Normalitas https://normalitas.blogfolha.uol.com.br Espanholices, maravilhas do ordinário, brotos de brócolis Sat, 04 Dec 2021 00:01:00 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Com 80% de vacinados, Espanha espera uma discreta alta de casos no outono https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/09/17/com-80-de-vacinados-espanha-espera-uma-discreta-alta-de-casos-no-outono/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/09/17/com-80-de-vacinados-espanha-espera-uma-discreta-alta-de-casos-no-outono/#respond Fri, 17 Sep 2021 20:47:08 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/café-e-morangos-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=1051 No bar, de manhã. Portio café bar, diante do maravilindo parque do Clot, Barcelona, pra quem está na área. Comum, pros olhos comuns.

Sento lá pra desfrutar de um americano antes de ir ao trabalho. Desfrutar, essa palavra que se usa tanto aqui. Sol ardido, aquecimento global mediterrâneo. Gente local acha engraçado eu ser brasileira e dizer que o calor aqui ultimamente consegue ser pior que São Paulo metida no engarrafamento da Vinte e Três de Maio ao meio-dia de um verão.

Também, os espanhóis não sabem o que é engarrafamento –digo yo, não sem um orgulho imbecil.

Mas, voltando ao bar.

O dono, wapo (guapo, bonitón) senhor de olhos verdes cansados, sempre atende com simpatia. Parece uma dessas naturezas tipo deixa-rolar que não retêm o dia de ontem –embora o canto caído das pálpebras me sugira nostalgia.

Olhaí, esse é o Bar das Digressões.

Oito e meia da manhã e dois caras no terraço ao meu lado com encardidas camisetas da labuta mandando ver na cerveja. Passam de falar do Pepe que botou foto nova de um carrão no Facebook, como terá conseguido grana pra um negócio tão caro, no lo veo, para se recomendar mutuamente… comidas.

— Fresas (morangos) en la crema catalana, tío. En trocitos. Te lo digo: tienes que probar.

Que delicadeza, esses dois hômi de voz trovejante e máscara pendurada no queixo falando de morangos. “Crema catalana” é o crème brûlée regional (e alguém estará bufando de raiva com essa comparação).

Apuro o ouvido, sou uma comadre buscando humanezas. E dicas culinárias.

— … También los caracoles están buenísimos. (mania de caracóis o povo tem aqui, um dos poucos pratos típicos que não balançam meu corazón). Y las gambas (camarões), con alioli casero.

O restaurante, diz o nome do restaurante!

***

A Espanha registrou hoje (17) a menor taxa de novos contágios de Covid do último ano: 2.333 casos. Já é o terceiro país com mais vacinados do planeta, atrás apenas dos Emirados Árabes Unidos e Portugal, com quase 80% da população coberta (76% com a pauta completa).

Desde o final de junho, quando o governo nos libertou do uso da máscara nas ruas, ocorreu aqui um fenômeno interessante: a maioria optou por continuar usando a máscara. Eu incluída.

Às vésperas do outono no hemisfério norte, a alta taxa de vacinação na Espanha não significa pouco. Espera-se um minipico de casos com a chegada do frio, mas nem de longe parecida com as seis ondas anteriores. A campanha começará agora a aplicar uma terceira dose na população de risco, como pacientes de câncer, portadores de Síndrome de Down com mais de 40 anos, idosos em asilos e imunodeprimidos.

Comentava com a minha irmã, que vive em São Paulo, que a polícia aqui está usando uma tática extrema para dissolver multidões de jovens que, ultimamente, com a flexibilização das medidas sanitárias, têm se reunido para os “botellones” (festas na rua regadas a árco). Com a ajuda do corpo de bombeiros, tasca mangueira de água nos críos.

–Se fosse no Brasil, não ia funcionar –comentou ela. — Iam pensar que é Carnaval!

Parc del Clot, seu lindo (Susana Bragatto / Folhapress)

No bar do José Luís, que é como se chama o señor de olhos líquidos, a conversa entre nossos dois heróisdujour deriva para temas sindicais, sem que eu consiga descobrir de que restaurante estão falando. Quase me levanto, histérica, e grito “quero sabeeer!”, mas faz calor e eu tô atrasada. Volto ao meu café, ao meu dia comum, nesse bar tão corriqueiro, nessa hora nascente da manhã.

–José Luís! Un par de carajillos*! Y un par de chupitos**!

Oito e meia da manhã, um bar qualquer, e eu sonhando com um chupito myself.

Ou co’a cobertura crocante de caramelo da crema catalana, que a gente quebra com a colher e abocaña com o creme de ovos y leite, aromatizado com canela, baunilha e raspas de limão ou laranja (ou anis, na versão do über chef Michelin catalão Ferrán Adrià).

* café com árco (rum, Bailey’s, uísque…)
** dose de árco

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Um passeio pelo maior sebo da Espanha https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/09/03/um-passeio-pelo-maior-sebo-da-espanha/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/09/03/um-passeio-pelo-maior-sebo-da-espanha/#respond Fri, 03 Sep 2021 20:19:44 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/El-Siglo4-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=1017 O chão se enrola em si mesmo, formando quadrados vertiginosos que suportam poltronas de veludo. O palco está vazio, exceto por um piano de armário onde falta uma tecla, um ré central –tomo nota, mentalmente, enquanto dedilho.

No lugar de paredes, livros. Muitos. Los que quieras.

Enfileirados, empilhados, eretos, debruçados, pairam sobre as cabeças passeantes umas coleções extensíssimas, arte, psicologia, clássicos, edições raras.

Nada como um pianiño, umas revistinha e uma versão-for-kids de (In My) Solitude (Susana Bragatto / Folhapress)

Num outro aposento, sobre uma mesa com tampa de vidro e cadeiras estilo Luís XV, um gordo lustre ilumina um livro infantil ilustrado, talvez recentemente folheado por mãozinhas ou mãozonas: Las pesadillas de Winnie the Pooh (Os Pesadelos do Ursinho Puff).

Logo ao lado, uma cozinha industrial, moderna e minimalista, rodeada de –adivinhou –mais livros. Ali, rolam aulas de culinária e outros eventos gastronômicos.

Outras estantes carregam fotos de toureiros, bibelôs, dedicatórias esmaecidas, pôsteres de outra Espanha, histórias de outras vidas.

Relíquias e delicadezas da livraria El Siglo, o maior sebo da Espanha (Susana Bragatto / Folhapress)
Avec Carmen Miranda à la española (Susana Bragatto / Folhapress)

Este é o El Siglo (O Século), o maior sebo da Espanha, um mundo fabuloso e complexo entocado num galpão dentro do Mercantic, famoso mercado de antiguidades e artigos lokos de segunda mão no município de Sant Cugat, a meia hora de Barcelona.

A livraria ostenta esse título desde 2013, quando incorporou os 100 mil exemplares de outro templo sebístico de Barcelona, o La Canuda, que funcionava desde 1948 no centro perto da Plaza Catalunya e fechou as portas pra dar lugar a alguma super loja de fast fashion das que hoje abundam por ali.

