalunha, 155 por 100 mil, exatamente no limiar estabelecido como preocupante pelas autoridades sanitárias).

À parte as diferenças regionais, há uma tendência geral de aumento de casos. A média nacional atual é de 112 casos por 100 mil habitantes, e houve um aumento de 19% de hospitalizações por Covid só na última semana.

Fila da vacinação diante do Hospital Sant Pau, em Barcelona, julho de 2021 (Susana Bragatto / Folhapress)

Uma certa alta de casos é esperada devido à temporada de inverno. Segundo um porta-voz da OMS, a Espanha estaria sendo “poupada” de cenários mais dramáticos por conta dos bons índices de vacinação (79% da população com a pauta completa, e agora alguns grupos de risco partindo pra uma terceira dose), o uso da máscara (apesar de não ser mais obrigatória nas ruas, muita gente ainda usa, e todos estamos obrigados a utilizá-la em ambientes fechados) e o clima ameno, propício para uma vida mais outdoors mesmo em temporadas frias.

Mas a situação europeia pede cautela. Ultimamente, como em outras partes, é comum ver imunologistas e técnicos do governo espanhol afirmando que a imunização pelo duplo shot de vacinas pode não ser suficiente para conter o avanço do vírus.

Dá o que pensar: a Catalunha acaba de divulgar que 64% dos hospitalizados atualmente por Covid são gente imunizada com a pauta completa (em contraste, o índice nacional de imunizados hospitalizados por Covid atualmente é de 40%). A região já vacinou completamente 77% da população.

Os bascos, com 81,7% da população vacinada e o maior índice acumulado de casos da Espanha, estão se preparando judicialmente para impor o passaporte Covid em atividades de ócio a partir da semana que vem, como já vêm fazendo comunidades como Galícia e Catalunha.

Isso significará a obrigatoriedade de apresentar o certificado de vacinação ou teste negativo para ter acesso a atividades culturais, concertos e bares ou restaurantes com mais de 50 pessoas.

Reabertura dos bares e restaurantes durante o verão 2021, Espanha (Susana Bragatto / Folhapress)

Enquanto o frio vem chegando e os dados vão subindo, tem gente preocupada se perguntando como serão o Natal e o Réveillon 21-22 –incluindo o comércio e o setor hoteleiro, combalidos após um ano e 9 meses de luta contra o vírus.

Por enquanto, só digo que a celebração máxima, epítome da cafonice indispensável de anus novus –a contagem das 12 badaladas na Puerta del Sol, a praça mais importante de Madri, transmitida em cadeia nacional –está garantida.

Quer dizer, não tem nada garantido nessa vida. Mas, seja lá como for, em alguma dimensão das 18047880897 estelares existentes, lá estaremos na nochevieja com a tevê ligada, vendo apresentadores embrulhados em lamê com suas taças de espumante ciciando amenidades enquanto esperamos com as 12 uvas verdes no pratiño –uma pra cada gongada. Pra dar sorte. Muita. Que desta vez vai.

 

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O sonho da bolota https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/10/10/o-sonho-da-bolota/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/10/10/o-sonho-da-bolota/#respond Sun, 10 Oct 2021 17:08:57 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/quimet-prato-vazio-1-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=1095 (Parte II: O Âmago)

Eu lembro que eram dias frios, e que o chão estava coberto delas. As bolotas de espinhos. Que soltavam gritos bichóvicos de agonia à medida que eu avançava, hesitante e hipnotizada, massacrando-as com minhas galochas de borracha. Solene e mórbida, eu ia pedindo desculpas.

As cúpulas das castanheiras se juntavam num abraço, e a luz filtrada sobre nós me fazia pensar em capelas marcianas, o luto da avó, alfaces hidropônicas.

Não. Sou uma mentirosa.

Porque, naquele longínquo tempo, quando minha cabecinha dura batia nos cotovelo dos adulto, minha avó ainda vivia, eu ainda não tinha visto um marciano (mas isso fica pra outro dia) e não fazia ideia de que um dia faria ideia do que são alfaces hidropônicas.

O sonho da bolota…

Agora, uma verdade: eu-pequena achava que castanha e ouriço-do-mar eram meio que a mesma coisa, do mesmo jeito que Bagu, nosso jabuti, era meio que uma tartaruga, só que de terra.

O fato é que o contraste entre a casca hostil e a maciez amadeirada das bolotas de castanhas foi pra mim uma das primeiras Pequenas Grandes Impressões De Sei Lá Quê Sobre A Vida.

A gente coletava ouriços-de-castanha nesse bosque perto do sítio dos meus avós japoneses em Piedade, interior paulista, e minha mãe preparava uma compota com essas castanhas que meu pai comia de colherada. Sinceramente, eu via mais graça em pavê de chocolate.

***
Ora, ora. Anos depois, aqui estou eu, ainda batendo a minha cabeça dura nos cotovelo dos adulto, falando como se soubesse do que tô falando sobre, quem diria, uma pequena porção de castanhas confeitadas sobre cama de foie gras num boteco barcelonês.

Inesquecível foie gras com castanhas e cogumelos do Quimet & Quimet, em Barcelona: ayyayaye (Susana Bragatto / Folhapress)

A culpa dessa microrreviravolta, já disse na parte I desse artigo, é do Anthony Bourdain. Que eu curto tirar o meu da reta e adoro uma simplificação.

Em seu livro Cozinha Confidencial, que o lançou à fama de chef-roquenroler-arretado, ele recorda uma viagem que fez quando criança à França, com os pais e o irmão.

Além de a trip virar uma école-infantil-da-boemia-criminal pro Bourdainzinho, com cigarriño entre amiguinhos franceses aos domingos e “vin ordinaire” diluído pras crianças, foi aí que ele teve seus primeiros Assombros Com A Comida/Vida.

Primeiro, por meio de uma sopa Vichyssoise a bordo do navio (“fria!”, recorda, pra seu espanto).

Depois, uma ostra. Sugá-la recém-abatida direto da concha diante dos pais, do pescador grosseiro véideguerra e do irmão pequeno, encolhido de asco, era ir contra o mundo, era ser marvado, era ser fodão. Comer aquela gosma meio-viva, meio-sexual, extraterrena era saltar ao desconhecido, ganhar superpoderes, transcender o inominável. “Everything was different now. Everything“. Pronto, eis como nasce um caráter (torrey anos de terapia com essa frase).

Assim, é fácil entender por que o Quimet & Quimet, bodega centenária localizada em um bairro popular de Barcelona, pouco mais que uma portinhola abarrotada de vinhos e produtos de mercearia boiando em bandejas de metal, ganhou o corazón do Bourdain. Ele amava Barcelona e amava esse buteco. Vejamos.

Quimet & Quimet, bodega centenária no bairro de Poble Sec, em Barcelona (Susana Bragatto / Folhapress)

Terminei o artigo anterior dessa coluna falando que o dono do bar era ríspido ou, pelo menos, antipático, comparado com o nosso espírito hospitaleiro brazilêro. Tenho um estranho fascínio por esse tipo de gente. Banquei a submissa-bajuladora: pedi uma recomendação.

