Normalitas https://normalitas.blogfolha.uol.com.br Espanholices, maravilhas do ordinário, brotos de brócolis Sat, 04 Dec 2021 00:01:00 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Vai um abraço aí? https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/04/02/vai-um-abraco-ai/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/04/02/vai-um-abraco-ai/#respond Fri, 02 Apr 2021 14:31:26 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/Pili-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=640 — Não me meto porque não posso!!!

Demoro um milissegundo pra perceber que é com a gente.

O grito interrompe meu longo abraço com uma amiga numa calçada de Barcelona, numa tarde de sol. Fazia meses, quantos?, que a gente não se via. Maior emoção. Pandemia, u know.

A gente se aparta e vê uma señora de seus setenta, baixinha, óculos na pontiña do nariz, observando-nos com lágrimas nos olhos e as mãos dramaticamente entrelaçadas apoiando seu rostinho corado, os óculos embaçando em cima da máscara cirúrgica.

Saquei na hora. Perguntei: quer um abraço também? E tasco um puta abraço nela. Começa a se sacudir de choro. Os transeuntes nos olham com curiositê.

Mais calma, nos conta: perdeu o marido para um câncer de cólon fulminante no início do ano. Seu filho mora longe, em Valência. Só o viu pros atos funerários. Pandemia, pandemia.

Ela teve coronavírus, eu também. Seguem-se tapinhas empáticos nas costas. É duro, é duro. Mas estamos aqui.

“Não tenho ninguém, e há muito tempo não sei o que é um abraço. Obrigada, obrigada”, diz.

Maria del Pilar, Pili para os íntimos, é bailarina. Nos mostra fotos. Essa sou eu encenando a crucificação de Cristo, essa sou eu numa apresentação de tango. Aqui eu dançava sevillanas. Olha que pedaço de mulher eu era!

A gente aquiesce. Puta gata, mesmo. Minha amiga também é bailarina e coreógrafa, digo –de quê?, pergunta Pili. “De street dance”, responde a referida, modestamente. Pili faz cara de quem não entende e segue. Ela precisa falar falar falar, e desembesta a contar sua vida, os últimos meses, a mostrar fotos de seu marido, um simpático senhor com bigodinho grisalho, que por sinal, penso, parecia um pouco com meu tio.

“Nos últimos anos, comecei a me apresentar em residências geriátricas”, conta. “Tadinhos dos velhinhos. Tão sozinhos”.

Os asilos foram um dos maiores focos da pandemia espanhola, com milhares de mortos e denúncias de abandono e maus tratos.

Ela diz que um dia uma senhora numa cadeira de rodas, as mãos crispadas por artrite e outros paranauês pouco amáveis da idade, se recusou a jogar dominó com os companheiros. Desanimada, desencorajada. Pili tascou: olha. Se você só tivesse meia hora de vida, você jogaria? E a velhinha entrou no jogo.

Em outra conversa numa dessas visitas a uma residência, comentou a um señor uma dessas filofrases básicas que não escreveu a Clarice mas todo mundo tatua na bunda: a vida, seu Pepe, é um momento. “Às vezes, nem isso” –retrucou Pepe, esse sábio desconhecido.

Tento me despedir inúmeras vezes. Minha amiga é mais suave que eu, mas mesmo minhas habilidades cortantes falham aqui. Pili nos sorve até a última gotiña, como água no deserto. Não quer deixar a gente ir. Pergunta aonde vamos, onde vivemos, e, finalmente, dou meu número pra ela. “Posso te mandar bom dia, boa tarde e boa noite com corações?”, pergunta ela. Eu respondo, sacando o máximo de bom humor de minhas profundezas biliosas: Pilar, se você fizer isso, juro por Dios que te bloqueio.

Quando já nos íamos, ela grita à distância: ei, vocês gostam de frango? Porque o frango assado do Carrefour, meninas, é uma delícia, e está muito bem de preço!! E, borbulhante como veio, se esvai pela tarde de luz primaveril.

Pili, Pili. Pequenas grandes significâncias da pandemia. Em tempo: até agora, não me mandou corações pelo whatsapp. Mas a linda foto que vocês veem neste prosaico artigo, sim. Bailando, bailando…

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Jovem espanhola viraliza com discurso de ódio https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/02/19/jovem-espanhola-viraliza-com-discurso-de-odio/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/02/19/jovem-espanhola-viraliza-com-discurso-de-odio/#respond Sat, 20 Feb 2021 00:08:04 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/gesto-nazi-isabel-peralta-1129395-1-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=548 Espanha, ano do boi de metal do calendário chinês. No mesmo dia em que o rapper Pablo Hasél foi preso, provocando uma série de manifestações pela liberdade de expressão em todo o país, outro “ícone” jovem ascendeu ao pódio midiático e virótico das redes.