Hoje, o El Siglo possui em torno de 150 mil livros, revistas e documentos distribuídos em 800 metros quadrados. É lugar pra chegar, se perder por horas e emergir com algum livrinho barato (ou não) na mão.

Adentro o hall principal, onde há um bar e o burburinho de uma discreta massa, num domingo de sol de final de agosto. Tô emocionada.

Não só pela impressionante abundância de volumes e lustres de cristal, que dão ao local um arzim épico-charmoso de templo-dos-traça-lovers. Mas, principalmente, porque é dia de música ao vivo.

Um dos palcos dentro da livraria El Siglo, o maior sebo da Espanha (Susana Bragatto / Folhapress)
Ursinho Puff também é cultura (Susana Bragatto / Folhapress)

Minha primeira vez em muito, muito tempo.

Os indícios de uma pandemia ainda rondam aqui e ali: vemos gente mascarada, álcool em gel e mesinhas distantes umas das outras. Mas, de resto, a experiência é mansa y dulce.

A música ao vivo tem voltado aos poucos em alguns lugares. Ainda não muito.

Encontramos um cantinho pra sentar, equilibrando no colo vermutes e vinhos verdejo. Nesse salão principal, num palco maior que o mencionado acima, um duo de baixo acústico e piano começa a produzir as primeiras notas de um standard de jazz desses que a gente cantarola e não lembra de onde conhece.

Depois, entra a cantora: uma catalã entoando chansons francesas. Ne me quitte paaaaaaas, e a gente vai balançando ao ritmo dessa súplica poética, tentando esquecer por um momento que, apesar de 70,9% da população imunizada após 8 meses de campanha de vacinação, ainda temos alguns milhares de casos novos de Covid no país diariamente; e empurrando pro fundo do intestinus delgadus os alertas dos tais Especialistas Epidemiologistas, que vêm nos dizendo: cuidado que pode vir mais, cuidado que tem o frio chegando, cuidado que a vacina não funciona assim tão bem com as novas variantes.

Concerto na livraria El Siglo, o maior sebo da Espanha, agosto de 2021. Saca esse público comportadim, que fofo 😉 (Susana Bragatto / Folhapress)
The Spanish way em El Siglo (Susana Bragatto / Folhapress)
Livraria El Siglo, o maior sebo da Espanha, agosto de 2021 (Susana Bragatto / Folhapress)
Vai um livriño aí? (Susana Bragatto / Folhapress)
Palco principal da livraria El Siglo, o maior sebo da Espanha, agosto de 2021 (Susana Bragatto / Folhapress)

Hoje não, por favor. Termino meu verdejo, o último de muitos. Tout peut s’oubliee–eeeeer lalalala.

Debaixo do braço, trupicando, mas ainda em pé, levamos uma edição marota setentista de Leaves of Grass, de Walt Whitman. Pra não sair de mãos abanando, pra arrematar a visita com uma mesura a esse belo lugar, pra declamar em voz alta, detrás de uma máscara cirúrgica 2021, num canto alumiado de algum aposento da alma cansada, I celebrate myself, and sing myself….

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O diabo, a nuvem e alguma lágrima https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/08/20/o-diabo-a-nuvem-e-alguma-lagrima/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/08/20/o-diabo-a-nuvem-e-alguma-lagrima/#respond Fri, 20 Aug 2021 22:04:05 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/20210815_211259-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=962 O que nuvens de celofane, diabos soltando fogo e sistemas planetários têm em comum?

Se cê chutou Carnaval, quase.

(eu chutaria Terry Gilliam, mas é que eu sou romântica)

Aqui na Espanha, o Carnaval não é assim Aqueeeela Data Do Corazón como pra gente aí no Brazel. As exceções honrosas talvez sejam os carnavais de Tenerife ou Cádiz, internacionalmente conhecidos.

Apesar disso, a verdade verdadeira é que, na percepção parcial, mas consistente dessa imigrante que vos fala, os espanhóis são uns party animals. Nunca vi tanta festa de rua como aqui.

O calendário anual de festas populares inclui centenas delas, entre grandes, pequenas e minúsculas. Em parte, motivadas pelo profundo histórico religioso-cristão do país, com homenagem a santo, data bíblica e tal.

Mas tem pra tudo: festa pra abrir primavera, pra fechar o verão, pra homenagear o patrono da cidade, pra festejar a colheita de cogumelos (os de comer no strogonoff, gente), pra fazer guerra de tomate (a famosa Tomatina, em Valência) e por aí vai.

Festa da Tomatina, Buñol, Espanha (Reuters / Juan Medina)

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A pandemia, claro, afetou o ritmo de fiesta español costumeiro. Em 2020, tudo cancelado.

Este ano, em agosto, finalmente começam a ressurgir algumas celebrações aqui e ali, embora dependa muito da localidade –Madri, por exemplo, suspendeu por ora as principais festas populares do mês, por cautela covidiana.

Carnaval da ilha de Tenerife, Espanha. Parece um bokado com o nosso (AFP PHOTO / Desiree Martin)

Em Barcelona, a grande festa popular de agosto acontece esta semana até o próximo sábado (21), depois de uma última edição pandêmica completamente virtual (aka: não aconteceu) em 2020.

É a “Festa Major” (festa maior) do catalaníssimo bairro de Gràcia.

Onde, por cierto, eu vi o diabo, a nuvem, o arco-íris e muito mais.

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As festas maiores são um clássico espanhol. Acontecem em diversas partes do país ao longo do ano. Cada bairro, distrito ou município pode ter a sua, com dinâmica e peculiaridades próprias. Algumas tradições remontam pelo menos à Idade Média.

Festa maior de Gràcia, 1915 (Reprodução)

E o marr legal: quase sempre, os próprios moradores e negócios locais participam da organização, decorando ruas e organizando pequenos concertos (concertos, que era isso mesmo?) e “barras” (balcões de bar) para servir drinques e “tapas”.

Em Barcelona, com seus 10 distritos e 73 bairros, há cerca de 20 festas maiores ao longo do ano. A mais famosa é, sem dúvida, a de Gràcia, celebrada há mais de 200 anos.
***
Passear pela festa de Gràcia 2021 é assim meio mágico. Digo yo.

Ainda mais este ano, em que ressurge com gostinho de fênix.

Festa Maior de Gràcia, Barcelona, 2021 (Susana Bragatto / Folhapress)

Festa Maior de Gràcia, Barcelona, 2021 (Susana Bragatto / Folhapress)

Há algo singelo e comovente nas decorações temáticas com celofane e papel machê penduradas entre os balcões, sobre os postes de luz, enlaçadas em persianas e fios de eletricidade.

Algumas me lembram trabalho de aula de arte da escola.

Outras parecem aventuras protospielberguianas.

Mas a maioria fica no meio do caminho entre o esmero de mãos não necessariamente expertas, mas amorosas. O resultado é um conjunto vistoso, que nos brinda aos críticos-malas-que-não-metem-a-mão-na-massa como eu com um espetáculo imersivo mezzo alucinatório, mezzo poético.