E veio a primeira, sem um sorriso, mas, segundo consta, bem harmonizada: um vinho branco fresco com um “montadito” (cousas sobre uma torrada) de anchovas sobre pimiento de piquillo (espécie de pimentão vermelho assado em conserva, onipresente na culinária botequística espanhola) e coroado por uma guindilla (pimenta) curtida no vinagre.

“Montadito” de anchovas e piquillo do Quimet & Quimet (Susana Bragatto / Folhapress)

Quim, o señor supracitado, é pai do Quim, que também nos atende. O jovem é a quinta geração de Quins. Jeez.

São pouco mais de sete da noite de uma quarta. Locais e turistas vão surgindo dos buêro, formando fila e burburinho na entrada. Quim (de Joaquim, Quimet, em catalão) pai e Quim filho me explicam: tenho 45 minutos. Porque há lista de espera, e é necessário rotatividade.

Parto sem pausa pro segundo round: uma “tapa” (porção) de nêsperas (outra memória da minha infância) em calda com queijo de cabra e mais anchovas. Por cima, uma translúcida emulsão de vinagre que é dichorá de alegria. Vem também a famosa “tapa” de foie gras com compota de castanhas, algo de que nunca más me olvidaré.

Nêsperas da minha infância e tomaaaa mais anchovas no Quimet & Quimet, em Barcelona (Susana Bragatto / Folhapress)

Desta vez, peço um tinto e provo o Venta las Vacas 2015, um Ribera del Duero deliciê cujo distribuidor se chama, auspiciosamente, “uvas felices”.

“Quando o bar abriu [em 1914], essa região já era urbanizada”, conta Quim-pai. “Nossos fregueses eram gente do bairro: trabalhadores portuários, pequenas oficinas — todas essas lojas que agora estão fechadas ou são casas pertenciam a pequenos negócios… eram açougueiros, ferreiros, lavadeiras, sastres (alfaiates)…”.

O Quimet & Quimet, no mesmo endereço desde o princípio, seguia a estrutura das vivendas da zona: na parte da frente, o pequeno negócio; na parte de trás, o lar. “Toda a minha família nasceu aqui, e eu cresci nesta casa”, conta.

Quimet & Quimet from the sarjeta (Susana Bragatto / Folhapress)

Segue-se uma “tapa” de carrillada de cerdo ibérico (bochecha de porco) com fios de ovos, pimentão e outras simples maravilhas. A carne é overmacia, puxada no vinagre.

Bourdain, lembra Quim, apareceu no bar pela primeira vez lá pelos idos dos 2000, trazido por um amigo em comum, o chef estrela Michelin catalão Ferran Adrià, até hoje frequentador do local.

“Hoje em dia é normal, está por toda parte, mas naquela época eram uns três ou quatro ‘gatos’ que tinham essa relação roquenrol e aventureira com a comida”, comenta Quim. “Aquela geração de chefs tinha um caráter muito mais humilde”.

“A influência desses personagens foi tremenda, mas não só sobre o Quimet & Quimet, e sim sobre Barcelona como um todo”, diz. “O ambiente hoje em dia mudou muito com o Covid, mas naquela época havia turistas que vinham à cidade para ver a Sagrada Família e turistas que vinham expressamente para comer em Barcelona”.

Aliás, comenta, isso acontecia em toda a Espanha. “As pessoas vinham tanto para provar a nova cozinha quanto a clássica. Esses chefs também tinham de característico jamais desprezar a cozinha de sempre –ao contrário, valorizaram-na muito. Foram inovadores até nisso”.

Como muitas bodegas, o Quimet não tem cozinha, e tudo, preparado diante de nossozóio, sai de latas e vidros em conserva –mas QUE conservas.

Quim, quarta geração familiar à frente do Quimet & Quimet, em Barcelona (Susana Bragatto / Folhapress)

Enquanto meus cotovelos esfriam contra o metal prateado do balcão, diante de mim se desenrola uma ininterrupta coreografia tira&põe de bandejinhas coloridas dentro de uma vitrine de vidro.

Em cada uma, empilhados, curtidos, mergulhados, curados, escabechados ou caramelizados, anchovas do cantábrico, cecina (carpaccio de atum), pulpos recheados, mexilhões do tamanho do dedão do pé do Tostão, pimientos, berberechos, salmões, queijos, azeitonas gordas, bacalhau, nêsperas em calda, favas asturianas, alcachofras, camarões, fios de ovos, ovas, ostras, sigo?, o foie, QUE FOIE É ESSE, MINHA GENTE.

Acepipes dus dioses no Quimet & Quimet, Barcelona (Susana Bragatto / Folhapress)

“Aqui, com o tipo de comida que servimos, que não tem nada a ver com a cozinha que praticavam esses chefs que nos visitavam, sempre nos apoiaram e valorizaram muito”, conta Quim.

E como era o Bourdain no Quimet?

“Muito cordial e simples… mas [essas são pessoas que] buscam mais o conceito: sei lá, quem sabe não falemos de família ou de futebol ou música; mas falamos de comida”.

A essa altura eu tô concentrada numa porção de alcachofras com pasta de pimentão e caviar e outra de pupurri de frutos do mar, incluindo uma muy fálica navaja que tento inutilmente desfalificar pra foto.

Melhor mexilhão em lata da vida desta que vos escreve (Susana Bragatto / Folhapress)

Pergunto ao Quim do que o Bourdain mais gostava no bar. “Le encantaba el pimiento“, dispara, rápido.

“É um contraste, porque o Ferran (Adrià) não gostava de pimentão”, lembra. Mas tanto faz: no fim, “o que importa é a qualidade do produto. Trata-se de buscar a melhor matéria-prima, a elaboração, e luego a combinação pode ser melhor ou pior. Mas, se o produto não é bom, se acabó Hola!“.

E, assim, sem nenhuma palavra mais, Quim-pai me abandona pra se ocupar, com sua seca e eficaz amabilidade, de outros fregueses recém-chegados.

Ah, o charme catalão. Diretos como um jab de direita numa liquidação da Zara. O amor sem tapinha no ombro, mas amor.

E assim vai se encerrando o ato dois da noite Frinder co’s Quim: apaixonar-se.

Primeiro, uma sensação crescente de conforto e familiaridade vai inundando o corazón. O vinho ajuda, claro. Também ao observar o movimento, pouco a pouco o visitante vai se integrando, sentindo-se mais próximo dos outros comensais. À minha esquerda, há um cara que eu juro que é famoso. Ou não. A gente se entreolha e sorri, confraternização de bar é assim em qualquer canto do mundis. Nunca vou saber quem é, mas, de verdade, não me interessa.

Só há tempo para um epílogo, que meu tempo-no-bar já acaba –e tinha que incluir mais castanhas.

De saída, um casal de idosos passa por mim gritando ao Quim-pai: “que maravilha de castanhas com vinagre! O que que é aquilo! Adeu, adeu!“. Ato seguido, lá tô eu comendo castanhas com vinagre. E queijos de proximidad sem conservantes acompanhados de uma gelatina de vinho moscatel. Eu queria outra taça de tinto pra acompanhar, mas o Quim-pai é taxante: nem pensar. Se quer algo com o doce, vai tomar o que eu der.

Sim, senhor. Cacilda. Obediente, provo uma sidra moderadamente ácida e nem de longe borbulejante e genérica como as Xereser de minha juventud (me desculpem os expertos).