Mas por motivos bastante diversos.

Foi no último sábado (12), em Madri, durante um evento de umas 300 pessoas convocado pela organização neonazista Juventude Patriota.

Durante o ato –uma homenagem à Divisão Azul, formada por voluntários espanhóis que lutaram na Segunda Guerra Mundial sob as ordens de Adolf Hitler –, assume o microfone uma moçoila.

Entre outras pérolas, ela mandou esta: “O inimigo sempre vai ser o mesmo, ainda que com distintas máscaras: o judeu. Porque não há nada mais certeiro do que esta afirmação: o judeu é o culpado.”

Ora, que loucura, um cara preso por cantar contra a monarquia e uma adolescente solta fazendo Heil Hitler de rouge allure.

Pera. Antes de seguir, contemplem:

Vejam a foto e me digam se a carinha de influencer do Instagram não é, infelizmente, parte inapelável do show.

Junto com a aparência, as caras e bocas com que pontua seu discurso viraram meme, comentário, presença replicada por 1308741708 em nossas retinas cansadas de tanta notícia.

(e por mim aqui também, porque, não, a gente não pode deixar quieto)

Claro que viralizou, a desgraçada.

***

Isabel Medina Peralta, 18, estudante de História, é filha de Juan Manuel Medina, atual membro do Partido Popular. Trata-se de um direitista de carteiriña, com passado vinculado à Aliança Nacional, partido neonazista espanhol.

Pois, pasme, esse pai ultraconservador (e é ela quem conta em uma das muitas entrevistas que ‘ganhou’ nos últimos dias) a expulsou de casa, alarmado e farto de tentar tirar os nazilivros de suas mãos. “Meus pais não me dirigem a palavra”, disse.

Com a imediata viralização do discurso antissemita da jovem esta semana, alguns foram logo conectando a nazitrupe ao Vox, partido de ultradireita espanhol, afeito a discursos xenófobos, homofóbicos e racistas.

Em uma conta do Twitter que desde então foi encerrada pela plataforma, Peralta retrucou: nananina. “Eles [Vox] são sionistas, capitalistas, democratas e constitucionais. Nós, não”. Ahtá.

O baile contraditório de -ismos e outros supersuprainfraconceitos nas falas da xovem me dão cócegas. Tristeza. Histeria. Horror.

A menina se declara “fascista”, mas partidária de um “regime socialista”.

Ela nega, no entanto, a alcunha de “influencer nazi” que algum órgão de imprensa lhe deu. “Nunca me definiria como nazista”, disse, em entrevista ao jornal El Español, que a apelidou de “musa falangista”, em referência ao a uma das primeiras agremiações políticas fascistas da Espanha. “Me considero nacional-socialista e fascista, mas, pra mim, nazi é só um rapado que aparece nos filme de Hollywood”.

Hmm.

Anote, que vem então a receita infalível pra ser um bom nacional-socialista-não-nazi: “nele, impera a elegância, escuta Wagner (sic), não se dedica a bancar o malandro ou ao vandalismo, mas luta por uns ideais e segue firme com eles”.

Antes de ser justamente expelida das redes sociais, Peralta chegou a brindar o universo com outras atrocidades. “Nossa civilização se afunda no ocaso de um arco-íris nauseabundo”, tuitou, numa wagneriana trovinha homofóbica.

Em outros momentos, chamou imigrantes de “bazófia (lixo, resto)” que se dedica a “violar e roubar”, declarou ser racista (“não estou a favor da mestiçagem”…..ಠ_ಠ!!), contra o feminismo (“desvirtua a mulher e a manipula”), e por aí vai, porque chega de dar ibope pra tanta mierda.

Não, não podemos tratá-la simplesmente como uma jovem ensandecida de batonzinho vermelho. Infelizmente, é muito mais do que isto. Atrás de uma ‘influencer’ dessa vem gente bailando com a flautinha de Hamelin.

A Federação de Comunidades Judaicas da Espanha (FCJE) condenou o discurso de Peralta e demandou uma investigação pública por crime de ódio.

Isabel, do hebreu Elisheba. Peralta, de Pedralta, zona alta de Navarra, e Medina (cidade, em árabe) –ambos, sobrenomes toponímicos adotados por muitos judeus sefarditas ao longo dos séculos.