Em meio ao caos das ruas festivas, os locais montam mesas na rua e celebram o esforço (às vezes, de meses) com um banquete pra eles mesmos e amigos. Quero chegar a ser uma insider assim um dia. Hay que vivir en Gràcia.

Festa Maior de Gràcia, Barcelona, 2021 (Susana Bragatto / Folhapress)

Festa Maior de Gràcia, Barcelona, 2021 (Susana Bragatto / Folhapress)

Cada rua tem uma onda diferente. Uma lata de tinta que vomita mil cores sobre nossas cabeças; planetas e meteoros banhados por luzes sci-fi; intermináveis guirlandas de flores, polvos, dragões.
Depois que termina a festa, qualquer um pode bater na porta da associação da rua e pedir um pedacinho da decoração de lembrança.

Minha amiga catalã já tinha escolhido o que queria pedir: uma longa trança de flores e folhas de papel.

***

Lembro da minha primeira festa maior de Gràcia, nos idos de 2000 e algo. Não dava pra andar na rua de tanta gente. E mal se via a decoração, de tantos turistas bêbados alçando canecas de cerveja. Terminei a noite banhada em cerveja, e olha que eu nem curto cerveja, chaval.

Também mal ouvia a música com tanto alarido de gentecontente.

A única experiência da minha vida que se compara a essa badalada festa de bairro pré-pandemia é o carnaval de Olinda, quando, uma vez, eu fui carregada pelo movimento autônomo da multidão enquanto por sinal chupava um sorvete de cajá (proezas pessoais, falemos delas).

Ah, Brazel.

É legal, mas, neste momento pós-pandemia, tá diferente.

Este ano, em Gràcia, teve fila indiana pra entrar em cada uma das ruas decoradas. Está mais organizado, mais contido. Mas, ainda assim, bunito.

Porque festa popular, gente, é pra mim mais do que um banho de cerveja e uns boffs ou um passeio em família. Mais do que nunca, nesses tempos demasiado surreais, talvez ofereçam também uma oportunidade de conjurar aquela lágrima há tanto guardada no canto do olho, inspirada pela sensação indescritível, mas quentinha e confraternizadora, de pertencer ao jogo do mundo, ao tempo dos ventos, ao balouçar dos crepons.

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Ava Gardner, o holandês voador e um sonho espanhol https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/08/13/ava-gardner-o-holandes-voador-e-um-sonho-espanhol/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/08/13/ava-gardner-o-holandes-voador-e-um-sonho-espanhol/#respond Fri, 13 Aug 2021 18:55:36 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/Pandora-the-party-2-300x215.png https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=937 Tô lá fazendo meu topless na areia quando escuto um sambão.

Coisa de chamar a atenção, porque não estoy em Copacabana, mas numa baiazinha na fronteira da Catalunha Profunda, em Tossa de Mar, um belo balneário mediterrâneo com interesse histórico-medieval a uma hora e pouco de Barcelona, em Girona.

Não resisto e interpelo a mulher que tá botando som por alto-falantes na praia, do lado de um telão desligado com o mar de fundo.

Brasileira, claro, de Belô.

Brasileiro, quando encontra os patrícios na gringa, via de regra, fica todo emocionado.

“Eu, hein, de onde cê conhecia essa pessoa?”, já me perguntaram mais de uma vez. “Nada, acabo de conhecer, mas brasileiro quando se topa no mundão é assim, sai logo perguntando da vida, dando abraço, falando da saudade e combinando um churrasco lá em casa….”.

Clarice, que vive em Tossa há anos, me conta que vai ter projeção de filme à noite, aproveitando a lua cheia.

Não qualquer filme: mais exatamente, a superprodução que botou esse discreto vilarejo de pescadores na rota dos interesses hollywoodianos, há exatos 70 anos.

Cena de abertura de “Os Amores de Pandora”, 1951 (Reprodução)

A cena de abertura mostra uns “extras” contratados pra atuarem como os pescadores locais que trocam uma ideia em catalão chulo enquanto puxam uma rede anormalmente pesada do mar:

–Què creus que hi tenim a n’aquí, una ballena (O que você acha que temos aqui, uma baleia)?

–Una manada de ballenes!

As “ballenes” resultam ser cadáveres. Fim da cena de abertura.

***

“Os Amores de Pandora” (Albert Lewin, 1951) estrela Ava Gardner e James Mason nos papéis principais.

Ava interpreta Pandora Reynolds, cantora arretada e devoradoradehomens de passagem pela Espanha, que quebra as perna ao se apaixonar perdidamente por um misterioso e circunspecto holandês que atraca seu navio na baía de Tossa (no filme, Esperanza).

(quem nunca, não é mesmo)

Ava Gardner no filme “Os Amores de Pandora”, de 1951 (Reprodução)

O filme é uma mistura de mito grego, dramalhão hollywoodiano e a lenda do holandês errante, com toques surrealistas devidamente co-orquestrados pelo fotógrafo e artista vanguardista dadaísta surrealista ista ista Man Ray.

Ray se meteu com a fotografia do filme, salpicou a cenografia com umas esculturas romanas descabeçadas aqui e ali e criou o genial tabuleiro de xadrez que aparece em uma das cenas (assistam, assistam), além de ter metido a mão, dizem, no roteiro.

Por essas e outras, vale a pena ver a produção. Atentem para a cena superrr moderna da corrida de carros e a sequência que mostra uma louca festa de ricaços na praia –dá pra sentir o cheiriño de fotomontagem, desconstrução narrativa, subversão lógica à la dadá.

Cena de “Os Amores de Pandora”, de 1951 (Reprodução) (Me chamem pra essa festa, por favor)

Surrealismos à parte, “Os Amores de Pandora” não deixa de ser um desfile estilizado de belas paragens mediterrâneas, becos poéticos, dramas burgueses, boa comida, noitadas com dança flamenca e touradas sanguinolentas (estrelando o toureiro-na-vida-real Mario Cabré, com quem, dizem, Ava teve um lance durante as filmagens).

A Espanha de “Pandora” é naïf y estereotipada no úrtimo, o que, por sinal, convinha ao desejo de “abertura” (…!) do governo franquista no início dos anos 1950. A interpretação caricatural de Cabré como o toureiro Juan Montalvo me fez sentir uns cringe deitada à luz do luar na praia de Tossa.

Ava Gardner e James Mason no Filme “Os Amores de Pandora” (1951) (Divulgação)
Mario Cabré como o toureiro Juan Montalvo em “Os Amores de Pandora”, 1951 (Reprodução)
Tossa de Mar, Catalunha, em cena de “Os Amores de Pandora”, de 1951 (Reprodução)

O filme foi rodado em diferentes pontos da chamada Costa Brava, incluindo a bela Platja (praia) d’Aro e a praça de touros de Girona.

Mas é Tossa, esse lindo pueblo catalão de menos de 6 mil habitantes, que ganha os louros como A Cidadezinha Espanhola da Ava.

