Normalitas https://normalitas.blogfolha.uol.com.br Espanholices, maravilhas do ordinário, brotos de brócolis Sat, 04 Dec 2021 00:01:00 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 O pato, o palácio e a Padilha https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/10/26/o-pato-o-palacio-e-a-padilha/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/10/26/o-pato-o-palacio-e-a-padilha/#respond Tue, 26 Oct 2021 17:28:16 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/game-of-thrones-em-Alcázar-Sevilha-300x215.png https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=1135 Quando eu vim pra Espanha, anos atrás, pairava sobre minha cabeça um bololô de fantasias. Imaginava ruas coalhadas de laranjeiras e touradas, ciganas, paellas e personagens do Almodóvar gritando “olé” e fazendo clicclic com sapatos de flamenco na calçada (me deixem com mi imaginación, ostiii).

Hoje em dia, meus estereótipos se diversificaram ou, pelo menos, regionalizaram-se. Agora sei que o catalão tem fama de pão-duro, que os galegos são considerados meio tontos e arredios, que os madrilenhos se acham o centro do universo e os andaluzes………

… Bom. Pelo menos a parte das laranjeiras é verdade.

Recentemente, num arroubo mochileiro pós-pandemia, visitei Sevilha, coração da terra andaluza. Foi minha primeira vez no sul espanhol, uma das zonas mais pobres e também mais brilhantemente ricas em cultura e história do país.

Peguei fila pra entrar no famoso palácio de Alcázar, epítome da salada histórica mediterrânea ao longo do último milênio.

Esse impressionante complexo de edifícios e jardins apresenta uma fusão lôka de mil estilos, consequência de sua sucessiva dominação por diferentes povos-y-tendências: islâmico (da época de sua fundação, na Alta Idade Média), mudéjar (um estilo transicional entre muçulmano e cristão), gótico-barroco-renascentista-brutalista-etc.

Nesse lugar único y portentoso, gravaram alguma temporada do Game of Thrones (ambientaram aí o reino de Dorne, na quinta temporada) e cenas do mítico Lawrence da Arábia (1962).

Cena de Game of Thrones ambientada no palácio de Alcázar, em Sevilha (Reprodução)

Em Sevilha, dei um pulo também no Archivo de las Índias, onde se guarda um dos dois originais do Tratado de Tordesilhas –aquele em que portuguischis e españholis passam a régua no mapa múndi então conhecido e dizem, tu fica com a esquerda, eu com a direita (o outro original está na Torre do Tombo, em Lisboa).

Eu queria ter virado notícia como a brazilêra que invadiu o Archivo e devorou o Tratado a dentadas (egofantasias) enquanto aproveita pra gritar ForaBolfffso (imaginem os papeizinhos voando qual paçoca Amor, que legauu), mas infelizmente tal docu se encontrava no sótão quando eu fui, guardadinho para ser preparado para uma exposição, junto com outros preciosos documentos.

Pena, gente. Fica pra próxima, tá.

***

O palácio de Alcázar, erguido durante a Alta Idade Média e depois reapropriado e recauchutado em 34579 estilos umas 2480798 vezes ao longo da história, é a principal atração turística de uma cidade que, depois de ser um longevo centro de poder e disputas políticas da Península, vive hoje em dia do turismo.

Lindo. Imponente. Interessante. E, ao mesmo tempo —

Vou dizer. Nas ruas de Sevilha, não vi toureiro, não vi a cigana de Bizet (Carmen, a ópera, é ambientada na cidade). É tudo lindo e cheio de passados monumentais? É. A comida é boa e farta, as “tapas” (porçõezinhas de comidiñas) são fenomenais? Sim. Um dia conto mais. A Giralta, a catedral, o castelo….? Sí, sí. Na famosa Plaza de España, criada para a Exposição Iberoamericana de 1929, gravaram Star Wars e mais Lawrence da Arábia (1962)? Yea. É uma cidade magaviosa. Mas.

Talvez seja complexo de colonizada. Ou mais ou menos colonizada, que ao mesmo tempo eu sou descendente de italiano e japonês, ou seja, cheguei na festa tupiniquim muito tarde, e todos os meus antepassados se ferraram pra fazer a vida no Brazel, como outros muitos etc.

Todo aquele luxo, toda aquela pompa régia. Quem pagou? O pato e o palácio?

Lembro de uma conversa com um senhor português durante uma road trip em Portugal. Pra meu choque, ele afirmou que seu país tava economicamente na m… porque “deixou” o Brasil e suas outras colônias virarem independentes.

Pois é, ora poix, nada fixe.

Em lugar de argumentar, também lembro que optei por guardar silêncio e balançar meu pezinho na borda da piscina do hotel, vendo como fazia círculos na água.

Por isso, me emocionei, mas não tanto quanto imaginava, diante da visão do ostensivo-magnífico palácio de Alcázar, até hoje utilizado pela realeza espanhola como hotel privê em suas visitas à cidade (é o palácio real em atividade mais antigo do mundo etc).

Pátio das Donzelas no palácio de Alcázar, Sevilha (Susana Bragatto / Folhapress)

Balançou um pouco mais meu corazón, por exemplo, a antiguidade das muralhas defensoras remanescentes e seus líquens e rodapés pré-ibéricos.

Ou Itálica, sítio arqueológico perto de Sevilha onde o imperador Trajano nasceu e mosaicos romanos sobrevivem entre oliveiras. Tá certo que tal assentamento, o primeiro fundado pelos romanos na Hispania, era basicamente um super resort de gente bacana do Império Romano, feito, again, à base de suor escravo e subjugação de muuuchos povos… mas que chata sou, não?

Minto. Dentro de Alcázar, um lugar em particular me chamou mucho a atenção: a cisterna (aljibe) subterrânea do palácio, onde, diz a lenda, banhava-se a María de Padilla, amante do rey Don Pedro I de Castilla (aka O Cruel ou O Justiceiro, dependendo do retratista).

Jardins do palácio de Alcázar, Sevilha (Susana Bragatto / Folhapress)

Sim, essa Maria Padilha. Fonte de inspiração para uma das pombagiras mais famosas dos cultos afrobrasileiros, e aqui na Espanha também retratada como mulher livre e ousada para seu tempo. Como a Carmen, a hipnótica cigana enroladora de cigarros da ópera sevilhana de Bizet (que, por sua vez, curiosidade, nunca esteve em Sevilha).

Conhecido como “los baños de doña María de Padilla”, esse espelho de água criado na época almohade (lá pelo século 12) reflete as abóbadas góticas que o abrigam, construídas entre os séculos 12 e 13, gerando um olho mágico de simetrias onde, sim, adoraríamos imaginar a Padilha lavando o sovaco, sob a mirada apaixonada de seu Pedruco.