Queijos com gelatina de moscatel do Quimet & Quimet, Barcelona (Susana Bragatto / Folhapress)
Sidra artesanal no Quimet & Quimet, Barcelona (Susana Bragatto / Folhapress)

***

“Nunca foi minha intenção ser um repórter, um crítico, um porta-voz”, declarou Bourdain uma vez. “Sou um contador de histórias. Eu vou pros lugares, eu volto. Eu conto o que esses lugares me fizeram sentir”.

Deu a minha hora. Já vou, já vou. Só me deixam terminar a sobremesa rapidim, mas ó, déiz minutiño y tchau tchau tchauuuu.

Semi-enxotada, de pança cheia e com uns vin na cabeça, sento na sarjeta do outro lado da rua com meu amigo, que chegou no meio da velada pra me ajudar ca comilanzza. Enquanto fumo um cigarrinho roubado (parei, mas hoje não), contemplo o burburinho incessante diante daquela portinha de moldura vermelha que me devolveu as castanhas da minha infância.

Bourdain, Bourdain. Tô contigo.

 

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Este artigo não é sobre um aperitivo de foie gras com castanhas https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/10/03/este-artigo-nao-e-sobre-um-aperitivo-de-foie-gras-com-castanhas/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/10/03/este-artigo-nao-e-sobre-um-aperitivo-de-foie-gras-com-castanhas/#respond Sun, 03 Oct 2021 18:40:29 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/quimet-foie-com-castanhas-1-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=1071 (Parte I: O Entorno)

Pronto, o elefante gourmet na sala.

Isso que eu conto aconteceu quase uma semana atrás. Mas ainda persiste em minha memória, fresca y aromática, a combinação (pra mim) inédita de sabores, arrematada por finas lâminas de champignon com seiláque bruxarias.

Tudo culpa do Anthony Bourdain, penso.

Sou uma p* pagapau. Naquele dia, quando saí de casa, tava ansiosa como se fosse trombar um match do Frinder pela primeira vez.

Desci na estação de metrô Parallel, zona oeste de Barcelona, microtaquicárdica.

Na saída, passo pela famosa sala Apolo, um espaço de espetáculos y nightclub onde já tocou de Smashing Pumpkins a (com todíssimo respeito) bandas de amigos.

Ali perto, avisto também um edifício fechado onde, até a pandemia, havia um clube de striptease. Ecos da época de ouro da avenida del Paralelo e seu burburinho cultural, com cinemas, teatros, circos, contrastes. Até hoje, o quarteirão ainda guarda um arzim meio Moulin Rouge versão remelexo-Augusta.

Aaah, Barcelowna. Nesse bairro popular que se chama Poble Sec (literalmente, “Vila Seca”), tem de tudo. Vai vendo.

Alguém tomando um pico de heroína na maior tranquilidade, enquanto o entardecer dourado acaricia cabeciñas brancas de anciões locais a passeio.

Turistas rubios (loiros) olhando pro céu enquanto arrastam maletas ou tiram fotos, alheios ao cara vomitando num canto imundo, o rosto congestionado de sofrimentos.

(É. E tem gente que pensa que aqui nazoropa num tem disso)

Lojinhas minúsculas oferecendo fotos pra documentos, capinha pra celular, frutas, bocadillos de chorizo e dois coquetéis por um.

Passo por uma mina tranquilamente lendo um livro escorada numa árvore da calçada. Uma senhora com pinta de 105971086 cirurgias plásticas, os peitos brilhantes saltando de um apertado corset verde. E uns jovens altíssimos gritando em árabe entre si, com seus relógios dourados, perfumes contundentes e moletons oversize onde se lê

Balenciaga Balenciaga Balenciaga.

E eu, com meu vestidinho amarelo e minha sandalinha de couro fazendo tec tec no asfalto sujo.

Na esquina do meu destino, um Burger Kingui. O nome da rua é de um poeta pré-romântico chamado Cabanyes. Mas isso foi ideia dos franquistas. Eles deram uma “disfarçada” no nome original, que fazia referência a outro Cabanyes –este, um herói militar catalão nas batalhas contra o exército espanhol de Felipe IV no século 17.

***

Quando finalmente chego onde tinha que chegar, bizoiando do lado oposto da calçada, brota em minh’alma o primeiro julgamentozinho negativo: putz, não é o que eu esperava. (E o que eu esperava? Glamour, tapetes vermelhos, faisão à Provençal (que p* é essa?!)?)

Expectativas, essas sandalinhas de couro fazendo tec tec no asfalto sujo.

Quimet & Quimet (esse é o nome do meu date-destino) é um dos bares mais icônicos de Barcelona. Já era popular antes mesmo de virar parada turística obrigatória nos anos 2000, quando foi super elogiado pelo chef rocker Anthony Bourdain, de passagem pela cidade.

Essa pérola da gastronomia botetística está afincada no lugar onde tem que estar, desde 1915, quando o primeiro Quim (“Quimet”, em catalão) de uma longa linhagem de boteco owners servia bebidas e comidas para os trabalhadores da vizinhança obreira de Poble Sec.

Fachada do bar Quimet & Quimet, em Barcelona. A noite tá só começando e já tem fila (Susana Bragatto / Folhapress)

Bourdain, que foi ao Quimet & Quimet muitas vezes (a primeira, sendo levado por seu amigo local, o super estrelado chef Michelin Ferran Adrià) era fã da chamada “cozinha de mercado” ou, em catalão, “cuina de mercat”: basicamente, comida simples e deliciosa, com ingredientes frescos e de qualidade. Barcelona era um de seus lugares favoritos no mundo.

Explorar um lugar novo, pra ele, era o grande tesão. Não saber. Dar tudo errado. Nunca dar errado. Surpreender-se, surpreender. Enjoy the ride. Etc.

“Tenho uma tatuagem no braço que diz, em grego antigo: ‘Não tenho certeza de nada'”, escreveu ele uma vez, no seu característico estilo f**-se. “Acho que é um bom princípio operacional. Adoro aparecer num lugar pensando que vai ser de um jeito e tendo todo tipo de preconceitos estúpidos e, mesmo que de uma forma dolorosa e embaraçosa, verificar que estou errado. Se você conseguir aprender um pouco mais sobre o mundo a cada dia, já é uma vitória (it’s a win)”.

***

Imbuída desse espírito bourdiano, respiro fundo e atravesso a rua. Em geral, até que me considero valiente, mas hoje me sinto meio sem jeito de entrar no meu date-destino sozinha. Tec, tec.

A fachada de madeira pintada de vermelho profundo emoldura um ambiente diminuto, quase um cubículo, com umas três ou quatro micromesinhas onde alguns começam a se reunir em pé com seus drinques e tapas (pequenas porções de comidiñas). O bar acaba de abrir para o turno da noite.

As paredes estão cobertas de latas e vidros de conserva e garrafas de vinho e cerveja e uísque inglês até o teto, onde baila um ventilador desses bailantes tipo Martin Sheen pirando no hotel em Apocalypse Now.

Eu logro conseguir um lugarzinho no balcão, onde esparramo meus cotovelos, ladeada à esquerda por um homem que devora um prato de anchovas e cremes profusos e, à direita, por duas turistas que brindam com cava rosada enquanto pedem um negócio que parece pêssego em calda –com anchovas.