 

***

Ava, Ava. Era a primeira vez que pisava em solo espanhol, e não seria a última –muito menos isenta de drama, mas isso fica pra outro artigo. Tinha então 28 anos e já dois divórcios nas costas, além de um namorico incipiente com Frank Sinatra.

O cantor Frank Sinatra e a atriz Ava Gardner, com quem se casou em 1951 (Reprodução)

A passagem da estrela por Tossa está em toda parte, a começar pela parte mais alta da Vila Vella, onde contempla o mar, eternizada em uma estátua de bronze de tamanho natural. Também há fotos suas em bares, restaurantes como o Tonet e hotéis da região. Todo mundo quer uma casquinha da Ava.

E do Frank. Na época, Sinatra era o beau da bella. Tinha largado mulher e três filhos pra estar com ela. E, dizem, ciumento, veio vigiar o set e aproveitar pra tomar uns bons drink (imagino).

Também lá está ele eternizado em Tossa em fotos e anedotas entrelaçadas nos papos fugazes com os locais, uma gente muy catalana e ao mesmo tempo acolhedora, e que, por motivos abstratos e flanológicos, e até onde minha totalmente parcial exploração de terreno pode concluir, costuma tomar o partido da Ava, ao mesmo tempo que vê o Sinatra como um acossador que era dado ao álcool e ao maltrato à mulher.

Por exemplo, um dono de bar à beira-mar me comentou, entre terno e divertido, que Ava “era terrível” (hmmm) e fez menção ao seu fugaz caso com Cabré, o toureiro do filme.

De fato, Ava diria depois a um biógrafo que foi “só uma noite”, e que o toureiro era um “diablo guapo”. “Depois de uma daquelas noites espanholas românticas, cheias de estrelas, dança e drinques, me despertei e me encontrei ao lado de Mario Cabré”, conta ela em suas memórias.

Tossa, Sua Linda (Susana Bragatto / Folhapress)
Tossa de Mar, Vila Vella medieval, Catalunha. Ainda vou ter uma casinha dessas (Susana Bragatto / Folhapress)

Já Cabré, muitos anos depois, confessaria que se apaixonou pela diva “como un ceporro (panaca!)”. Também poeta, em seu “Dietario Poético para Ava Gardner”, de 1950, escreveu: “Rocio sobre amapolas, tus labios guardan asombros”….

Três anos mais tarde, em 1953, Ava viria a Madri para viver um tempo. Ali, teria um caso tórrido com outro toureiro, o lendário e controvertido Luis Miguel Dominguín, amigo de Dalí e de Franco, bróder do Orson Welles e do Hemingway (Hemingway, essa onipresença), mulherengo dukacete. Também causo pra outro artigo.

***

À noitinha, sento na areia fresca da praia de Tossa, entre famílias, casais e grupinhos barulhentos de xóvenes, para ver “Pandora”. Estou só. Venho quase sempre sozinha a Tossa. É meu refúgio, minha ilha da fantasia. Um dia, penso, vou ter uma casinha de pedra dentro da zona da “Muralla”.

Tossa foi declarada Monumento Histórico-Artístico Nacional em 1931 e é hoje o único pueblo medieval fortificado preservado de toda a costa catalã.

À direita do telão, um breve desvio de olhar nos leva para as torres da cidade amuralhada. Coisa mais linda. Com um perímetro de uns 300 metros quadrados, a cidade “Vella” foi construída entre os séculos XII e XIV como defesa contra a pirataria.

Lua cheia, Ava Gardner nadando nua no mar, ruínas medievais. E volto a pensar na simples letra de Paulo Onça em versão de Jorge Aragão ecoada horas antes. Confesso que não está nas minhas playlists, mas semeia em minh’alma uma estranha saudade de casa:

Queria o prazer do amoooor / Assim desejando estoooou
Só vou sossegar / Quando te conquistaaaar………..

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Não há dia como hoje https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/04/30/nao-ha-dia-como-hoje/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/04/30/nao-ha-dia-como-hoje/#respond Fri, 30 Apr 2021 17:38:09 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/lua-é-pra-lá-que-eu-vou-arte-de-aniol-yauci-1-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=729 “Menina, aqui tem paciente dando positivo em PCR há mais de dois meses!”

Lá vou eu de novo com minhas modestas pílulas do front hospitalar. Microprivilégios (hhhmmmm errrr hããã) de quem é paciente crônica e tem que fazer revisões periódicas. Hoje tem exame de sangue no cardápio.

A enfermeira, jovem y corada, talvez de tanta atividade seringuística, já que são 2 da tarde, extrai o fluido borgonha de minhas veias raladas de tanta furação enquanto me conta.

“A gente tem visto com alguma frequência, isso de dar positivo repetidas vezes”, diz. “Coitados dos idosos que estão na fila de cirurgias, tendo que voltar aqui a cada dois por três, sem poder ser operados!”

“A cada dos por tres”: expressão espanhola equivalente ao nosso “”vira e mexe”; frequentemente.

De fato, o saguão está dominado por velhiños esperando sua vez para tomar aquela enfiada gostosa de cotonete nas narinas.

A relativa placidez do primeiro andar dá lugar no térreo do hospital a uma balbúrdia amarelo-e-vermelha com bandeiras mezzo catalãsq, mezzo sindicais. Pequena aglomeração diante da entrada de emergências.

Um médico que observa à distância, como eu, aproxima-se e comenta: são o pessoal da limpeza. Estão protestando há mais de ano por haver sido excluídos da gratificação extra que só os da saúde receberam durante a pandemia.

“Se eles se arriscam tanto quanto nós!” –abre os braços, indignado. “Trabalharam dobrado, como nós. Cada vez que a gente termina com um paciente, entram eles em ação. Com proteção e tudo, mas, mesmo assim…” –deixa a frase no ar. Não precisa completar, yo entiendo. “A ajuda seria de uns 300 euros, o que não é muito, mas, pra eles, sim”, acrescenta.

Faço um cálculo mental: amigo, onde é que 300 euros é pouco? Quase 2 mil reais. Yo soy brasileña, amigow.

Manifestação diante do hospital Sant Pau, um dos mais importantes de Barcelona, abril de 2021 (Susana Bragatto / Folhapress)

O cartaz principal da petite manifestação denuncia a “invisibilidade” do coletivo dedicado a deixar os hospitais, corredores e salas de cirurgia limpos, esterilizados, prontos para novas curas.

Vamos a veire, é óbvio: se se tratasse de um protesto de médicxs e enfermeirxs, apareceria imprensa sapeando, replicando, botando manchete. Mas não. Nessa sexta nublada em Barcelona, só eu, de sobretudo vermelho e mirada cansada, escrevendo uma discreta coluna pra um jornal d’além mar.

Irritada, uma jovem manifestante me explica: não só não receberam a tal gratificação como não têm o amparo da Seguridade Social em caso de positivo pra coronavírus –ao contrário dos profissionais de saúde, para os quais uma licença por Covid é considerada acidente de trabalho.