Banhos de Maria Padilha no palácio de Alcázar, Sevilha (Susana Bragatto / Folhapress)

Pena que provavelmente é só uma fantasia. Ou não. Na época de Pedro e Padilha, o mundo cristão não era muito fã de banho, mas é verdade que Sevilha já possuía então muitos banhos coletivos ou hammams –ao lado dos pátios interiores e fontes de água, um dos grandes legados da influência árabe na Península.

O pátio de doña María é da mesma época. O aspecto atual guarda pitadas do terremoto de 1755 (o mesmo que derrubou Lisboa) e afrescos renascentistas nas paredes laterais, atualmente em recuperação. Belíssima pedida para um selfie dentro de um majestowwwso castelo castellano.

***

Na saída, detrás de uns explodentes lírios brancos no jardim, escuto um jardineiro muito idoso comentando com uma turista que essas flores eram utilizadas como psicoativas, ao que a senhora abanava a cabeça, não sei se entendendo nada ou tudo demais. Olhei à minha volta e voltei atrás. Minha paixão pelo castelo coronado de lendas pintou no epílogo….

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Este artigo não é sobre um aperitivo de foie gras com castanhas https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/10/03/este-artigo-nao-e-sobre-um-aperitivo-de-foie-gras-com-castanhas/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/10/03/este-artigo-nao-e-sobre-um-aperitivo-de-foie-gras-com-castanhas/#respond Sun, 03 Oct 2021 18:40:29 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/quimet-foie-com-castanhas-1-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=1071 (Parte I: O Entorno)

Pronto, o elefante gourmet na sala.

Isso que eu conto aconteceu quase uma semana atrás. Mas ainda persiste em minha memória, fresca y aromática, a combinação (pra mim) inédita de sabores, arrematada por finas lâminas de champignon com seiláque bruxarias.

Tudo culpa do Anthony Bourdain, penso.

Sou uma p* pagapau. Naquele dia, quando saí de casa, tava ansiosa como se fosse trombar um match do Frinder pela primeira vez.

Desci na estação de metrô Parallel, zona oeste de Barcelona, microtaquicárdica.

Na saída, passo pela famosa sala Apolo, um espaço de espetáculos y nightclub onde já tocou de Smashing Pumpkins a (com todíssimo respeito) bandas de amigos.

Ali perto, avisto também um edifício fechado onde, até a pandemia, havia um clube de striptease. Ecos da época de ouro da avenida del Paralelo e seu burburinho cultural, com cinemas, teatros, circos, contrastes. Até hoje, o quarteirão ainda guarda um arzim meio Moulin Rouge versão remelexo-Augusta.

Aaah, Barcelowna. Nesse bairro popular que se chama Poble Sec (literalmente, “Vila Seca”), tem de tudo. Vai vendo.

Alguém tomando um pico de heroína na maior tranquilidade, enquanto o entardecer dourado acaricia cabeciñas brancas de anciões locais a passeio.

Turistas rubios (loiros) olhando pro céu enquanto arrastam maletas ou tiram fotos, alheios ao cara vomitando num canto imundo, o rosto congestionado de sofrimentos.

(É. E tem gente que pensa que aqui nazoropa num tem disso)

Lojinhas minúsculas oferecendo fotos pra documentos, capinha pra celular, frutas, bocadillos de chorizo e dois coquetéis por um.

Passo por uma mina tranquilamente lendo um livro escorada numa árvore da calçada. Uma senhora com pinta de 105971086 cirurgias plásticas, os peitos brilhantes saltando de um apertado corset verde. E uns jovens altíssimos gritando em árabe entre si, com seus relógios dourados, perfumes contundentes e moletons oversize onde se lê

Balenciaga Balenciaga Balenciaga.

E eu, com meu vestidinho amarelo e minha sandalinha de couro fazendo tec tec no asfalto sujo.

Na esquina do meu destino, um Burger Kingui. O nome da rua é de um poeta pré-romântico chamado Cabanyes. Mas isso foi ideia dos franquistas. Eles deram uma “disfarçada” no nome original, que fazia referência a outro Cabanyes –este, um herói militar catalão nas batalhas contra o exército espanhol de Felipe IV no século 17.

***

Quando finalmente chego onde tinha que chegar, bizoiando do lado oposto da calçada, brota em minh’alma o primeiro julgamentozinho negativo: putz, não é o que eu esperava. (E o que eu esperava? Glamour, tapetes vermelhos, faisão à Provençal (que p* é essa?!)?)

Expectativas, essas sandalinhas de couro fazendo tec tec no asfalto sujo.

Quimet & Quimet (esse é o nome do meu date-destino) é um dos bares mais icônicos de Barcelona. Já era popular antes mesmo de virar parada turística obrigatória nos anos 2000, quando foi super elogiado pelo chef rocker Anthony Bourdain, de passagem pela cidade.

Essa pérola da gastronomia botetística está afincada no lugar onde tem que estar, desde 1915, quando o primeiro Quim (“Quimet”, em catalão) de uma longa linhagem de boteco owners servia bebidas e comidas para os trabalhadores da vizinhança obreira de Poble Sec.

Fachada do bar Quimet & Quimet, em Barcelona. A noite tá só começando e já tem fila (Susana Bragatto / Folhapress)

Bourdain, que foi ao Quimet & Quimet muitas vezes (a primeira, sendo levado por seu amigo local, o super estrelado chef Michelin Ferran Adrià) era fã da chamada “cozinha de mercado” ou, em catalão, “cuina de mercat”: basicamente, comida simples e deliciosa, com ingredientes frescos e de qualidade. Barcelona era um de seus lugares favoritos no mundo.

Explorar um lugar novo, pra ele, era o grande tesão. Não saber. Dar tudo errado. Nunca dar errado. Surpreender-se, surpreender. Enjoy the ride. Etc.

“Tenho uma tatuagem no braço que diz, em grego antigo: ‘Não tenho certeza de nada'”, escreveu ele uma vez, no seu característico estilo f**-se. “Acho que é um bom princípio operacional. Adoro aparecer num lugar pensando que vai ser de um jeito e tendo todo tipo de preconceitos estúpidos e, mesmo que de uma forma dolorosa e embaraçosa, verificar que estou errado. Se você conseguir aprender um pouco mais sobre o mundo a cada dia, já é uma vitória (it’s a win)”.

***

Imbuída desse espírito bourdiano, respiro fundo e atravesso a rua. Em geral, até que me considero valiente, mas hoje me sinto meio sem jeito de entrar no meu date-destino sozinha. Tec, tec.