O dono do bar é ríspido, daquele jeito catalão que magoa uma sensibilidade brazilêra. Já tô com medo dele.

(Continua….)

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Com 80% de vacinados, Espanha espera uma discreta alta de casos no outono https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/09/17/com-80-de-vacinados-espanha-espera-uma-discreta-alta-de-casos-no-outono/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/09/17/com-80-de-vacinados-espanha-espera-uma-discreta-alta-de-casos-no-outono/#respond Fri, 17 Sep 2021 20:47:08 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/café-e-morangos-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=1051 No bar, de manhã. Portio café bar, diante do maravilindo parque do Clot, Barcelona, pra quem está na área. Comum, pros olhos comuns.

Sento lá pra desfrutar de um americano antes de ir ao trabalho. Desfrutar, essa palavra que se usa tanto aqui. Sol ardido, aquecimento global mediterrâneo. Gente local acha engraçado eu ser brasileira e dizer que o calor aqui ultimamente consegue ser pior que São Paulo metida no engarrafamento da Vinte e Três de Maio ao meio-dia de um verão.

Também, os espanhóis não sabem o que é engarrafamento –digo yo, não sem um orgulho imbecil.

Mas, voltando ao bar.

O dono, wapo (guapo, bonitón) senhor de olhos verdes cansados, sempre atende com simpatia. Parece uma dessas naturezas tipo deixa-rolar que não retêm o dia de ontem –embora o canto caído das pálpebras me sugira nostalgia.

Olhaí, esse é o Bar das Digressões.

Oito e meia da manhã e dois caras no terraço ao meu lado com encardidas camisetas da labuta mandando ver na cerveja. Passam de falar do Pepe que botou foto nova de um carrão no Facebook, como terá conseguido grana pra um negócio tão caro, no lo veo, para se recomendar mutuamente… comidas.

— Fresas (morangos) en la crema catalana, tío. En trocitos. Te lo digo: tienes que probar.

Que delicadeza, esses dois hômi de voz trovejante e máscara pendurada no queixo falando de morangos. “Crema catalana” é o crème brûlée regional (e alguém estará bufando de raiva com essa comparação).

Apuro o ouvido, sou uma comadre buscando humanezas. E dicas culinárias.

— … También los caracoles están buenísimos. (mania de caracóis o povo tem aqui, um dos poucos pratos típicos que não balançam meu corazón). Y las gambas (camarões), con alioli casero.

O restaurante, diz o nome do restaurante!

***

A Espanha registrou hoje (17) a menor taxa de novos contágios de Covid do último ano: 2.333 casos. Já é o terceiro país com mais vacinados do planeta, atrás apenas dos Emirados Árabes Unidos e Portugal, com quase 80% da população coberta (76% com a pauta completa).

Desde o final de junho, quando o governo nos libertou do uso da máscara nas ruas, ocorreu aqui um fenômeno interessante: a maioria optou por continuar usando a máscara. Eu incluída.

Às vésperas do outono no hemisfério norte, a alta taxa de vacinação na Espanha não significa pouco. Espera-se um minipico de casos com a chegada do frio, mas nem de longe parecida com as seis ondas anteriores. A campanha começará agora a aplicar uma terceira dose na população de risco, como pacientes de câncer, portadores de Síndrome de Down com mais de 40 anos, idosos em asilos e imunodeprimidos.

Comentava com a minha irmã, que vive em São Paulo, que a polícia aqui está usando uma tática extrema para dissolver multidões de jovens que, ultimamente, com a flexibilização das medidas sanitárias, têm se reunido para os “botellones” (festas na rua regadas a árco). Com a ajuda do corpo de bombeiros, tasca mangueira de água nos críos.

–Se fosse no Brasil, não ia funcionar –comentou ela. — Iam pensar que é Carnaval!

Parc del Clot, seu lindo (Susana Bragatto / Folhapress)

No bar do José Luís, que é como se chama o señor de olhos líquidos, a conversa entre nossos dois heróisdujour deriva para temas sindicais, sem que eu consiga descobrir de que restaurante estão falando. Quase me levanto, histérica, e grito “quero sabeeer!”, mas faz calor e eu tô atrasada. Volto ao meu café, ao meu dia comum, nesse bar tão corriqueiro, nessa hora nascente da manhã.

–José Luís! Un par de carajillos*! Y un par de chupitos**!

Oito e meia da manhã, um bar qualquer, e eu sonhando com um chupito myself.

Ou co’a cobertura crocante de caramelo da crema catalana, que a gente quebra com a colher e abocaña com o creme de ovos y leite, aromatizado com canela, baunilha e raspas de limão ou laranja (ou anis, na versão do über chef Michelin catalão Ferrán Adrià).

* café com árco (rum, Bailey’s, uísque…)
** dose de árco

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O verde nosso de cada dia https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/08/28/o-verde-nosso-de-cada-dia/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/08/28/o-verde-nosso-de-cada-dia/#respond Sat, 28 Aug 2021 19:46:12 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/parc-del-laberint-d´horta-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=984

(ou: ode aos parques anônimos de Barcelona)

Domingo de manhã e tô explorando uma outra parte de Barcelona, desconhecida pra mim até agora, na zona de Sants-Montjuïc.

E olha que levo anos nessa ciudad.

Sem querer, ao dobrar uma esquina qualquer, descubro, por exemplo, o Jardim dos Direitos Humanos, um oásis metido entre edifícios residenciais y uma casa de linhas clean e planta livre com ar meio 1950s.

A essa hora fresca da manhã, cedo ainda e sem canícula (como se chama a onda de calor que nos vem surrando por aqui), avisto um cara penteando um labrador, duas senhoras passeando lado a lado com seus respectivos poodles, fonte, flores, e é isso.

Jardí dels Drets Humans, Barcelona (Susana Bragatto / Folhapress)

Nada especial, francamente. Me faz pensar no Burle Marx, em São Paulo, por conta do espelho d´água e alguns espécimes tropicais aqui e ali. Deve ser saudade de casa, e me sento na beiradinha da água pra contemplar o conjunto.

Descubro depois que esse jardim foi erigido sobre um antigo pátio de descanso para operários da fábrica Philips, e que a tal construção 1950s supracitada de fato foi projetada em 1960 pela mulher do dono da fábrica, uma paisagista holandesa.

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Barcelona tem três parques-estrela: o Güell, Montjuïc e Ciutadella. Fontes com estátuas douradas, torceduras gaudinianas, caminhos de palmeiras, cenários preferidos de eventos culturais, uma maravilha, cartões-postais da cidade.

Ironicamente, como em outros lugares, a maioria dos parques barceloneses nasceu como necessidade colateral da Revolução Industrial. De repente, era tanta gente e concreto na cidade que faltava verde.

Parc Güell, projetado por Gaudí, Barcelona (Divulgação)

O primeiro grande reduto-oásis a ser construído foi o Parc de la Ciutadella, um projeto ambicioso feito sob encomenda para receber a Exposição Universal de 1888.

Na primeira metade do século XX, com a onda de renovação urbana modernista, surgiriam outros grandes parques, como o Güell, projetado por Gaudí (1923), e os Jardins da montanha adjacente de Montjuïc, criados especialmente para a Exposição Internacional de 1929.