***

A Espanha se prepara para o 9 de maio, quando se prevê o fim do estado de emergência, em vigor desde março passado, quando eclodiu a pandemia. Restaurantes, por exemplo, poderão ficar abertos até as 23h. Em teoria, deixaria de existir também o toque de recolher (no caso da Catalunha, entre 22h e 6h) em vigor há meio ano.

Mas o governo da Catalunha já pensa em deixar na manga um decreto-lei que manteria o tal com alguma flexibilização, deixando-nos perambular livres até as 23h ou 24h.

Embora os gráficos covidianos estejam dando sinais de melhora (pouco mais de 9.000 casos e 136 mortes em todo o país nas últimas 24 horas) e a vacinação tenha se acelerado no último mês (até agora, com 10% da população vacinada com as duas doses), a Espanha já levou chulepada do destino vezes demais pra sair liberando tudo sin más.

É verdade, porém, que se avizinha junho, O Clássico Mês Em Que Começam A Chegar Os Turistas Pra Curtir O VerãoZão Español. Veículos de imprensa britânicos já festejam a reabertura de fronteiras anunciada pelo governo espanhol (com 8415879 PCRs e ressalvas), e as reservas de hotéis já tão uma doideira.

Lembro dos tempos não-saudosos em que “guiris” (estrangeiros) embriagados não nos deixavam dormir com suas festas em apartamentos alugados, ou lotavam tanto as atrações culturais e históricas de Barcelona que nós, moradores, desistíamos de tentar nossa vez, acabrunhados com tanta avidez. Será um longo e curioso verano…

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Mais livros e rosas, por favor https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/04/23/mais-livros-e-rosas-por-favor/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/04/23/mais-livros-e-rosas-por-favor/#respond Fri, 23 Apr 2021 21:46:36 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/sant-jordi-rosas-y-libros-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=683 Hoje é dia de livros, rosas (e dragões) na Catalunha. #Ficadica de adotar esse belo costume no Brazel, purfavô

Barcelowna, 23 de abril de doismilevinteum. Amanheceu, peguei a viola e o meu celular, e tavam lá se avolumando no whatisapi umas quantas mensagens de “Feliz Día de Sant Jordi!!”, acompanhadas de gifs de rosas e livros, ursinhos mandando beijos esvoaçantes e outras mimosidades transcendentais.

… Como esta (Reprodução)

Sant Jordi ou São Jorge, celebrado hoje, é o santo padroeiro da Catalunha. A data é uma espécie de Dia dos Namorados catalão, mas vai além.

Em lugar de caixas de bombons e kits de cuecas, o lance é presentear livros e rosas (escrevi sobre isto no Diário de Confinamento aqui na Folha, pra quem quiser saber mais sobre esta curiosa tradição local).

E o bunito é que a data não vale só pra parceiros românticos: pais e filhos, amigos e amigas, colegas de trabalho, vizinhos, todo mundo pode dar e ganhar –ou, claro, enviar figuriñas kitsch por redes sociais.

Meu bairro hoje estava pululando de banquinhas de livros novos e usados (uma paixão catalã, os livros). E, por toda parte, em mochilas de crianças, mãos de velhinhos, lojas de doces e até tabacarias, uma rosa vermelha.

As flores são meticulosamente embrulhadas em celofane e décor vermelho-e-amarelo, em alusão à senyera, a bandeira catalã. Além de uma ocasião pra se manifestar o amô universal, promover a literatura e matar umas rosas (ops), Sant Jordi é também uma oportunidade pra se flanar azasinha do orgulho catalão.

É também dia de escritores que, nesta terra de leitores, ora ora, podem ter status de estrelas. Em diferentes pontos da cidade, apoiados por entidades, livrarias ou editoras, aí estão eles a cada Sant Jordi distribuindo autógrafos e dedicatórias.

Este ano, entre outros, temos os dois top-sellers atuais da Catalunha.

Por um lado, Jaume Cabré, com “Consumits pel Foc” (“Consumidos pelo Fogo”), uma novela embrionificada (muy) livremente a partir do encontro do autor com um javali –bicho enigmático das historinhas do Asterix que fui ver pela primeira vez ao vivo e em pelos negros nos arredores montanhosos de Barcelona, onde há muitos.

Por outro, o epidemiologista catalão Oriol Mitjà, um dos health symbols da crise do coronavírus na Espanha, com a autobiografia pós-pandemia intitulada “A cor obert” (“De coração Aberto”).

***

Sant Jordi na Catalunha não é feriado, mas tem pinta. Talvez particularmente animado nesses tempos de vai-num-vai com a recuperação pós-Terceira-Onda. Sim, havia pontos da cidade muvucados, embora ao ar livre. Sim, é de escandalizar alguns, embora toda a festa seja mais ou menos controlada pelo governo, responsável por estipular distância mínima entre bancas, quantidade máxima de gente e pontos de venda etc.

(((A propósito, ou dando uma desviada, feliz dia-mundial-do-livro, iu all!)))

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No hospital esta manhã para uma consulta médica, tive que esperar na fila dos medicamentos. Detrás do balcão, as recepcionistas se levantaram todas ao mesmo tempo quando chegaram colegas com rosas. Gritinhos, alegria ecoando no saguão abarrotado. A gente espera, fazer o quê. Quem vai ser contra rosas e livros.

Saindo, dou de cara com um senhor bastante idoso subindo uma ladeiraça muy va ga ro sa e laboriosa mente. Com um buquê reluzente nas mãos.

Passeando hoje com meu namorado catalão, ele leva a mão à testa diante de uma banquinha de rosas: aiii, não te comprei uma floooor. Tudo bem, que eu já me presenteei com um livro. Sant Jordi também é dia de se lembrar de si mesmo.

É também ensejo para gestos inesperados/voluptuosos/bailarinos (e não é sempre?).

Como a moça que almoçava, solitária e compenetrada, no restaurante onde estávamos. Alheia aos decibéis e pulpos à galega –pensava eu, pensativamente pensando tonterías enquanto esperava meus trigueros con salsa romesco (aspargos verdes com O MOLHO DA MINHA VIDA, GOOGLEEEM).

Mas não. A moça, essa, estava totalmente imbuída do sentido de Sant Jordi. Esticou a mão para uma bolsa do gato félix que levava debaixo da mesa e sacou uma rosa. Quando passou o garçom, um senhor ágil e de olhar cansado, ela disse: pro senhor. E o rosto de ambos se iluminou. Por um momento, o meu também. E assim e coisa e tal, num ménage à trois de acidentalidades telepáticas. Juro por Sant Jordi.

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‘Isso não acabou’ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/02/12/isso-nao-acabou/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/02/12/isso-nao-acabou/#respond Fri, 12 Feb 2021 23:16:13 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/Sardana-y-la-paloma-de-la-paz-Picasso-1-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=532 Saio de bicicleta. As ruas e praças do meu bairro em Barcelona estão cheias, pululando de gente.

É meio-dia, hora da compra no mercadão, do dedim de prosa e de recolher as crianças no colégio.