A fachada de madeira pintada de vermelho profundo emoldura um ambiente diminuto, quase um cubículo, com umas três ou quatro micromesinhas onde alguns começam a se reunir em pé com seus drinques e tapas (pequenas porções de comidiñas). O bar acaba de abrir para o turno da noite.

As paredes estão cobertas de latas e vidros de conserva e garrafas de vinho e cerveja e uísque inglês até o teto, onde baila um ventilador desses bailantes tipo Martin Sheen pirando no hotel em Apocalypse Now.

Eu logro conseguir um lugarzinho no balcão, onde esparramo meus cotovelos, ladeada à esquerda por um homem que devora um prato de anchovas e cremes profusos e, à direita, por duas turistas que brindam com cava rosada enquanto pedem um negócio que parece pêssego em calda –com anchovas.

O dono do bar é ríspido, daquele jeito catalão que magoa uma sensibilidade brazilêra. Já tô com medo dele.

(Continua….)

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*aos que me seguiam em @normalitasblog: tiraram a pemba da minha conta do ar. Provisoriamente, compartilho a conta acima 🙂

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Com 80% de vacinados, Espanha espera uma discreta alta de casos no outono https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/09/17/com-80-de-vacinados-espanha-espera-uma-discreta-alta-de-casos-no-outono/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/09/17/com-80-de-vacinados-espanha-espera-uma-discreta-alta-de-casos-no-outono/#respond Fri, 17 Sep 2021 20:47:08 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/café-e-morangos-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=1051 No bar, de manhã. Portio café bar, diante do maravilindo parque do Clot, Barcelona, pra quem está na área. Comum, pros olhos comuns.

Sento lá pra desfrutar de um americano antes de ir ao trabalho. Desfrutar, essa palavra que se usa tanto aqui. Sol ardido, aquecimento global mediterrâneo. Gente local acha engraçado eu ser brasileira e dizer que o calor aqui ultimamente consegue ser pior que São Paulo metida no engarrafamento da Vinte e Três de Maio ao meio-dia de um verão.

Também, os espanhóis não sabem o que é engarrafamento –digo yo, não sem um orgulho imbecil.

Mas, voltando ao bar.

O dono, wapo (guapo, bonitón) senhor de olhos verdes cansados, sempre atende com simpatia. Parece uma dessas naturezas tipo deixa-rolar que não retêm o dia de ontem –embora o canto caído das pálpebras me sugira nostalgia.

Olhaí, esse é o Bar das Digressões.

Oito e meia da manhã e dois caras no terraço ao meu lado com encardidas camisetas da labuta mandando ver na cerveja. Passam de falar do Pepe que botou foto nova de um carrão no Facebook, como terá conseguido grana pra um negócio tão caro, no lo veo, para se recomendar mutuamente… comidas.

— Fresas (morangos) en la crema catalana, tío. En trocitos. Te lo digo: tienes que probar.

Que delicadeza, esses dois hômi de voz trovejante e máscara pendurada no queixo falando de morangos. “Crema catalana” é o crème brûlée regional (e alguém estará bufando de raiva com essa comparação).

Apuro o ouvido, sou uma comadre buscando humanezas. E dicas culinárias.

— … También los caracoles están buenísimos. (mania de caracóis o povo tem aqui, um dos poucos pratos típicos que não balançam meu corazón). Y las gambas (camarões), con alioli casero.

O restaurante, diz o nome do restaurante!

***

A Espanha registrou hoje (17) a menor taxa de novos contágios de Covid do último ano: 2.333 casos. Já é o terceiro país com mais vacinados do planeta, atrás apenas dos Emirados Árabes Unidos e Portugal, com quase 80% da população coberta (76% com a pauta completa).

Desde o final de junho, quando o governo nos libertou do uso da máscara nas ruas, ocorreu aqui um fenômeno interessante: a maioria optou por continuar usando a máscara. Eu incluída.

Às vésperas do outono no hemisfério norte, a alta taxa de vacinação na Espanha não significa pouco. Espera-se um minipico de casos com a chegada do frio, mas nem de longe parecida com as seis ondas anteriores. A campanha começará agora a aplicar uma terceira dose na população de risco, como pacientes de câncer, portadores de Síndrome de Down com mais de 40 anos, idosos em asilos e imunodeprimidos.

Comentava com a minha irmã, que vive em São Paulo, que a polícia aqui está usando uma tática extrema para dissolver multidões de jovens que, ultimamente, com a flexibilização das medidas sanitárias, têm se reunido para os “botellones” (festas na rua regadas a árco). Com a ajuda do corpo de bombeiros, tasca mangueira de água nos críos.

–Se fosse no Brasil, não ia funcionar –comentou ela. — Iam pensar que é Carnaval!

Parc del Clot, seu lindo (Susana Bragatto / Folhapress)

No bar do José Luís, que é como se chama o señor de olhos líquidos, a conversa entre nossos dois heróisdujour deriva para temas sindicais, sem que eu consiga descobrir de que restaurante estão falando. Quase me levanto, histérica, e grito “quero sabeeer!”, mas faz calor e eu tô atrasada. Volto ao meu café, ao meu dia comum, nesse bar tão corriqueiro, nessa hora nascente da manhã.

–José Luís! Un par de carajillos*! Y un par de chupitos**!

Oito e meia da manhã, um bar qualquer, e eu sonhando com um chupito myself.

Ou co’a cobertura crocante de caramelo da crema catalana, que a gente quebra com a colher e abocaña com o creme de ovos y leite, aromatizado com canela, baunilha e raspas de limão ou laranja (ou anis, na versão do über chef Michelin catalão Ferrán Adrià).

* café com árco (rum, Bailey’s, uísque…)
** dose de árco

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O assobio ancestral dos canários https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/09/10/o-assobio-ancestral-dos-canarios/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/09/10/o-assobio-ancestral-dos-canarios/#respond Fri, 10 Sep 2021 20:27:04 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/silbo-gomero3-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=1044 Estávamos num hotelzinho rural na perdida y maravilinda cidade de Juià, no Baix Empordà, serra catalã.

Na mesa do café, entre jamones ibéricos e uma cava rosada que eu trafiquei diretamente da Xampanyería, famosa bodega de Barcelona, falávamos sobre a África.

Meu saudoso ex-namorildo catalão lembrava uma viagem sua a Botsuana e à tribo dos sãs ou sans, também conhecidos como bosquimanos.

Um nativo se destacava dos demais, com seus tênis náike e inglês impecável. Batia numa pedra e dizia: aqui há escorpiões. E havia.