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As cores da memória e um pouquito de Almodóvar https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2020/11/27/as-cores-da-memoria-e-um-pouquito-de-almodovar/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2020/11/27/as-cores-da-memoria-e-um-pouquito-de-almodovar/#respond Sat, 28 Nov 2020 00:05:54 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2020/11/Brett-Jordan-picnic-50s-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=337 PRÓLOGO: na varanda de casa, com meu fiel flatmate, observando a coleção de pássaros não-identificados e gaivotas cruzando o céu nublado de Barcelona. De repente, vem o sol… e a chuva.

Eu explico pra ele nosso ditado, que, por sinal, sempre deixa os espanhóis meio petrificados: “cómo así, casamiento de español?”. E aprendo que, na Catalunha, a trovinha goes: “Plou i fa sol, les bruixes es pentinen” — [quando] chove e faz sol, as bruxas se penteiam (na canção infantil completa, as bruxas também se vestem de luto e põem um ovo. Enciclopédias transcendentais do mundo, uni-vos!!!).

Mil teorias de uma singela manhã de quinta-feira se seguiram. Agora, sempre que houver chuva-e-sol, vou lembrar das bruxas penteadas botando ovo no casamento do espanhol.

***

Não sei vansmecezes, mas a memória afetiva pra mim tem uma brisa, ou mió, uma paleta de tons muito particular.

E porque essa paleta é meu cafofo quentinho do passado fantasiado y reimaginado, me transformei numa voyeur vampiresca de álbum de família alheio.

Sou ávida devoradora de instantâneos (ou, com sorte, super8s, polaróides e afins) da família, dos amigos, dos pais dos amigos, dos avós dos primos dos amigos, dos dias de anteontem.

Por trás da minha tara, creio que busco signos da minha infância entre os 1980s e 1990s ou anteriores, cores estouradas, entardeceres granulados, costeletas gigantes, calças bocas de sino, longos cabelos lisos balouçados por uma brisa de eternidade, olhares felizes de quem já não está, um tempo que não avança, protegido-uterino.

Praia de Els Balmins, Sitges, Barcelona (Felipe Bueno / reprodução)

Minha mãe era fotógrafa. Teve estúdio de foto no centro de Sumpaulo, por onde passou muita gente –eu vejo ela meio que como testemunha ocular da história. Chegou a tirar 3×4, sei lá, do Lima Duarte quando veio pra SP ser arxtista. E outras quantas histórias.

Quando eu era criança, ela tirava foto de mim e dos meus irmãos usando um caixote esquisito. Às vezes deixava a gente olhar por cima, onde tem aquele quadradinho. Uma Rolleiflex.

Meu pai também era ótimo fotógrafo, e por consegüinte (com trema) a gente tinha (tem) montanhas de fotos em casa. Eu aprendi a fotografar com as dicas e livros deles, repletos de imagens setentísticas maravilhosas. Tinha tantas pessôuas verdadeiramente lindas nos anos 1970, sem filtros –essa é minha crença divina particular.

Revista Essence, lançada em 1970 e dedicada à mulher afroamericana, edição de 1971 (Reprodução)

Fico imaginando se os xovens de hoje em dia veem as cores de suas próprias lembranças de maneira semelhante, ou se eles têm um mundo interior mais parecido com megapixels de uma tela de smartfônn –algo oscilante entre filtros de beleza e resolução monster-HD (plus 4385709 efeitos e stickers).

(Hmm. Deve existir um estudo da universidade de Mashchscasssusschets sobre isto, ou vários)

Hoje em dia o álbum de fotos pulula no celulóids. Antes, não. A gente tinha que pensar muito bem em cada clique, pra não desperdiçar as 12/24/36 poses de cada rolo-de-filme.

Parque da Ciutadella, Barcelona (Felipe Bueno / Reprodução)

Lembro da disputa de mercado entre a Kodak e a Fuji, com essa questão d’antanho entre os azulados e dourados.

Eu sempre fui kodakiana. Adoro as fotos no fundo das gavetas, nas caixas esquecidas, quando adquirem essa penugem douradiana e maravilhosamente esmaecida, ganhando profundidade e personalidade. São as rugas da experiência da fotografia. P&B também.

Sou só eu?

Naaah, eu sei que ceis tão aí bizoiando taradamente as fotinhos analógicas que ora compartilharey com vosotros.