A colisão de microeventos vibra em 440 Hz e, de repente, percebo num highlight retinístico uma Grande Verdade: a rua do meio-dia pertence aos idosos.

Neste dia de sol invernal, são principalmente eles que ocupam os inúmeros bancos do caminho.

São eles, os “iaios”, que empurram delicadamente seus carrinhos de compra, se saúdam, alguns com chapéu ou boina, elegantes, aprumados.

São eles, os “avis” (avós em catalão), gestos vagarosos e dengosos, que recolhem os netos na porta da escola. Os idosos, aqui, são parte ativa e importante da estrutura familiar, é super comum que eles cuidem dos pequenos. Bunito de ver.

 

***

Nesse dia de sol invernal em Barcelona, todos levamos máscara, com muito poucas exceções de uns pendejos boludos cabrones, que siempre los hay.

“Susanaaaaa!” Sou parada por uma garota mascarada. Eu já era ruim de fisionomia, sou pior ainda de olhonomia. “Como você me reconheceu?!” “Aaahh, seu olhar é inconfundível”. Brigada, vou tomar como elogio. Me despeço sem ideia de quem era, as duas com pressa de quinta-feira.

***

Essa pululância social nas ruas de Barcelona pode dar a errônea impressão de que o rei Momo tá solto e o Carnaval tá rolando na terrinha do monseñor.

Nonono.

Aqui, como em Portugal e outros alhures, cancelaram tudo.

Correfoc, corrida de fogos, festa pirotécnica típica da Catalunha (Pepe Soriano / Reprodução)

Carnaval em Barcelona não é tão expressivo quanto a festa de Santa Eulàlia, padroeira da cidade, na mesma época.

Este ano, em lugar de alguns dos eventos de rua, temos sardanas (danças típicas) transmitidas por iutubi, passeios virtuais, exposição de fantasias e bonecos de anos passados e retrospectiva em vídeo dos castellerscorrefocs (corrida de fogos, um espetáculo bruxístico pirotécnico medievalesco que é das cousas que mais amo nesta terra). Enfim, essas coisas não-sensoriais digitalizadas meio boring.

Eu entendo. É o que temos.

A sardana, dança e música típica da Catalunha (José Luís Navarro / Reprodução)
“Castellers”, castelos humanos, típicos da região da Catalunha (Reprodução)

Os contágios por coronavírus na Espanha vêm diminuindo progressivamente há duas semanas. Temos agora mesmo uma taxa de pouco menos de 500 casos por 100 mil habitantes, contra os 886 por 100 mil de finais de janeiro.

Mas isso não significa, pelo menos até março ou abril, um relaxamento das restrições.

Em coletiva de imprensa, o epidemiologista e representante do governo Fernando Simón avisou, no seu já clássico estilo vago-precavido: “temos que ter muito claro que isso não acabou; ainda não temos vacinação suficiente ou taxas de transmissão suficientemente baixas para começar a relaxar mais rápido do que podemos”.

A cautela oficialesca é previsível, considerando a árdua lição pós-verão do ano passado, quando a baixada de guarda levou rapidamente a uma segunda onda, e depois a uma terceira, e, agora, uma quarta, em que quase metade dos leitos de UTI do país se encontram ocupados por pacientes críticos de Covid.

***

Pra completar a cereza da tarta de queso, domingo (14) não só é San Valentín (Dia dos Namorados local); também é domingo de eleições na Catalunha.

Este ano, o debate independentista deixou seus matizes usuais para formar um grande bloco cujo único mote é: “todos contra Illa”.

Salvador Illa, então ministro da Saúde espanhol, em abril de 2020 (Sebastián Mariscal / POOL / AFP)

Salvador Illa, ex-ministro da Saúde, deixou o cargo há pouco menos de um mês para entrar na disputa como candidato local dos socialistas.

Catalão, nativo e ex-prefeito de La Roca del Vallès, um pueblecito de montanha de 10 mil habitantes, Illa conduziu toda a pandemia de 2020 em meio a uma saraivada de críticas sobre políticas de vacinação, medidas restritivas e (falta de) apoios setoriais durante a crise.

Apoiado pelo premiê espanhol Pedro Sánchez (PSOE), Illa-candidato tem um trabalho ingrato pela frente. Isolado, sem o amparo dos partidos independentistas locais, todos em pé de guerra contra o discurso unionista dos socialistas, só lhe resta cultivar ‘nervios’ de aço: chegar ao poder seria apenas o começo das provações.

***

Quanto aos idosos do princípio, lembrei de uma conversa que tive recentemente com uma amiga inglesa que também vive aqui.

“Os idosos aqui são mais felizes”, disse. “Tomam sol, participam da vida social. Vejo eles em toda parte; não é como na Inglaterra, onde eles estão todos ‘entocados'”. Lá, ela comenta, falta solidariedade. Até o caixa de supermercado da cidadezinha remota, quem sabe a última oportunidade de uma breve interação social, já virou máquina…

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Morte por Covid: o epitáfio do artista https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/01/22/morte-por-covid-o-epitafio-do-artista/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/01/22/morte-por-covid-o-epitafio-do-artista/#respond Fri, 22 Jan 2021 15:53:50 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/sintese-5-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=476 Não conheci Guillermo.

Mas… sim. Seu rosto, presença póstuma em relatos de amigos por todas as redes sociais esta semana, é totalmente familiar.

Seguramente nos cruzamos em algum bar do bairro histórico de Tarragona, no corazón do assentamento romano com o Mediterrâneo de fundo, o mesmo que teria contemplado o imperador Augusto há dois mil anos. Talvez a gente tenha gargalhado juntos.

Coisas daquele canto do mundo, onde as narrativas podem ser tão líquidas.

Guillermo era artista. De Málaga. Era querido. Fazia figuras, esculpia colos e mundos. Foi pintor, escultor, poeta visual, escritor. Criou música sensorial, livros-objeto, cartazes. Inventou o espirocanto cuadrangular “das tetas” de sua “fantasía”, para os poetas aflitos diante da página em branco. Eu o avistei mais de uma vez (lembro? invento?) transitando por uma colossal porta de madeira cravada nos muros milenares ao lado da catedral da cidade, onde tinha um ateliê.

Guillermo Marín Mesa com sua escultura ‘São Paulo’ (Reprodução)

Uma pessoa, vamos, normalita.

Assim o descreveu Maravilla, uma amiga também artista: “criador genial e personagem surrealista, contraditório e peripatético, que passeou seu olhar de peculiar humor por esse ecossistema artístico de Tarragona tão pouco favorável para sua fauna”.

“Sacada para ver a poesia”, obra de Guillermo Marín em Vespella de Gaià, Catalunha (Reprodução)
“Poemas visuais”: Espirocantos 2, de Guillermo Marín (Boek Visual, 2009 / Reprodução)

Maravilla é outro complexo encanto. Sempre lembro dela dançando. Ela bailou ao som dos meus concertos entre circos romanos e cachos de primaveras, que cá se conhecem como buganvílias, e eu, eu bailei com Maravilla mais de uma vez, que Maravilla é bailarina de sorriso perene, e sempre que a encontro tenho um prazer enorme em dizer “Maraviiiiiilla!” como se evocasse pássaros do paraíso.