“Conhecemos muito bem o nosso entorno!”, disse. “We are the new generation”. Ele também falava a língua tradicional, cheia de sons guturais e golpes de glote.

Daí que lembrei do meu (ex-, saudoso também) sogro canário, quando me contou algo fantástico sobre a ilha de La Gomera, a segunda menor do arquipélago espanhol de Canárias.

Marcada por uma topografia vulcânica, coberta por uma vegetação que parece um patchwork de cerrado e Mata Atlântica (lá, conhecida como laurisilva), a ilha é famosa também por uma língua ancestral, até hoje ensinada nas escolas.

O assobio (“silbo”) gomero remonta a eras pré-hispânicas, quando castelhanos se mesclavam com as tribos de origem berber (do norte da África) conhecidas genericamente como “guanches”.

Meu sogro lembra quando era pequeno e ouvia os “mayores” (mais velhos) articulando zilhones de conversas aka cantosdepassarinhos por meio de assobios que, dizem, podem chegar a até quatro, cinco quilômetros de distância.

Essa linguagem ancestral coletiva era usada para transmitir notícias sobre mortes, incêndios, perigos, tudo o que pudesse afetar a comunidade.

Mas não se trata de uma relíquia antropológica, e sim de uma língua viva y operante: alguma xovem canária comentou, numa matéria na tevê, que usa o “silbo” pra se comunicar com amigos em festas, por exemplo :). Alguém comparou a um Whatsapp dazantiga…

Uma professora de silbo gomero explica: “nas conversas assobiadas, é muito importante o contexto, porque uma única palavra assobiada pode ter até 30 significados diferentes na linguagem falada”.

E é fácil aprender? “Uma vez que você aprende como botar os dedos na boca e na língua, é só praticar”, diz.

Como a estrutura linguística do assobio canário é silábica e vocálica, dá pra transmitir mensagens em qualquer língua do planeta. Até em prutuguêis do Brazeeel! Imagina um gomero cantando tico-tico no fubá em gomerês —

Desde 2009, essa bunita tradição é considerada Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Unesco. O aprendizado da linguagem assobiada gomera está integrado à educação básica, o que favorece sua preservação para as futuras gerações.

O silbo gomero aparece inclusive em filmes, como The Whistler (La Gomera – A Ilha dos Assobios), thriller do diretor romeno Corneliu Porumboiu:

Olha que cousa maravilhosa. Conversa entre pastores de cabras, com direito a legenda. E crianças aprendendo a assobiar na escola. Pqp, esses gomeros son mucho amour…!

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Um passeio pelo maior sebo da Espanha https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/09/03/um-passeio-pelo-maior-sebo-da-espanha/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/09/03/um-passeio-pelo-maior-sebo-da-espanha/#respond Fri, 03 Sep 2021 20:19:44 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/El-Siglo4-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=1017 O chão se enrola em si mesmo, formando quadrados vertiginosos que suportam poltronas de veludo. O palco está vazio, exceto por um piano de armário onde falta uma tecla, um ré central –tomo nota, mentalmente, enquanto dedilho.

No lugar de paredes, livros. Muitos. Los que quieras.

Enfileirados, empilhados, eretos, debruçados, pairam sobre as cabeças passeantes umas coleções extensíssimas, arte, psicologia, clássicos, edições raras.

Nada como um pianiño, umas revistinha e uma versão-for-kids de (In My) Solitude (Susana Bragatto / Folhapress)

Num outro aposento, sobre uma mesa com tampa de vidro e cadeiras estilo Luís XV, um gordo lustre ilumina um livro infantil ilustrado, talvez recentemente folheado por mãozinhas ou mãozonas: Las pesadillas de Winnie the Pooh (Os Pesadelos do Ursinho Puff).

Logo ao lado, uma cozinha industrial, moderna e minimalista, rodeada de –adivinhou –mais livros. Ali, rolam aulas de culinária e outros eventos gastronômicos.

Outras estantes carregam fotos de toureiros, bibelôs, dedicatórias esmaecidas, pôsteres de outra Espanha, histórias de outras vidas.

Relíquias e delicadezas da livraria El Siglo, o maior sebo da Espanha (Susana Bragatto / Folhapress)
Avec Carmen Miranda à la española (Susana Bragatto / Folhapress)

Este é o El Siglo (O Século), o maior sebo da Espanha, um mundo fabuloso e complexo entocado num galpão dentro do Mercantic, famoso mercado de antiguidades e artigos lokos de segunda mão no município de Sant Cugat, a meia hora de Barcelona.

A livraria ostenta esse título desde 2013, quando incorporou os 100 mil exemplares de outro templo sebístico de Barcelona, o La Canuda, que funcionava desde 1948 no centro perto da Plaza Catalunya e fechou as portas pra dar lugar a alguma super loja de fast fashion das que hoje abundam por ali.

Hoje, o El Siglo possui em torno de 150 mil livros, revistas e documentos distribuídos em 800 metros quadrados. É lugar pra chegar, se perder por horas e emergir com algum livrinho barato (ou não) na mão.

Adentro o hall principal, onde há um bar e o burburinho de uma discreta massa, num domingo de sol de final de agosto. Tô emocionada.

Não só pela impressionante abundância de volumes e lustres de cristal, que dão ao local um arzim épico-charmoso de templo-dos-traça-lovers. Mas, principalmente, porque é dia de música ao vivo.

Um dos palcos dentro da livraria El Siglo, o maior sebo da Espanha (Susana Bragatto / Folhapress)
Ursinho Puff também é cultura (Susana Bragatto / Folhapress)

Minha primeira vez em muito, muito tempo.

Os indícios de uma pandemia ainda rondam aqui e ali: vemos gente mascarada, álcool em gel e mesinhas distantes umas das outras. Mas, de resto, a experiência é mansa y dulce.

A música ao vivo tem voltado aos poucos em alguns lugares. Ainda não muito.

Encontramos um cantinho pra sentar, equilibrando no colo vermutes e vinhos verdejo. Nesse salão principal, num palco maior que o mencionado acima, um duo de baixo acústico e piano começa a produzir as primeiras notas de um standard de jazz desses que a gente cantarola e não lembra de onde conhece.

Depois, entra a cantora: uma catalã entoando chansons francesas. Ne me quitte paaaaaaas, e a gente vai balançando ao ritmo dessa súplica poética, tentando esquecer por um momento que, apesar de 70,9% da população imunizada após 8 meses de campanha de vacinação, ainda temos alguns milhares de casos novos de Covid no país diariamente; e empurrando pro fundo do intestinus delgadus os alertas dos tais Especialistas Epidemiologistas, que vêm nos dizendo: cuidado que pode vir mais, cuidado que tem o frio chegando, cuidado que a vacina não funciona assim tão bem com as novas variantes.