***

Conheci o Felipe Torres Bueno, autor das imagens aqui reproduzidas (IG: @fugazinstantedecisivo), porque ele lia meus textículos e tem bonitas fotos analógicas de suas andanças pela Espanha em seu Instagram. “Sem pretensão”, disse de cara. Um apaixonado –pela fotografia, pelo país e por Almodóvar, de quem seguiu rastros cinemáticos em diferentes cidades.

Alcáceres Reais, Sevilha (Felipe Bueno / Reprodução)

A primeira foto sua que me chamou a atenção foi a da catedral da Sagrada Família, de Gaudí, em Barcelona: estourada pela metade. Erro de revelação ou providência do divino. Kintsugi. Amey.

“Diferente da digital, a fotografia analógica não nos permite saber de imediato como ficou a foto e não é possível fazer edições. É sempre algo surpreendente o resultado. Cada filme te traz uma textura e saturação própria, o que torna tudo mais mágico”, diz.

Parque del Oeste com luz divina, Madri (Felipe Bueno / Reprodução)

Esse mineiro da Zona da Mata, jornalista, pisou em solo espanhol pela primeira vez em 2015, durante seu primeiro mochilão pela Zooropa. Trazia a tiracolo sua Olympus Trip 35 mm, uma beleziña popular nos anos 1970 e hoje objeto de colecionador, que comprou no centro de BH, onde “um senhor explicou em poucos passos como trabalhar com filme”.

“Cheguei a Barcelona vindo de Paris, na mesma hora em ocorreu o atentado [ataques terroristas ocorridos na noite de 13 de novembro na casa de shows Bataclan e outros lugares, e que levaram à morte de mais de uma centena de pessoas]”, lembra. Ah, memórias. 

Amou Sevilha, “com seus pés de laranja pelas calçadas, o pôr-do-sol, o clima festivo, as casas com pátios e flores”, e Palma de Mallorca, capital da ilha homônima, a 200 quilômetros ou 20 minutos de voo de Barcelona –“cidade da cantora Concha Buika, que conheci por meio do filme ‘A pele que habito'”, conta.

Sagrada Família, Barcelona (Felipe Bueno / Reprodução)
Porto de Palma de Mallorca, Espanha (Felipe Bueno / Reprodução)

Mas por conta do amor por Almodóvar, claro, o destino luminar obrigatório é Madri, que visitou duas vezes. Na primeira vez, quando o cineasta rodava o longa ‘Julieta’ em Chueca, bairro trendy e lindo conhecido por sua diversidade LGBT y cultural.

“Lá fui eu me hospedar num hostel na calle de Hortaleza [no corazón de Chueca]”, conta, na esperança de ver o hômi ou topar com alguma filmagem. “Andava pelo local e fui ao Cine Doré, do qual ele é frequentador assíduo. E nada! Mas tudo bem! Aproveitei muito a cidade”.

Em 2017, Felipe voltou à Espanha e percorreu vários cenários de filmes almodovarianos. O Museo Chicote (que de museu não tem nada, é um cocktail bar desses estilo americano super tradicionais da cidade), onde a personagem Judit García, de ‘Abraços Partidos’, toma dramáticos gin tonics; o viaduto Segóvia, cuja origem remonta à Idade Média, e que é cenário de ‘Matador’. “Em um dia nublado”, conta, “fui ao Teatro Bellas Artes, onde Manuela e Esteban, no filme ‘Tudo sobre minha mãe’, assistem ao espetáculo de ‘Um bonde chamado desejo'”.

Gran Vía, Madri (Felipe Bueno / Reprodução)
Plaza de España, Madri (Felipe Bueno / Reprodução)
O famoso Cine Doré, em Madri (Felipe Bueno / Reprodução – foto digital)

“É bonita a relação que Almodóvar guarda com Madri. Cada filme é uma homenagem à cidade. Isto fica evidente na cena em que Penélope Cruz, em ‘Carne Trêmula’, dá à luz em um ônibus que percorre as ruas e lugares turísticos de Madri”.

“A fotografia analógica, como uma carta, traz consigo memórias importantes, afeto e beleza”, reflete. Eu também acho. Lembrei agora de algo que disse o fotógrafo teutobritânico Bill Brandt em um documentário que vi hoje: ver com os olhos da criança que observa o mundo pela primeira vez; maravilhamento, rapaiz. As cores, a passagem do tempo, o imediatamente memorável de um instantâneo no tempo. Revelar, desvelar, descobrir. Call me romantic. Yo soy. Y tu?