Parc de la Ciutadella, um dos mais famosos cartões-postais de Barcelona (Reprodução)

Um icônico personagem articulador desse processo de parquificação intensiva de Barcelona foi o arquiteto e paisagista catalão Nicolau Rubió i Tudurí, que esteve à frente da Direção de Parques Públicos da cidade até o exílio na França, em 1937, após o início da Guerra Civil Espanhola.

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Mas hoje meu corazón quer homenagear os cantos verdes anônimos das nossas vizinhanças. Esses que só talvez, ou casualmente, cê descobre que têm nome e história. E que, no vaivém rotineiro da city cruel, te acolhem com sombras de árvores e momentos de pazzz.

Como o Parque de La Pégaso, perto de casa, no bairro histórico-operário de Sagrera. É meu preferido. Foi construído onde antes havia uma companhia de caminhões que, justamente, produzia os famosos modelos Pégaso.

Sempre vou lá fazer o meu chi kung e meu workout-de-app debaixo de eucaliptos esvoaçantes. Os quais, por sua vez, me recordam a casa onde cresci, atrás da qual tinha uma espécie de bosque que nos brindava com um ruído namastê-selvagi agradabilérrimo cada vez que vinha uma tempestade de verão.

Fico feliz quando coincido com a hora em que ligam as fontes pra limpar os tanques de água (onde às vezes rola um pato ou um cachorro nadando).

Pronto. Aí vem o labrador ca bolinha azul na boca.

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Essa mina não tá falando  naa-di-náa (como diriam aqui, sincopando), cê pode pensar.

O tal labrador (ca bolinhazul na boca) (Susana Bragatto / Folhapress)

Não tô, mesmo. Esse é o (meu) ponto. Hoje o papo é normcore (faça um muxoxo, vamos, que o tempo urge, que o parafuso aperta, que o julgamento cozinha o miojo além do ponto…).

Quanto de nossas vidas de transeuntes (sobretudo, urbanos) deixamos desvividas pelos cantos com tanto excesso de tudo, me pergunto. Sorvendo, deglutindo, consumindo avidamente tudo ao redor, de informação a semáforos a twix sabor abacaxi.

Podemos resistir ao FOMO e apenas contemplar um arbustinho, uma primavera em frô? (também me pergunto, porque pra mim mesma às vezes é difícil)

Parc del Centre de Poble Nou, Barcelona (Susana Bragatto / Folhapress)

As ilhas de verde, tão corriqueiras na paisagem de Barcelona, são, entre outras bênçãos, espaços de Fazer Nada. De Encontro e Contemplação. Alguns, como eu, loopam pelos caminhos entre árvores pra dar conta da corridinha matutina, mas o mais comum por aqui é isso: a Desaceleração.

Parc del Clot, em Barcelona, construído aproveitando uma antiga vila ferroviária (Reprodução)
Aula de tai-chi pós-pandemia no Parque de Can Dragó, Barcelona (Susana Bragatto / Folhapress)
Minha estátua preferida, na Plaça del Congrés Eucarístic, Sagrera, Barcelona. Sempre vou lá trocar uma ideia ca comadre (Susana Bragatto / Folhapress)

Como os inúmeros bancos e bulevares de pedestres, os Parques Anônimos de Quase Cada Esquina são, aqui, parte pulsante-vital do tecido social. Convites à ocupação das ruas. Desaceleram, mas alimentam o corazón.

Vê, o labrador agora tá perseguindo pombas. Quer latir, mas leva a bolinha azul na boca…

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O diabo, a nuvem e alguma lágrima https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/08/20/o-diabo-a-nuvem-e-alguma-lagrima/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/08/20/o-diabo-a-nuvem-e-alguma-lagrima/#respond Fri, 20 Aug 2021 22:04:05 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/20210815_211259-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=962 O que nuvens de celofane, diabos soltando fogo e sistemas planetários têm em comum?

Se cê chutou Carnaval, quase.

(eu chutaria Terry Gilliam, mas é que eu sou romântica)

Aqui na Espanha, o Carnaval não é assim Aqueeeela Data Do Corazón como pra gente aí no Brazel. As exceções honrosas talvez sejam os carnavais de Tenerife ou Cádiz, internacionalmente conhecidos.

Apesar disso, a verdade verdadeira é que, na percepção parcial, mas consistente dessa imigrante que vos fala, os espanhóis são uns party animals. Nunca vi tanta festa de rua como aqui.

O calendário anual de festas populares inclui centenas delas, entre grandes, pequenas e minúsculas. Em parte, motivadas pelo profundo histórico religioso-cristão do país, com homenagem a santo, data bíblica e tal.

Mas tem pra tudo: festa pra abrir primavera, pra fechar o verão, pra homenagear o patrono da cidade, pra festejar a colheita de cogumelos (os de comer no strogonoff, gente), pra fazer guerra de tomate (a famosa Tomatina, em Valência) e por aí vai.

Festa da Tomatina, Buñol, Espanha (Reuters / Juan Medina)

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A pandemia, claro, afetou o ritmo de fiesta español costumeiro. Em 2020, tudo cancelado.

Este ano, em agosto, finalmente começam a ressurgir algumas celebrações aqui e ali, embora dependa muito da localidade –Madri, por exemplo, suspendeu por ora as principais festas populares do mês, por cautela covidiana.

Carnaval da ilha de Tenerife, Espanha. Parece um bokado com o nosso (AFP PHOTO / Desiree Martin)

Em Barcelona, a grande festa popular de agosto acontece esta semana até o próximo sábado (21), depois de uma última edição pandêmica completamente virtual (aka: não aconteceu) em 2020.

É a “Festa Major” (festa maior) do catalaníssimo bairro de Gràcia.

Onde, por cierto, eu vi o diabo, a nuvem, o arco-íris e muito mais.

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As festas maiores são um clássico espanhol. Acontecem em diversas partes do país ao longo do ano. Cada bairro, distrito ou município pode ter a sua, com dinâmica e peculiaridades próprias. Algumas tradições remontam pelo menos à Idade Média.

Festa maior de Gràcia, 1915 (Reprodução)

E o marr legal: quase sempre, os próprios moradores e negócios locais participam da organização, decorando ruas e organizando pequenos concertos (concertos, que era isso mesmo?) e “barras” (balcões de bar) para servir drinques e “tapas”.

Em Barcelona, com seus 10 distritos e 73 bairros, há cerca de 20 festas maiores ao longo do ano. A mais famosa é, sem dúvida, a de Gràcia, celebrada há mais de 200 anos.
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Passear pela festa de Gràcia 2021 é assim meio mágico. Digo yo.

Ainda mais este ano, em que ressurge com gostinho de fênix.

Festa Maior de Gràcia, Barcelona, 2021 (Susana Bragatto / Folhapress)

Festa Maior de Gràcia, Barcelona, 2021 (Susana Bragatto / Folhapress)

Há algo singelo e comovente nas decorações temáticas com celofane e papel machê penduradas entre os balcões, sobre os postes de luz, enlaçadas em persianas e fios de eletricidade.

Algumas me lembram trabalho de aula de arte da escola.

Outras parecem aventuras protospielberguianas.

Mas a maioria fica no meio do caminho entre o esmero de mãos não necessariamente expertas, mas amorosas. O resultado é um conjunto vistoso, que nos brinda aos críticos-malas-que-não-metem-a-mão-na-massa como eu com um espetáculo imersivo mezzo alucinatório, mezzo poético.