Concerto na livraria El Siglo, o maior sebo da Espanha, agosto de 2021. Saca esse público comportadim, que fofo 😉 (Susana Bragatto / Folhapress)
The Spanish way em El Siglo (Susana Bragatto / Folhapress)
Livraria El Siglo, o maior sebo da Espanha, agosto de 2021 (Susana Bragatto / Folhapress)
Vai um livriño aí? (Susana Bragatto / Folhapress)
Palco principal da livraria El Siglo, o maior sebo da Espanha, agosto de 2021 (Susana Bragatto / Folhapress)

Hoje não, por favor. Termino meu verdejo, o último de muitos. Tout peut s’oubliee–eeeeer lalalala.

Debaixo do braço, trupicando, mas ainda em pé, levamos uma edição marota setentista de Leaves of Grass, de Walt Whitman. Pra não sair de mãos abanando, pra arrematar a visita com uma mesura a esse belo lugar, pra declamar em voz alta, detrás de uma máscara cirúrgica 2021, num canto alumiado de algum aposento da alma cansada, I celebrate myself, and sing myself….

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O diabo, a nuvem e alguma lágrima https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/08/20/o-diabo-a-nuvem-e-alguma-lagrima/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/08/20/o-diabo-a-nuvem-e-alguma-lagrima/#respond Fri, 20 Aug 2021 22:04:05 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/20210815_211259-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=962 O que nuvens de celofane, diabos soltando fogo e sistemas planetários têm em comum?

Se cê chutou Carnaval, quase.

(eu chutaria Terry Gilliam, mas é que eu sou romântica)

Aqui na Espanha, o Carnaval não é assim Aqueeeela Data Do Corazón como pra gente aí no Brazel. As exceções honrosas talvez sejam os carnavais de Tenerife ou Cádiz, internacionalmente conhecidos.

Apesar disso, a verdade verdadeira é que, na percepção parcial, mas consistente dessa imigrante que vos fala, os espanhóis são uns party animals. Nunca vi tanta festa de rua como aqui.

O calendário anual de festas populares inclui centenas delas, entre grandes, pequenas e minúsculas. Em parte, motivadas pelo profundo histórico religioso-cristão do país, com homenagem a santo, data bíblica e tal.

Mas tem pra tudo: festa pra abrir primavera, pra fechar o verão, pra homenagear o patrono da cidade, pra festejar a colheita de cogumelos (os de comer no strogonoff, gente), pra fazer guerra de tomate (a famosa Tomatina, em Valência) e por aí vai.

Festa da Tomatina, Buñol, Espanha (Reuters / Juan Medina)

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A pandemia, claro, afetou o ritmo de fiesta español costumeiro. Em 2020, tudo cancelado.

Este ano, em agosto, finalmente começam a ressurgir algumas celebrações aqui e ali, embora dependa muito da localidade –Madri, por exemplo, suspendeu por ora as principais festas populares do mês, por cautela covidiana.

Carnaval da ilha de Tenerife, Espanha. Parece um bokado com o nosso (AFP PHOTO / Desiree Martin)

Em Barcelona, a grande festa popular de agosto acontece esta semana até o próximo sábado (21), depois de uma última edição pandêmica completamente virtual (aka: não aconteceu) em 2020.

É a “Festa Major” (festa maior) do catalaníssimo bairro de Gràcia.

Onde, por cierto, eu vi o diabo, a nuvem, o arco-íris e muito mais.

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As festas maiores são um clássico espanhol. Acontecem em diversas partes do país ao longo do ano. Cada bairro, distrito ou município pode ter a sua, com dinâmica e peculiaridades próprias. Algumas tradições remontam pelo menos à Idade Média.

Festa maior de Gràcia, 1915 (Reprodução)

E o marr legal: quase sempre, os próprios moradores e negócios locais participam da organização, decorando ruas e organizando pequenos concertos (concertos, que era isso mesmo?) e “barras” (balcões de bar) para servir drinques e “tapas”.

Em Barcelona, com seus 10 distritos e 73 bairros, há cerca de 20 festas maiores ao longo do ano. A mais famosa é, sem dúvida, a de Gràcia, celebrada há mais de 200 anos.
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Passear pela festa de Gràcia 2021 é assim meio mágico. Digo yo.

Ainda mais este ano, em que ressurge com gostinho de fênix.

Festa Maior de Gràcia, Barcelona, 2021 (Susana Bragatto / Folhapress)

Festa Maior de Gràcia, Barcelona, 2021 (Susana Bragatto / Folhapress)

Há algo singelo e comovente nas decorações temáticas com celofane e papel machê penduradas entre os balcões, sobre os postes de luz, enlaçadas em persianas e fios de eletricidade.

Algumas me lembram trabalho de aula de arte da escola.

Outras parecem aventuras protospielberguianas.

Mas a maioria fica no meio do caminho entre o esmero de mãos não necessariamente expertas, mas amorosas. O resultado é um conjunto vistoso, que nos brinda aos críticos-malas-que-não-metem-a-mão-na-massa como eu com um espetáculo imersivo mezzo alucinatório, mezzo poético.

Em meio ao caos das ruas festivas, os locais montam mesas na rua e celebram o esforço (às vezes, de meses) com um banquete pra eles mesmos e amigos. Quero chegar a ser uma insider assim um dia. Hay que vivir en Gràcia.

Festa Maior de Gràcia, Barcelona, 2021 (Susana Bragatto / Folhapress)

Festa Maior de Gràcia, Barcelona, 2021 (Susana Bragatto / Folhapress)

Cada rua tem uma onda diferente. Uma lata de tinta que vomita mil cores sobre nossas cabeças; planetas e meteoros banhados por luzes sci-fi; intermináveis guirlandas de flores, polvos, dragões.
Depois que termina a festa, qualquer um pode bater na porta da associação da rua e pedir um pedacinho da decoração de lembrança.

Minha amiga catalã já tinha escolhido o que queria pedir: uma longa trança de flores e folhas de papel.

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Lembro da minha primeira festa maior de Gràcia, nos idos de 2000 e algo. Não dava pra andar na rua de tanta gente. E mal se via a decoração, de tantos turistas bêbados alçando canecas de cerveja. Terminei a noite banhada em cerveja, e olha que eu nem curto cerveja, chaval.

Também mal ouvia a música com tanto alarido de gentecontente.

A única experiência da minha vida que se compara a essa badalada festa de bairro pré-pandemia é o carnaval de Olinda, quando, uma vez, eu fui carregada pelo movimento autônomo da multidão enquanto por sinal chupava um sorvete de cajá (proezas pessoais, falemos delas).