Como Guillermo, ela também cria mundos e fábulas com as mãos e o corazón, provavelmente há mais de meio século, ou desde tempos medievais, quem sabe? Que Maravilla tem algo de druídico.

“O dragão da roda”, obra em cerâmica de Maravilla Sáez García (Reprodução)

Seu ateliê de cerâmica, cheio de figuras supraterrenas, de dragões e olhos hóricos, numa esquina do “casco antiguo” com vistas pro mar, foi das primeiras belezas que me cativaram quando, oito anos atrás, aterrissei em Tarragona, meu primeiro e amadíssimo lar español.

Tarraco para os antigos, cidade mágica de personagens nenúfares. Poderia jurar que brotam das paredes milenares, com inscrições de outros tempos, e que se desmaterializam no lusco-fusco de vielas medievais, dessas com paralelepípedos quase macios de tão pisados, jornada após jornada, século após século.

O que é o coronavírus pra essas ruas, essas casas com ângulos dinâmicos e pórticos irregulares, esse ir-e-vir de sol y luna, imutável-impermanente?

“D.E.P. (Descanse en Paz)”, poema visual de Guillermo Marín (Boek Visual, 2009 / Reprodução)

Nada, não interessa. As rochas cinzeladas e tetrificadas através dos tempos –atualmente, caiadas do pantone terracota-bege que faz parte do plano artístico-urbanístico das fachadas históricas da cidade –são impenetráveis aos vírus e aos clamores de tropas, resistem a intempéries, ao desgaste e aos lamentos, perenemente massageadas-ressuscitadas por mãos de humanos, esses serezinhos transitórios que insistem em pensar que são pra-sempre.

“El dragón está en el tu”, de Maravilla Sáez García (Reprodução)

Não como Guillermo Marín Mesa, que morreu este último domingo (17) de Covid. No também histórico hospital de Santa Tecla, padroeira da cidade, onde alguma vez eu entrei de urgências por um “àpat” (comida) estragado.

“Viver”, escreveu Maravilla a alguma amiga que apresentou condolências, “é ir amansando as penas que vamos colecionando”.

“Me custa modelar frases nestes momentos”, disse, ao recordar o companheiro de tertúlias y caminhos. “Deixarei o epitáfio que ele tinha já redigido: ´Aqui descansam minhas circunstâncias; yo me voy*”.
* eu me vou. Partiu. Adeu**

** en català

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Um dos lindos anjos de cerâmica de Maravilla Sáez García (Reprodução)
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Sobre o ano que nos espera e algumas tradições escatológicas https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/01/08/sobre-o-ano-que-nos-espera-e-algumas-tradicoes-escatologicas/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/01/08/sobre-o-ano-que-nos-espera-e-algumas-tradicoes-escatologicas/#respond Fri, 08 Jan 2021 23:22:50 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/toilet-magda-ehlers-low-res-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=443 A calefação está ligada, mas meus dedovskis estão congelados enquanto escrevo.

Eis então que é 2021, o Ano Depois Daquele Que Não Terminou. Ou que não existiu, não vivimos, um ano perdido –como escuto muita gente dizer. Ainda estou vivendo aqueles dias iniciais troca-turno, escrevendo 2020 no automático, meus dedovskis congelados ainda viciados na simétrica combinação de números doiszerodoiszero.

Na Catalunha e na Espanha, as festas de fim de ano terminaram há apenas dois dias. O Día de Reyes, 6 de janeiro, é o verdadeiro Natal local, quando todos trocam presentes. É o epílogo conclusivo depois da noite de 24 de dezembro, quando as crianças descem o cacete no caga-tío ou “tió de Nadal”, um tronco com gorrinho vermelho alimentado com biscoitinhos e água desde princípios de dezembro, pra que ele cague doces e ‘regalos’.

Caga tío revisited (Reprodução / Casa da Sogra)

É nessas poucas oportunidades de confraternização familiar em tempos covídicos, ainda que em petit comitê, que a gente ouve histórias de família. Adoro.

Como a minha sogra, médica, que, entre turrones e vinhos, nos contou como na juventude escondeu em sua casa a vietnamita (como se chamavam as impressoras de folhetos) e cartazes revolucionários de uma amiga sua, comunista, perseguida pela polícia franquista.

Mas voltando ao tema da cagada.

Quando eu cheguei aqui, há uns muitos anos, a escatologia festiva catalã foi um dos primeiros, hmmm, detalhes culturais que me chamaram a atenção.

Naquele longínquo ano de 2012, a Espanha ainda respirava com dificuldade por conta da crise financeira (e no entanto talvez vivesse relativamente feliz sem saber que na era sci-fi de 2020 rolaria uma temporada à la 12 Macacos do Terry Gilliam –ay, vida).

No Natal daquele ano, pousei ozóio nos primeiros caganers da minha vida.

Foi na famosa feira de Natal de Santa Lucía, diante da catedral de Barcelona. Avistei muitas banquinhas com bonequinhos, todos alinhados como um exército, cada um cagando uma compacta e vistosa merda marrom. Eram políticos, artistas, personagens históricos. Tinha até um Prince que quase comprei, que eu amo o Prince até cagando.

Detalhe: a tradição manda esconder o caganer no presépio de Natal. O personagem é símbolo de fertilidade e sorte. Esses espanholes são loucos, me gusta!!

No recém-finado ano de vintevinte, alguns dos caganers mais populares foram os do rei emérito Juan Carlos I, metido até o talo real em enrascadas e escândalos mil, e o sanitarista Fernando Simón, garoto-propaganda e porta-voz oficial da coronacrise española. Com máscaras.

Frida Kahlo fazendo o que todos fazemos. Infelizmente, não encontrei o Bolsillonaro (Reprodução: caganer.com)

Mas acabou a festa, apagaram as luzes natalinas e eis que o vintevinte-e-um começa na Espanha com mais e mais restrições, um reflexo do aumento ululante de casos de Covid.

Desde o dia 7 de janeiro, passamos de um confinamento por regiões para um municipal. Só se pode sair com justificativazíssima. Idem para entrar e sair da Catalunha. Os bares e restaurantes continuam abertos somente até as 15h30 e com muitas limitações. E a gente vai continuar pelo menos até fevereiro com o toque de recolher entre 22h e 6h.

Vero, começaram a vacinar o povo no dia 27 de dezembro. Houve um problema inicial de logística com a vacina da Pfizer, que tem que ser transportada a -80ºC, mas agora vai que vai. Os primeiros são os grupos de risco e os profissionais de saúde.

Sí, a festa acabou e, ainda por cima, está chegando um frio que vai bater recordes. Alguns lugares mais frios da Espanha já estão caminhando para a marca de 40 graus negativos. O alerta vermelho está em toda parte.