Em meio ao caos das ruas festivas, os locais montam mesas na rua e celebram o esforço (às vezes, de meses) com um banquete pra eles mesmos e amigos. Quero chegar a ser uma insider assim um dia. Hay que vivir en Gràcia.

Festa Maior de Gràcia, Barcelona, 2021 (Susana Bragatto / Folhapress)

Festa Maior de Gràcia, Barcelona, 2021 (Susana Bragatto / Folhapress)

Cada rua tem uma onda diferente. Uma lata de tinta que vomita mil cores sobre nossas cabeças; planetas e meteoros banhados por luzes sci-fi; intermináveis guirlandas de flores, polvos, dragões.
Depois que termina a festa, qualquer um pode bater na porta da associação da rua e pedir um pedacinho da decoração de lembrança.

Minha amiga catalã já tinha escolhido o que queria pedir: uma longa trança de flores e folhas de papel.

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Lembro da minha primeira festa maior de Gràcia, nos idos de 2000 e algo. Não dava pra andar na rua de tanta gente. E mal se via a decoração, de tantos turistas bêbados alçando canecas de cerveja. Terminei a noite banhada em cerveja, e olha que eu nem curto cerveja, chaval.

Também mal ouvia a música com tanto alarido de gentecontente.

A única experiência da minha vida que se compara a essa badalada festa de bairro pré-pandemia é o carnaval de Olinda, quando, uma vez, eu fui carregada pelo movimento autônomo da multidão enquanto por sinal chupava um sorvete de cajá (proezas pessoais, falemos delas).

Ah, Brazel.

É legal, mas, neste momento pós-pandemia, tá diferente.

Este ano, em Gràcia, teve fila indiana pra entrar em cada uma das ruas decoradas. Está mais organizado, mais contido. Mas, ainda assim, bunito.

Porque festa popular, gente, é pra mim mais do que um banho de cerveja e uns boffs ou um passeio em família. Mais do que nunca, nesses tempos demasiado surreais, talvez ofereçam também uma oportunidade de conjurar aquela lágrima há tanto guardada no canto do olho, inspirada pela sensação indescritível, mas quentinha e confraternizadora, de pertencer ao jogo do mundo, ao tempo dos ventos, ao balouçar dos crepons.

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Ava Gardner, o holandês voador e um sonho espanhol https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/08/13/ava-gardner-o-holandes-voador-e-um-sonho-espanhol/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/08/13/ava-gardner-o-holandes-voador-e-um-sonho-espanhol/#respond Fri, 13 Aug 2021 18:55:36 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/Pandora-the-party-2-300x215.png https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=937 Tô lá fazendo meu topless na areia quando escuto um sambão.

Coisa de chamar a atenção, porque não estoy em Copacabana, mas numa baiazinha na fronteira da Catalunha Profunda, em Tossa de Mar, um belo balneário mediterrâneo com interesse histórico-medieval a uma hora e pouco de Barcelona, em Girona.

Não resisto e interpelo a mulher que tá botando som por alto-falantes na praia, do lado de um telão desligado com o mar de fundo.

Brasileira, claro, de Belô.

Brasileiro, quando encontra os patrícios na gringa, via de regra, fica todo emocionado.

“Eu, hein, de onde cê conhecia essa pessoa?”, já me perguntaram mais de uma vez. “Nada, acabo de conhecer, mas brasileiro quando se topa no mundão é assim, sai logo perguntando da vida, dando abraço, falando da saudade e combinando um churrasco lá em casa….”.

Clarice, que vive em Tossa há anos, me conta que vai ter projeção de filme à noite, aproveitando a lua cheia.

Não qualquer filme: mais exatamente, a superprodução que botou esse discreto vilarejo de pescadores na rota dos interesses hollywoodianos, há exatos 70 anos.

Cena de abertura de “Os Amores de Pandora”, 1951 (Reprodução)

A cena de abertura mostra uns “extras” contratados pra atuarem como os pescadores locais que trocam uma ideia em catalão chulo enquanto puxam uma rede anormalmente pesada do mar:

–Què creus que hi tenim a n’aquí, una ballena (O que você acha que temos aqui, uma baleia)?

–Una manada de ballenes!

As “ballenes” resultam ser cadáveres. Fim da cena de abertura.

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“Os Amores de Pandora” (Albert Lewin, 1951) estrela Ava Gardner e James Mason nos papéis principais.

Ava interpreta Pandora Reynolds, cantora arretada e devoradoradehomens de passagem pela Espanha, que quebra as perna ao se apaixonar perdidamente por um misterioso e circunspecto holandês que atraca seu navio na baía de Tossa (no filme, Esperanza).

(quem nunca, não é mesmo)

Ava Gardner no filme “Os Amores de Pandora”, de 1951 (Reprodução)

O filme é uma mistura de mito grego, dramalhão hollywoodiano e a lenda do holandês errante, com toques surrealistas devidamente co-orquestrados pelo fotógrafo e artista vanguardista dadaísta surrealista ista ista Man Ray.

Ray se meteu com a fotografia do filme, salpicou a cenografia com umas esculturas romanas descabeçadas aqui e ali e criou o genial tabuleiro de xadrez que aparece em uma das cenas (assistam, assistam), além de ter metido a mão, dizem, no roteiro.

Por essas e outras, vale a pena ver a produção. Atentem para a cena superrr moderna da corrida de carros e a sequência que mostra uma louca festa de ricaços na praia –dá pra sentir o cheiriño de fotomontagem, desconstrução narrativa, subversão lógica à la dadá.

Cena de “Os Amores de Pandora”, de 1951 (Reprodução) (Me chamem pra essa festa, por favor)

Surrealismos à parte, “Os Amores de Pandora” não deixa de ser um desfile estilizado de belas paragens mediterrâneas, becos poéticos, dramas burgueses, boa comida, noitadas com dança flamenca e touradas sanguinolentas (estrelando o toureiro-na-vida-real Mario Cabré, com quem, dizem, Ava teve um lance durante as filmagens).

A Espanha de “Pandora” é naïf y estereotipada no úrtimo, o que, por sinal, convinha ao desejo de “abertura” (…!) do governo franquista no início dos anos 1950. A interpretação caricatural de Cabré como o toureiro Juan Montalvo me fez sentir uns cringe deitada à luz do luar na praia de Tossa.

Ava Gardner e James Mason no Filme “Os Amores de Pandora” (1951) (Divulgação)
Mario Cabré como o toureiro Juan Montalvo em “Os Amores de Pandora”, 1951 (Reprodução)
Tossa de Mar, Catalunha, em cena de “Os Amores de Pandora”, de 1951 (Reprodução)

O filme foi rodado em diferentes pontos da chamada Costa Brava, incluindo a bela Platja (praia) d’Aro e a praça de touros de Girona.

Mas é Tossa, esse lindo pueblo catalão de menos de 6 mil habitantes, que ganha os louros como A Cidadezinha Espanhola da Ava.

 

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Ava, Ava. Era a primeira vez que pisava em solo espanhol, e não seria a última –muito menos isenta de drama, mas isso fica pra outro artigo. Tinha então 28 anos e já dois divórcios nas costas, além de um namorico incipiente com Frank Sinatra.