Ah, Brazel.

É legal, mas, neste momento pós-pandemia, tá diferente.

Este ano, em Gràcia, teve fila indiana pra entrar em cada uma das ruas decoradas. Está mais organizado, mais contido. Mas, ainda assim, bunito.

Porque festa popular, gente, é pra mim mais do que um banho de cerveja e uns boffs ou um passeio em família. Mais do que nunca, nesses tempos demasiado surreais, talvez ofereçam também uma oportunidade de conjurar aquela lágrima há tanto guardada no canto do olho, inspirada pela sensação indescritível, mas quentinha e confraternizadora, de pertencer ao jogo do mundo, ao tempo dos ventos, ao balouçar dos crepons.

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Vai um abraço aí? https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/04/02/vai-um-abraco-ai/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/04/02/vai-um-abraco-ai/#respond Fri, 02 Apr 2021 14:31:26 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/Pili-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=640 — Não me meto porque não posso!!!

Demoro um milissegundo pra perceber que é com a gente.

O grito interrompe meu longo abraço com uma amiga numa calçada de Barcelona, numa tarde de sol. Fazia meses, quantos?, que a gente não se via. Maior emoção. Pandemia, u know.

A gente se aparta e vê uma señora de seus setenta, baixinha, óculos na pontiña do nariz, observando-nos com lágrimas nos olhos e as mãos dramaticamente entrelaçadas apoiando seu rostinho corado, os óculos embaçando em cima da máscara cirúrgica.

Saquei na hora. Perguntei: quer um abraço também? E tasco um puta abraço nela. Começa a se sacudir de choro. Os transeuntes nos olham com curiositê.

Mais calma, nos conta: perdeu o marido para um câncer de cólon fulminante no início do ano. Seu filho mora longe, em Valência. Só o viu pros atos funerários. Pandemia, pandemia.

Ela teve coronavírus, eu também. Seguem-se tapinhas empáticos nas costas. É duro, é duro. Mas estamos aqui.

“Não tenho ninguém, e há muito tempo não sei o que é um abraço. Obrigada, obrigada”, diz.

Maria del Pilar, Pili para os íntimos, é bailarina. Nos mostra fotos. Essa sou eu encenando a crucificação de Cristo, essa sou eu numa apresentação de tango. Aqui eu dançava sevillanas. Olha que pedaço de mulher eu era!

A gente aquiesce. Puta gata, mesmo. Minha amiga também é bailarina e coreógrafa, digo –de quê?, pergunta Pili. “De street dance”, responde a referida, modestamente. Pili faz cara de quem não entende e segue. Ela precisa falar falar falar, e desembesta a contar sua vida, os últimos meses, a mostrar fotos de seu marido, um simpático senhor com bigodinho grisalho, que por sinal, penso, parecia um pouco com meu tio.

“Nos últimos anos, comecei a me apresentar em residências geriátricas”, conta. “Tadinhos dos velhinhos. Tão sozinhos”.

Os asilos foram um dos maiores focos da pandemia espanhola, com milhares de mortos e denúncias de abandono e maus tratos.

Ela diz que um dia uma senhora numa cadeira de rodas, as mãos crispadas por artrite e outros paranauês pouco amáveis da idade, se recusou a jogar dominó com os companheiros. Desanimada, desencorajada. Pili tascou: olha. Se você só tivesse meia hora de vida, você jogaria? E a velhinha entrou no jogo.

Em outra conversa numa dessas visitas a uma residência, comentou a um señor uma dessas filofrases básicas que não escreveu a Clarice mas todo mundo tatua na bunda: a vida, seu Pepe, é um momento. “Às vezes, nem isso” –retrucou Pepe, esse sábio desconhecido.

Tento me despedir inúmeras vezes. Minha amiga é mais suave que eu, mas mesmo minhas habilidades cortantes falham aqui. Pili nos sorve até a última gotiña, como água no deserto. Não quer deixar a gente ir. Pergunta aonde vamos, onde vivemos, e, finalmente, dou meu número pra ela. “Posso te mandar bom dia, boa tarde e boa noite com corações?”, pergunta ela. Eu respondo, sacando o máximo de bom humor de minhas profundezas biliosas: Pilar, se você fizer isso, juro por Dios que te bloqueio.

Quando já nos íamos, ela grita à distância: ei, vocês gostam de frango? Porque o frango assado do Carrefour, meninas, é uma delícia, e está muito bem de preço!! E, borbulhante como veio, se esvai pela tarde de luz primaveril.

Pili, Pili. Pequenas grandes significâncias da pandemia. Em tempo: até agora, não me mandou corações pelo whatsapp. Mas a linda foto que vocês veem neste prosaico artigo, sim. Bailando, bailando…

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Shows ‘laboratório’ em Barcelona dão pistas de como será a balada 2021 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/03/19/shows-laboratorio-em-barcelona-dao-pistas-de-como-sera-a-balada-2021/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/03/19/shows-laboratorio-em-barcelona-dao-pistas-de-como-sera-a-balada-2021/#respond Fri, 19 Mar 2021 23:47:40 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/show-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=620 Sim, sim, eu me lembro (mais ou menos) bem: o techno e os estrobos verdes, as milhárdias de cabeças balouçantes, os patolas e empastillados (pastilla = pílula) me pegando pela cintura enquanto eu meio que dançava, meio que me perguntava cadê a pemba do meu amigo.

Essa foi minha última experiência na sala Apolo, uma das boates-e-casas de shows mais tradicionais de Barcelona, antes do confinamento que calou o ócio noturno e botou todo mundo pra bailar na sala de casa, exatamente um ano atrás.

Fast and furious para 12 de dezembro passado. Nesse dia, excepcionalmente, depois de um ano duríssimo de portas fechadas, a Apolo abriu –mas não para uma balada normal e, sim, como parte de um estudo conduzido por investigadores do hospital Can Ruti, com apoio do Primavera Sound (empresa de eventos que organiza um dos festivais mais famousous do mundow).

Na programação extraordinária, dois DJs e dois shows de artistas locais. Estávamos então caminhando para a terceira onda da pandemia, espremidos entre liberalidades pré-natalinas e (muitas) restrições coletivas.

No ambiente principal da Apolo, com capacidade de 1.300 pessoas em tempos normais, pouco menos de 500 foram admitidas, todas e cada uma com máscaras homologadas e testes de antígenos negativos feitos horas antes.

Os mesmos testes foram realizados em outros 500 voluntários, que ficaram de fora da festa como grupo controle.