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Celebração nos tempos do vírus, ou: de Bangladesh, com amor https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2020/11/13/celebracao-nos-tempos-do-virus-ou-de-bangladesh-com-amor/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2020/11/13/celebracao-nos-tempos-do-virus-ou-de-bangladesh-com-amor/#respond Fri, 13 Nov 2020 19:27:06 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2020/11/raul-1-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=318 Ela abre um sorriso branquíssimo por trás das pilhas de bandejiñas de abóbora (outono na zoo-ropa, época de abóbora), salsinha, funcho.

— Funcho, Susana?? Quequé isso?? –me pergunta uma amiga no Whatsapp, quando vou lhe contando a historieta de um dia qualquer em Barcelowna owna owna.

Mas voltando à cena. A moça da quitanda me sorri ao descobrir que sou brasileira. Fazendo uma misteriosa dancinha e caçando palavras em castelhonês, finalmente entendo que está jogando bola no ar e dizendo, “Neymar! Neymar!”.

Tô acostumada. Viver na gringa é isso, neah, amiguiñus.

“E tem também aquele outro… Cristiano Ron… não, o que ficou gordinho…”. “Ronaldinho”, ajudo. “ISSO! RONADEEL-NEOL!”

Ela se apresenta como Rozina Akter (“Rotzeena Áktaar”, tipo nome de faraoa das profanas noites obscuras), morena-jovem-com-piercing e cabelinho precocemente grisalho, e eu fico com uma invejinha suave de nome tão naturalmente artístico. Há quatro anos em Barcelona, ela é de Bangladesh. Bangla, para los íntimos.

“Lá em Bangla somos loucos por futebol brasileiro e argentino. A gente adora [insert gesto de porrada]”. “Aaaahn, entendo, vocês gostam de ver a gente se pegar no campo”, digo. “ISSO! RONADEEENEEOL! NEYMAR! NEYMAR!”.

Ela me diz que meu nome em bengali é XUSXKSKANA ou algo similarmente brigadegatonomurodovizinho. E completa: quer dizer interação. Eu fico emocionada, é meu aniversário, tudo me toca.

Com o que aterrissamos languidamente no título dessa humilde crônica.

***

Celebrar aniversário em uma Espanha vivendo o auge da Pandemia Parte II, com uma série de restrições, é tipo ser bolinha de pinball, se bolinha de pinball fosse parada em cada canto dos tubos de metal pra ser inspecionada pela polícia. “Ô bolinha, onde ce pensa que vai? Visitar teu namoradiño na outra caçapa? Não pode. Teje multada”.

Não tem festinha (a veire: aqui, agora mesmo, reunião, só até 6 pessoas, em teoria, de convívio íntimo; toque de recolher às 22h; proibido sair do município nos fins de semana; bares e restaurantes fechados; não pode comer e beber em público; não adianta vir com toalhinha xadrez no parque pra tomar uma cervejinha; meu namorado vive em outra cidade, o que significa que mal posso vê-lo; socorro, essa taquicardia-aranha que vai subindo, subindo…).

Superficial, direis; ora, o aniversário, para mim, é um marco como qualquer outro, mas todos os marcos me importam de maneira especial depois de Um Certo Câncer que me ensinou a ser menos triquimiqui e mais troquimoqui. Eu celebro estar viva.

(por cierto, a imagem que ilustra esse artigo sou eu mergulhando com uma anêmona na costa de Tamarit, na Costa Dourada de Tarragona, apenas uns dois dias depois de finalizar seis meses de quimioterapia)

Sou escorpiana, dizem, oversensível, densa, às vezes pesada, introspectiva. Quero crer em tudo isso (e também que sou super sexy) enquanto celebro meu ciclo solar em quase-solidão. Fica mais fácil e mais classy de explicar meus sentimentos nos últimos dias.

As mensagens via todas as redes sociais abundam, um amor teleférico e potente vindo de todos os cantos das ondas alfabetagama universais. Eu longe da família, eu longe dos amigos, mesmo os próximos, eu longe de poder comer um sanduba e tomar uma tubaína num banquinho de praça, e quanto mais mensagens e fotos e áudios com gente cantando parabéns-pra-você em diferentes línguas vão chegando pli pli pli, mais vou me ensabichando, me metendo dentro, ficando com medo do mundo, com vontade de fugir ou de chorar.

Deve ter uma explicação científica ou até um nome novo pra isso: a hipersensibilidade do confinado.