O cantor Frank Sinatra e a atriz Ava Gardner, com quem se casou em 1951 (Reprodução)

A passagem da estrela por Tossa está em toda parte, a começar pela parte mais alta da Vila Vella, onde contempla o mar, eternizada em uma estátua de bronze de tamanho natural. Também há fotos suas em bares, restaurantes como o Tonet e hotéis da região. Todo mundo quer uma casquinha da Ava.

E do Frank. Na época, Sinatra era o beau da bella. Tinha largado mulher e três filhos pra estar com ela. E, dizem, ciumento, veio vigiar o set e aproveitar pra tomar uns bons drink (imagino).

Também lá está ele eternizado em Tossa em fotos e anedotas entrelaçadas nos papos fugazes com os locais, uma gente muy catalana e ao mesmo tempo acolhedora, e que, por motivos abstratos e flanológicos, e até onde minha totalmente parcial exploração de terreno pode concluir, costuma tomar o partido da Ava, ao mesmo tempo que vê o Sinatra como um acossador que era dado ao álcool e ao maltrato à mulher.

Por exemplo, um dono de bar à beira-mar me comentou, entre terno e divertido, que Ava “era terrível” (hmmm) e fez menção ao seu fugaz caso com Cabré, o toureiro do filme.

De fato, Ava diria depois a um biógrafo que foi “só uma noite”, e que o toureiro era um “diablo guapo”. “Depois de uma daquelas noites espanholas românticas, cheias de estrelas, dança e drinques, me despertei e me encontrei ao lado de Mario Cabré”, conta ela em suas memórias.

Tossa, Sua Linda (Susana Bragatto / Folhapress)
Tossa de Mar, Vila Vella medieval, Catalunha. Ainda vou ter uma casinha dessas (Susana Bragatto / Folhapress)

Já Cabré, muitos anos depois, confessaria que se apaixonou pela diva “como un ceporro (panaca!)”. Também poeta, em seu “Dietario Poético para Ava Gardner”, de 1950, escreveu: “Rocio sobre amapolas, tus labios guardan asombros”….

Três anos mais tarde, em 1953, Ava viria a Madri para viver um tempo. Ali, teria um caso tórrido com outro toureiro, o lendário e controvertido Luis Miguel Dominguín, amigo de Dalí e de Franco, bróder do Orson Welles e do Hemingway (Hemingway, essa onipresença), mulherengo dukacete. Também causo pra outro artigo.

***

À noitinha, sento na areia fresca da praia de Tossa, entre famílias, casais e grupinhos barulhentos de xóvenes, para ver “Pandora”. Estou só. Venho quase sempre sozinha a Tossa. É meu refúgio, minha ilha da fantasia. Um dia, penso, vou ter uma casinha de pedra dentro da zona da “Muralla”.

Tossa foi declarada Monumento Histórico-Artístico Nacional em 1931 e é hoje o único pueblo medieval fortificado preservado de toda a costa catalã.

À direita do telão, um breve desvio de olhar nos leva para as torres da cidade amuralhada. Coisa mais linda. Com um perímetro de uns 300 metros quadrados, a cidade “Vella” foi construída entre os séculos XII e XIV como defesa contra a pirataria.

Lua cheia, Ava Gardner nadando nua no mar, ruínas medievais. E volto a pensar na simples letra de Paulo Onça em versão de Jorge Aragão ecoada horas antes. Confesso que não está nas minhas playlists, mas semeia em minh’alma uma estranha saudade de casa:

Queria o prazer do amoooor / Assim desejando estoooou
Só vou sossegar / Quando te conquistaaaar………..

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Por trás do Messianismo https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/08/06/por-tras-do-messianismo/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/08/06/por-tras-do-messianismo/#respond Fri, 06 Aug 2021 17:18:13 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/Lionel-Messi-durante-amistoso-entre-Barcelona-e-Arsenal-agosto-de-2019-Josep-Lago-AFP-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=927 Enquanto choram na Espanha por conta da saída do Messi do Barcelona, anunciada nesta quinta-feira (5), eu choro aqui no meu sofazinho por uma separação.

Daquelas, sabe? Que deixam a cara inchada de choro e matam o amanhã. Ainda que até amanhã.

Mas voltando ao Messi.

Os espanhóis e, notadamente, os “culés” (torcedores do FC Barcelona) estão tristíssimos com a saída do ídolo, ainda sem novo destino certo.

O motivo principal seriam “obstáculos econômicos e estruturais”, embora outros desgastes ao longo dos últimos tempos, como o já famoso quase-adeus do burofax, também tenham cumprido seu papel. Tudo é louro do Messi, tudo é culpa do Messi, OJogadorMaisFodásticoDoMundo. São quase 18 anos de clube. Um longo casamento.

Joan Laporta, presidente atual do FC Barcelona, apareceu nas manchetes de hoje afirmando que “O Barça está acima do Messi, e não vamos hipotecá-lo por ninguém”.

Mas o povo chora. Bancas de jornal amanheceram com a estampa do argentino em todas as capas; na tevê, breves entrevistas com seres de todas as nacionalidades e idades nas ruas de Barcelona repetem o invariável “fica, Messi”, e súplicas semelhantes.

(me pergunto por que não me entrevistaram, pra que eu pudesse dizer: “que se dane. Alguém me dá um trocado do salário de US$ 126 milhões que ele recebeu em 2020? Tô precisando de um Maserati”. E: “Neymaaaaaaaar, eôÔô”, só pra dar uma balançadinha)

Um argentino que vive em Barcelona (e há muitos) choraminga no microfone: eu só estava aqui por causa do Messi! Pra onde ele for, eu vou! E decreta: o turismo em Barcelona sem o Messi já era!!

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As imagens de Messi-Messi-Messi nos bombardeiam em meio às transmissões dos jogos olímpicos. O canal espanhol mostra uma entrevista com o carateca nativo que levou prata nos jogos olímpicos (a espanhola Sandra Sánchez levou o ouro, batendo a favorita japonesa Kiyou Shimizu).

Suado, ele passa a mão no topete, olha de soslaio pra câmera, sabe que é gato. Vale pontos na hora de conseguir sponsors.

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É evidente que a galiña dos ovos de ouro dos esportes hype hoje em dia irremediavelmente passa pelo merchandising centrado em figuras de idolatria.

Especialistas em negócios e mercadotecnia do esporte estão agora mesmo analisando o impacto econômico que poderá ter a saída do Messi para o Barça. Não será pouco.

O FC Barcelona é considerado o segundo clube mais valioso do mundo, empatado com o Real Madrid. Estima-se o valor de cada uma dessas marcas espanholas em US$ 1,4 bilhão, só superadas pelo Manchester, o clube mais frapfrap do mundo, avaliado em US$ 1,7 bilhão.

Os dois principais patrocinadores do Barça, Nike e Rakuten, estão devidamente de cabelo em pé com a notícia da saída do craque. Tinham acordos e campanhas já acertadas com o FCB e Messi.

A marca do FC Barcelona, obviamente, amparava-se muito no merchandising associado ao jogador, assim como em contratos publicitários e direitos de transmissão televisiva. Perderá, seguramente.