Se as previsões estão corretas, em três dias acumularemos mais neve na Espanha que em países do norte da Europa. Espera-se neve em Barcelona, Madri e alhures. É o encontro da massa mediterrânea Filomena, nome da minha vó, com a massa fria do continente. Daí meus dediños congelados.

Sobre os caganers: encontrei Frida Kahlo, Angela Merkel, Chewbacca, Trump, rainha Elizabeth II e o Joe Biden fazendo umas boas cagadas. Mas não o Bolsonaro, infelizmente. Nem o Neymar, que havia sido um caganer estrela em 2013, ano de sua contratação pelo Barça. Vou escrever pros caganer makers, isso não pode ser. Feliz doismilevinteeum.

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O voo das pombas, ou: feliz 2042 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2020/12/23/o-voo-das-pombas-ou-feliz-2042/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2020/12/23/o-voo-das-pombas-ou-feliz-2042/#respond Thu, 24 Dec 2020 00:00:21 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/Pombas-do-paraíso-imaginado-Aniol-Yauci-baixa-res-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=432 Barcelona – Dia #283 – Quinta, 24 de dezembro. Cena: “Ouve esse silêncio”, ele diz. “É Natal!”

Segundona braba de eflúvios natalinos. Eis que me encontro no supermercado pensando se compro aquele kombucha de raspberry pra me sentir saudável com estilê quando avisto um casal de pombas ciscando tranquilamente entre uns pacotes de farinha bio, nozes bio, bio-bio.

Decido lançar um grito de alarme, que sai meio assim: “POMBAAAAS! Eiii, alguéeeeem! Tem POMBAS no corredor de produtos orgânicooooo-ooowws!”.

Impressionante. É hora do rush, mas ninguém nem tchum. Apenas as duas supracitadas meliantes, assustadas com minha ceninha humanoide, voam, alcançam as luzes ramificadas pelo imenso teto metálico do recinto, fazem um bailinho bonito no ar e pousam novamente entre os itens bio de sua preferência.

Não estou na roça. It’s Barcelona e este é um dos maiores supermercados da cidade (Carrefinhour, you know –daqueles que vendem sushi, bicicleta e jamones de Natal).

(((O que me faz lembrar de Javier Bardem cortando jamón sobre o capô do carro em “Jamón, Jamón”:)))

 

Olho à volta. Ninguém parece se preocupar com as pombas, ninguém dá mostras de haver visto as ditas. Fascinante.

Fico lá segurando o kombucha por um instante enquanto famílias, casais, jovens, velhos, aliens e titanoboas circulam ao meu redor com expressões compenetradíssimas, os braços e carrinhos cheios de itens natalinos e, talvez, uma promoção de 3×2 meias de presente pra alguém.

Cantarolo baixinho: el tiempo não paaa-a-a-ara…

 

***

Esta semana, o que já era duro piorou. Os casos de Covid estão crescendo, todo mundo nazoropa tá com medo dos britânicos e é quase Natal. Vaya mistura explosiva de contradesejos.

De última hora, na quinta (17), o governo decidiu reduzir ainda mais o horário de funcionamento dos bares e restaurantes.

Até então, os estabelecimentos locais já estavam estertorando à base de 30% da lotação máxima, mesa de até 4 pessoas (ok, falô) e toque de recolher às 22h. Desde esta segunda (21), passaram a só poder abrir 4 horas ao dia, pela manhã e pro almoço.

Com isso, todas as reservas de ceias de Natal e Ano Novo foram repentinamente canceladas. Barcelona é terra de muitos negócios familiares. Produtos caros e especiais estão perecendo nas geladeiras, e os donos dos bares e restaurantes têm saído às ruas para protestar. Quem paga a conta? Quem ajuda? O que virá?

E não para por aí. Agora mesmo, não podemos deixar a comarca, a cidade, o estado de residência, a não ser por motivos justificáveis. E pensar em ir mais além da fronteira nacional é embarcar num phD coronavirístico em que o currículo mínimo pode mudar todos.os.dias.

Eu em verdade vos digo: fico em casa o máximo possível. Uso a máscara masterblaster pra pegar condução. E evito ao máximo: faço tudo de bike.

Meu maior pecado em 2020 foi ter pego um voo pra Ibiza no verão, durante o breve idílio pós-primeira onda da pandemia. O avião tava vazio, Ibiza (pasme) tava vazia. Foi legal, foi tenso.

Quando eu comecei a escrever o Diário de Confinamento na Folha, em março, há exatos 283 dias, creio que todos pensávamos que a coisa ia durar alguns meses.

E, quando terminei os 100 dias de textos, me despedi contente: tamo quase. Isso foi há exatos 183 dias. Agora, segundo algumas manchetes, estaríamos nos preparando para uma terceira onda. A vacina começa a ser distribuída na Espanha nas últimas horas de 2020, no dia 27 de dezembro, priorizando profissionais de saúde e grupos de risco. Vamuvê.

Mas é Natal, gente. E a fofolização pollyanística-positivista do cotidiano está por toda parte, como um manifesto contrário ao desânimo. Vamos então vestir nossos melhores pijamas e clicar no convite do zoom de família com uma sidra de Astúrias na mão. Celebremus.

 

As vitrines festivas aqui seguem coalhadas da coronamoda de homewear, comfortwear, vamotodomundoviverdepijamawear. Compremos roupas fofiñas, pois. Nunca o presente clássico da vó fez tanto sentido. Celebremus, celebremus.

Fotos de Instagram mostram gente rrrrica/enfeitada/rosada em casa, com cara de gozo ou felicidade margarina, entre móveis novos da Ikea e paredes caiadas de branco pra dar aquele astral no claustro. 2020 nas redes sociais tem tanto filtro e producción que me olho no espelho e digo: joder, é só isso? Quedê os corazones flutuando sobre minha cabeça?

Como se todos fôssemos profissionais liberais felizes da vida com empregos bem pagos e firmefortes durante a pandemia, vivendo em castelos de mostruário da Casa Vogue, sem deprê, sem histeria íntima, sem saco cheio porque, né, POSITIVIDADE, GENTE.

As propagandas de peru, jamón, celular, panetone, caldo ki-norr mostram famílias reunidas, aconchegadas entre vapores de panelas e pratos quentinhos. Sim, eu sou véia e algo queixosa, mas ainda vejo manteiga no pão e acho que a vida é pra sempre.

Javier Bardem no filme “Jamón, Jamón”, de Bigas Luna, entre jamones jamones, só porque sí (Divulgação)

***

É 2042. Ano da 1347589701a cepa do vírus, aquele que há pouco mais de duas décadas começou como uma coceirinha.

E é Natal. Sempre haverá Natal. Este ano, sem peru, que os perus se extinguiram em 2025 por conta da variação 12382780 do vírus. Agora a onda é comer mini codornizes GMO, que podem ser criadas em casa.

Voltando às pombas. Naquele longínquo dezembro de 2020, eu deveria ter gritado: “FOGOO!!”. Ou: “VAI FICAR TUDO BEM, GENTE!”

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