O objetivo do estudo era contemplar uma ampla faixa etária –havia gente de 18 a 60 anos –, sem antecedentes de doenças importantes, sem convívio com pessoas de risco, e que, claro, não houvesse pego o vírus nos últimos 14 dias.

Deixaram o povo se divertir sem distanciamento social, mas com muito álcool em gel à disposição e áreas restritas para fumantes e bebedores.

Oito dias mais tarde, os mil voluntários do estudo se submeteram a uma PCR.

E os resultados surpreenderam: no grupo que havia participado da festa, ninguém-aka-zero-pessoas contraiu o vírus. E, no grupo controle, apenas 3 pessoas deram positivo.

Ou seja: estatisticamente, concluíram, não se poderia afirmar que há mais risco dentro de um evento cultural do que fora, na vida merrma.

O setor comemorou, mas pouco aconteceu em seguida, porque nos engoliu a supracitada Terceira Onda Pós-Natal e eis que estamos aqui de novo tirando o cabelo da cara e pensando se fechamos tudo de novo ou pegamos uma praia.

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O segundo passo dessa espécie de Laboratório para A Vida Cultural Pós-Covid acontecerá no próximo dia 27 de março, quando a banda-queridiña-dos-indies-catalães Love of Lesbian fará um show para 5.000 pessoas no Palau Sant Jordi, outra casa de concertos muy famosa (e, como as demais, assaz coronacombalida) da cidade.

De novo, os participantes farão testes de antígenos e haverá medidas de segurança específicas para o local. Todos terão que utilizar máscaras homologadas, e o público será distribuído por quatro zonas sem interação entre si.

A iniciativa, batizada de “Festivais para a Cultura Segura”, tem pontos de contato com outras semelhantes que vêm surgindo no cenário europeu.

Aqui, nasceu da união dos festivais e casas de shows mais importantes da região, e tem o apoio da prefeitura de Barcelona. A cidade é uma meca cultural internacional, e o setor sofre cá como sofre aí do outro lado dozatlântico.

A sonhada ideia por trás do projeto é, como expressou um dos investigadores clínicos envolvidos, provar que “as atividades culturais podem ser seguras e não são acontecimentos de ‘super’ transmissão”.

Por aqui, vou pensando no título do próximo disco do Love of Lesbian: Viaje épico hacia la nada*. Até agora, menos de 5% dos espanhóis tomaram as duas doses da vacina, e 75% dos hotéis de Barcelona permanecem fechados. Sou positiva, somos. Mas, sei lá, 2021 segue impregnado de 2020 feelings. Né non?

*Jornada Épica para Lugar Nenhum

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A terceira onda e a frutinha embriagante https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/01/15/a-terceira-onda-e-a-frutinha-embriagante/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/01/15/a-terceira-onda-e-a-frutinha-embriagante/#respond Fri, 15 Jan 2021 21:34:59 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/el-oso-y-el-madroño-maria-castellano-menor-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=459 Nããããooooo!
Eu quis des-ler, mas não deu.

Esses dias, em meio a notícias sobre a voluptuosa frente fria que cobriu a Espanha de branco e imagens de españoles fazendo guerrinha de neve em Madri…

Eu vi cozóio que a terra há de transformar em tomatiños cherry.

Em caixa alta, em manchetes de todas as cores, a expressão fatídica, até pouco tempo atrás mera quimera: LA TERCERA OLA (a terceira onda).

Só eu que penso sempre no Pedro e o Lobo (versão truncada on acid)?

Pausa pra um pouco de neve e um cão feliz na Puerta de Toledo, em Madri, janeiro de 2021 (Reprodução / David Canales)

Taí. De um dia pro outro, alguém decidiu que a Espanha vem vivendo a Terceira Onda da pandemia desde o Natal, quando o afrouxamento do protocolo anticovidiano teria favorecido a expansão do vírus.

Nem a vacinação, que começou no último dia 27 de dezembro, pode (por ora) conter o que já virou cíclico: expansão de contágios > colapso de hospitais > samba do crioulo doido de restrições novas a cada semana/10 dias/2 semanas, quase sempre anunciadas de última hora > incerteza, teorias, protestos, mais manchetes > rinse, cry, repeat.

Quanto à nova mutação “britânica” do vírus, não só chegou ao território español em sua forma “importada” como já foram detectados casos autóctones, sem vínculo epidemiológico com o Reino Unido. A Mais Nova Teoria Provisória sugere que essa nova cepa circula entre nós há pelo menos um mês.

Zaragoza coberta de neve (Reprodução / Nerea Peña)

No entanto, são muito poucos os britCovid detectados até agora, mormente graças a uma feliz descoberta: um kit de PCR da marca Thermo Fischer que indica resultados (positivos) diferentes segundo a mutação do vírus. Portanto: a culpa da Terceira Onda Espanhola é de-nóis-mermo, não da cepa 70% mais contagiosa dos brexitados.

Assim, pelo menos até final de janeiro, seguimos sem bares e restaurantes a partir das 15h30, muitos comércios fechados, toque de recolher e confinamentos perimetrais. É o lobo, é o lobo.

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Mudando de bicho: lembrei da história sobre a frutinha alcoólica do Mediterrâneo por causa de uma foto que vi hoje.

Mostra a famosa escultura conhecida como “El Oso y el madroño” (o urso e o medronho), símbolo heráldico de Madri, afincada na praça da Puerta del Sol, a mais importantchi da cidade. No caso, rodeada da neve assaz inusual dos últimos dias.

“El oso y el madroño”, escultura de Antonio Navarro Santafé. Puerta del Sol, Madri, janeiro de 2021 (Reprodução / David Canales)

Há quem afirme que o urso na realidade é uma ursa, símbolo de fortaleza e fertilidade. Poderia inclusive ser uma referência à constelação da Ursa Menor, por conta das 7 estrelas na bandeira de Madri. Até manifestação feminista já houve pra redefinir o sexo do urso, que, por sinal, permanece escondido debaixo do basto pelo metálico.

Quanto à frutinha comida pel@ urs@, é parente das “berries” e colore os bosques mediterrâneos ibéricos durante as estações frias.

Conhecida pelo menos desde a Antiguidade (com um possível “cameo”, por exemplo, na história dos doze trabalhos de Hércules, quando ele mata o gigante Gerião e o sangue deste se transforma num arbusto de frutiñas madroñeras), até hoje é popularmente utilizada para preparar licores, sidras, vinhos, vinagres, “salsas” e marmeladas.