Estima-se que a marca Messi rende pelo menos o dobro do que rende qualquer outro jogador do time. Mais de metade do que se vende em roupas e acessórios oficiais está associada com o jogador, e mais da metade da bilheteria de partidas está vinculada ao craque.

Uma única camiseta da Liga com o número 10 no site oficial do clube pode chegar a custar 160 euros (ou quase R$ 1.000).

Um dos clássicos passeios turísticos em Barcelona era ver uma partida no Camp Nou com o Messi. O argentino virou um dos ícones da cidade, junto com os dragões de Gaudí. Agora… no more. Ainda que até amanhã. Lágrimas, lágrimas.

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Com o fim do estado de emergência espanhol, aumenta contágio entre jovens https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/05/28/com-o-fim-do-estado-de-emergencia-espanhol-aumenta-contagio-entre-jovens/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/05/28/com-o-fim-do-estado-de-emergencia-espanhol-aumenta-contagio-entre-jovens/#respond Fri, 28 May 2021 18:58:58 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/javalis-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=770 O aumento de interações sociais após o fim do estado de emergência espanhol, suspendido no último dia 9 de maio, pode estar freando a melhora dos índices relacionados à pandemia no país.

Em Barcelona, por exemplo, nas últimas duas semanas vem se observando um leve aumento de contágios sobretudo entre a população na faixa dos 15 a 29 anos.

Os jovens atualmente lideram o ranking local de incidência acumulada, com 153,7 casos por 100 mil habitantes.

Em seguida vêm os de 30 a 49 anos, com 134 casos por 100 mil.

A última média nacional divulgada nesta quinta (27) é de 125 casos por 100 mil habitantes.

Os únicos que se salvam (literalmente) nessa história são os maiores de 80, já completamente vacinados: 30 casos por 100 mil habitantes.

***

Não me admira essa tendência de aumento de casos entre os jovens, considerando os numerosos “botellones” ou festas de rua dos últimos dias em Barcelona.

Pra completar o bololô molotoviano, vivo em uma cidade-alvo de turistas e intercâmbios como o programa Erasmus, que a cada ano traz uma média de 50 mil estudantes europeus para estudar ou realizar estágios supervisionados na Espanha. Essa quantidade é superior à que recebe qualquer outro país da comunidade europeia.

Por aqui, circulam cada vez mais imagens mostrando xovens sem máscara e muy borrachos (bêbados) forrando praias, parques e ruas como se celebrassem a libertação do apocalipse. Perturbador, se a gente contrastar com a vida pandêmica relativamente espartana de até pouquíssimas semanas atrás.

Mais contágio entre jovens em geral não se traduz em aumento no número de hospitalizações. O problema, dizem os epidemiologistas, é que a rápida taxa de alastramento do vírus entre essa população pode favorecer o fortalecimento de novas variantes, por exemplo. Além disso, o sistema de saúde sofre tendo que atender os pamonha inconsequentes (perdonad mi French).

Em um vídeo gravado por um canal de TV espanhol nas ruas do bairro do Born, no centro histórico de Barcelona, policiais passeando por uma multidão alegre avisam aqui e ali que “é proibido consumir álcool na via pública” e que é necessário botar a máscara. A vibe é de nem-tchum. Mais de 3.500 pessoas foram enxotadas do centro naquela noite. Uma entrevistada argumenta: se as pessoas se reúnem no metrô, então na rua também pode, né?

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Vai um abraço aí? https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/04/02/vai-um-abraco-ai/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/04/02/vai-um-abraco-ai/#respond Fri, 02 Apr 2021 14:31:26 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/Pili-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=640 — Não me meto porque não posso!!!

Demoro um milissegundo pra perceber que é com a gente.

O grito interrompe meu longo abraço com uma amiga numa calçada de Barcelona, numa tarde de sol. Fazia meses, quantos?, que a gente não se via. Maior emoção. Pandemia, u know.

A gente se aparta e vê uma señora de seus setenta, baixinha, óculos na pontiña do nariz, observando-nos com lágrimas nos olhos e as mãos dramaticamente entrelaçadas apoiando seu rostinho corado, os óculos embaçando em cima da máscara cirúrgica.

Saquei na hora. Perguntei: quer um abraço também? E tasco um puta abraço nela. Começa a se sacudir de choro. Os transeuntes nos olham com curiositê.

Mais calma, nos conta: perdeu o marido para um câncer de cólon fulminante no início do ano. Seu filho mora longe, em Valência. Só o viu pros atos funerários. Pandemia, pandemia.

Ela teve coronavírus, eu também. Seguem-se tapinhas empáticos nas costas. É duro, é duro. Mas estamos aqui.

“Não tenho ninguém, e há muito tempo não sei o que é um abraço. Obrigada, obrigada”, diz.

Maria del Pilar, Pili para os íntimos, é bailarina. Nos mostra fotos. Essa sou eu encenando a crucificação de Cristo, essa sou eu numa apresentação de tango. Aqui eu dançava sevillanas. Olha que pedaço de mulher eu era!

A gente aquiesce. Puta gata, mesmo. Minha amiga também é bailarina e coreógrafa, digo –de quê?, pergunta Pili. “De street dance”, responde a referida, modestamente. Pili faz cara de quem não entende e segue. Ela precisa falar falar falar, e desembesta a contar sua vida, os últimos meses, a mostrar fotos de seu marido, um simpático senhor com bigodinho grisalho, que por sinal, penso, parecia um pouco com meu tio.

“Nos últimos anos, comecei a me apresentar em residências geriátricas”, conta. “Tadinhos dos velhinhos. Tão sozinhos”.

Os asilos foram um dos maiores focos da pandemia espanhola, com milhares de mortos e denúncias de abandono e maus tratos.

Ela diz que um dia uma senhora numa cadeira de rodas, as mãos crispadas por artrite e outros paranauês pouco amáveis da idade, se recusou a jogar dominó com os companheiros. Desanimada, desencorajada. Pili tascou: olha. Se você só tivesse meia hora de vida, você jogaria? E a velhinha entrou no jogo.

Em outra conversa numa dessas visitas a uma residência, comentou a um señor uma dessas filofrases básicas que não escreveu a Clarice mas todo mundo tatua na bunda: a vida, seu Pepe, é um momento. “Às vezes, nem isso” –retrucou Pepe, esse sábio desconhecido.

Tento me despedir inúmeras vezes. Minha amiga é mais suave que eu, mas mesmo minhas habilidades cortantes falham aqui. Pili nos sorve até a última gotiña, como água no deserto. Não quer deixar a gente ir. Pergunta aonde vamos, onde vivemos, e, finalmente, dou meu número pra ela. “Posso te mandar bom dia, boa tarde e boa noite com corações?”, pergunta ela. Eu respondo, sacando o máximo de bom humor de minhas profundezas biliosas: Pilar, se você fizer isso, juro por Dios que te bloqueio.

Quando já nos íamos, ela grita à distância: ei, vocês gostam de frango? Porque o frango assado do Carrefour, meninas, é uma delícia, e está muito bem de preço!! E, borbulhante como veio, se esvai pela tarde de luz primaveril.

Pili, Pili. Pequenas grandes significâncias da pandemia. Em tempo: até agora, não me mandou corações pelo whatsapp. Mas a linda foto que vocês veem neste prosaico artigo, sim. Bailando, bailando…

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