Madroño in natura (Reprodução)

Durante a Idade Média, o madroño (que em português de PrutugaL se chama MEDRONHO ಠ‿ಠ ) se popularizou por suas propriedades medicinais. Naquela época, diziam que podia curar até a peste. Hoje em dia, estudos incipientes indicam que pode ser legal pra prevenir doenças cardiovasculares, por exemplo.

No século 20, deixou de ser vendida em mercados. Agora o lance pra encontrar o madroño (vaya nombre danado) é basicamente se aventurar no mato entre setembro e dezembro.

Vi meu primeiro arbusto de madroño durante um passeio pelos bosques de Sant Mateu, perto de Barcelona, no “Parc de la Serralada Litoral”. Eu, o namorildis e um amigo paramos maravilhados (ok, eu) diante de um arbusto pintadim de vermelho naquela tarde dourada outonal (ah: o madroño é um dos poucos bichos plantíficos que pode dar flor e fruto ao mesmo tempo, um esplendorrr).

Meu amigo, um italiano do norte muy blasé e Sabido em Cultura Popular, comentou: dizem que comer demais essa frutiña dá enxaqueca e embriaga. Passou por nós uma mulher com cara de This Bosque Is Mine, que nos disse: que nada, podem comer sem miedo!

Posso atestar que não fiquei bêbzda, infelizmente. Mas depois soube que a fama é real: o fruto do madroño começa seu processo de fermentação alcoólica ainda na árvore, e quando a gente come já virou mezzo cachaça-de-frutinha.

Daí seu nome em latim: Arbutus unedo, de “unum edo” –comer um só. Ou alguns de seus apelidos mundão afora, como “borrachines” (de “borracho”, bêbado). @ urs@ de Madri, señoras y señoretes, está bêbad@, bêbad@ de frutinh@s silvestres…

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Sobre o ano que nos espera e algumas tradições escatológicas https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/01/08/sobre-o-ano-que-nos-espera-e-algumas-tradicoes-escatologicas/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/01/08/sobre-o-ano-que-nos-espera-e-algumas-tradicoes-escatologicas/#respond Fri, 08 Jan 2021 23:22:50 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/toilet-magda-ehlers-low-res-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=443 A calefação está ligada, mas meus dedovskis estão congelados enquanto escrevo.

Eis então que é 2021, o Ano Depois Daquele Que Não Terminou. Ou que não existiu, não vivimos, um ano perdido –como escuto muita gente dizer. Ainda estou vivendo aqueles dias iniciais troca-turno, escrevendo 2020 no automático, meus dedovskis congelados ainda viciados na simétrica combinação de números doiszerodoiszero.

Na Catalunha e na Espanha, as festas de fim de ano terminaram há apenas dois dias. O Día de Reyes, 6 de janeiro, é o verdadeiro Natal local, quando todos trocam presentes. É o epílogo conclusivo depois da noite de 24 de dezembro, quando as crianças descem o cacete no caga-tío ou “tió de Nadal”, um tronco com gorrinho vermelho alimentado com biscoitinhos e água desde princípios de dezembro, pra que ele cague doces e ‘regalos’.

Caga tío revisited (Reprodução / Casa da Sogra)

É nessas poucas oportunidades de confraternização familiar em tempos covídicos, ainda que em petit comitê, que a gente ouve histórias de família. Adoro.

Como a minha sogra, médica, que, entre turrones e vinhos, nos contou como na juventude escondeu em sua casa a vietnamita (como se chamavam as impressoras de folhetos) e cartazes revolucionários de uma amiga sua, comunista, perseguida pela polícia franquista.

Mas voltando ao tema da cagada.

Quando eu cheguei aqui, há uns muitos anos, a escatologia festiva catalã foi um dos primeiros, hmmm, detalhes culturais que me chamaram a atenção.

Naquele longínquo ano de 2012, a Espanha ainda respirava com dificuldade por conta da crise financeira (e no entanto talvez vivesse relativamente feliz sem saber que na era sci-fi de 2020 rolaria uma temporada à la 12 Macacos do Terry Gilliam –ay, vida).

No Natal daquele ano, pousei ozóio nos primeiros caganers da minha vida.

Foi na famosa feira de Natal de Santa Lucía, diante da catedral de Barcelona. Avistei muitas banquinhas com bonequinhos, todos alinhados como um exército, cada um cagando uma compacta e vistosa merda marrom. Eram políticos, artistas, personagens históricos. Tinha até um Prince que quase comprei, que eu amo o Prince até cagando.

Detalhe: a tradição manda esconder o caganer no presépio de Natal. O personagem é símbolo de fertilidade e sorte. Esses espanholes são loucos, me gusta!!

No recém-finado ano de vintevinte, alguns dos caganers mais populares foram os do rei emérito Juan Carlos I, metido até o talo real em enrascadas e escândalos mil, e o sanitarista Fernando Simón, garoto-propaganda e porta-voz oficial da coronacrise española. Com máscaras.

Frida Kahlo fazendo o que todos fazemos. Infelizmente, não encontrei o Bolsillonaro (Reprodução: caganer.com)

Mas acabou a festa, apagaram as luzes natalinas e eis que o vintevinte-e-um começa na Espanha com mais e mais restrições, um reflexo do aumento ululante de casos de Covid.

Desde o dia 7 de janeiro, passamos de um confinamento por regiões para um municipal. Só se pode sair com justificativazíssima. Idem para entrar e sair da Catalunha. Os bares e restaurantes continuam abertos somente até as 15h30 e com muitas limitações. E a gente vai continuar pelo menos até fevereiro com o toque de recolher entre 22h e 6h.

Vero, começaram a vacinar o povo no dia 27 de dezembro. Houve um problema inicial de logística com a vacina da Pfizer, que tem que ser transportada a -80ºC, mas agora vai que vai. Os primeiros são os grupos de risco e os profissionais de saúde.

Sí, a festa acabou e, ainda por cima, está chegando um frio que vai bater recordes. Alguns lugares mais frios da Espanha já estão caminhando para a marca de 40 graus negativos. O alerta vermelho está em toda parte.

Se as previsões estão corretas, em três dias acumularemos mais neve na Espanha que em países do norte da Europa. Espera-se neve em Barcelona, Madri e alhures. É o encontro da massa mediterrânea Filomena, nome da minha vó, com a massa fria do continente. Daí meus dediños congelados.

Sobre os caganers: encontrei Frida Kahlo, Angela Merkel, Chewbacca, Trump, rainha Elizabeth II e o Joe Biden fazendo umas boas cagadas. Mas não o Bolsonaro, infelizmente. Nem o Neymar, que havia sido um caganer estrela em 2013, ano de sua contratação pelo Barça. Vou escrever pros caganer makers, isso não pode ser. Feliz doismilevinteeum.

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