Agora, confesso: burlei as medidas sanitárias e fui ver o meu namorildo no pueblo, e ele me preparou um arroz (aqui, além de paellas, existe toda uma ampla categoria de Arrozes, ou “arroces”, dizendo a “c” como “th”) maravilhoso.

Brotam discretas lágrimas nozóio enquanto escrevo, mas acho que é saudade da minha mãe. Dona Kako e seu Sérgio, lá em Cotia, estico meus braços sobre o Atlântico e fantasio: bato na porta, vou entrando pra um bolinho, um sushi ninja feito à moda dos Sugai-Katsuragawa e um abraço imaginários.

***

Em tempo: funcho é erva-doce e fica uma delícia em salada com pimenta do reino e um bom azeite de oliva, ou assada com muitas ervas mágicas que remetem a um bom almoço de domingo, daqueles vintage de propaganda de caldo Knorr dos anos 2019s.

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Uma história de amor em Ibiza https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2020/11/06/uma-historia-de-amor-em-ibiza/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2020/11/06/uma-historia-de-amor-em-ibiza/#respond Fri, 06 Nov 2020 23:40:15 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2020/11/Traspas-e-Torijano-em-Ibiza-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=294 Eu caminhava pelas ruas medievais do centro histórico de Eivissa, capital de Ibiza, cantarolando “Eu só quero você” do Pepeu por baixo da minha máscara de neoprene negra, quando os vi.

Altos, belos, em branco e negro. Casal. Segurando um bebê. Apaixonados –parecia, sonhei, imaginei.

Dalt Vila (“cidade alta”, em ibicenco, cercada por muralhas do século 16) tem sua magia. Ainda mais agora, sem turistas.

Calle Mayor em Dalt Vila, centro histórico de Ibiza (Susana Bragatto / Folhapress)

Ibiza corongada é outra história, miña gente. Como explicar. Sem clubbers, sem xovens trupicando pelos paralelepípedos em saltinhos y alegrias etili*mdma*lísticas, sem o poperô e o jet set de costume, é de uma tranquilidade abissal, é outra ilha.

Nas ruas vazias, apenas minguados turistas “nacionales” como nós aproveitando o breve idílio veranil entre-ondas-coronavíricas… e gente local.

Como Jesús García, estrelando em uma gigantesca foto em P&B diante da porta de seu ateliê na Calle Mayor, posando com sua mulher e comparsa há quase 50 anos, Isabel Delgado, e o filho então bebê.

Tráspas e Torijano, 1978 (Susana Bragatto / Folhapress)

Os dois, moradores da ilha desde os anos 1960, são mais conhecidos como Tráspas e Torijano, artesãos e organizadores de festins como o já tradicional banquete medieval, na praça da Catedral, com uma mesa à la Santa Ceia, pernas de porco servidas em vasilhas de barro e trajes a caráter.

Mas tudo isso eu viria saber depois.

Entro no ateliê, topo com o próprio Tráspas. Embora tenham se passado uns 40 anos desde a foto da entrada, é inconfundível. O bigodão é o mesmo, o olhar algo oblíquo, mezzo blasé, mezzo tô-te-sacando. Camisa amarela de linho, calça cargo e uma longa trança grisalha que chega até o peito.

Tivemos que tirar uma foto juntos, que eu levei minha blusa de estampa de vaquinha pra Ibiza só pra essa selfie combinada-lacrada-impromptu, poha :).

Tráspas y yo, paramentados com nossos outfits coronguísticos, setembro de 2020 (Susana Bragatto / Folhapress)

“Na ausência de turistas, isso aqui me lembra a Ibiza dos anos 1970”, me conta, enquanto me mostra um de seus muitos diários de viagens, repletos de uma caligrafia esvoaçante e desenhos sensitivos em nanquim. “Esse aqui foi feito no Caminho de Santiago”, murmura. Tráspas e sua mulher são absolutos fãs de tudo quanto é triquelê medieval –já deu pra perceber.

Ambos são personagens conhecidos da vida cultural local. Também são fotogênicos papoha, e creio que sabem. Em outras fotos igualmente deliciosas, aparecem olhando pro infinito ou dançando à la Studio 54, glamurosos, com a indiferença dândi que flutua nos olhares dos boêmios inesquecíveis.

Casal bunito, nénon? (Susana Bragatto / Folhapress)

Um poema da dupla (há vários, escritos à mão em lousas, paredes e cadernos) legenda de maneira singela-direta a vibración acolhedora dessa esquina ibicenca:

“Somos estrelas errantes
no céu da vida,
deixando rastros qual chuva
nas pessoas queridas.
Devemos pensar no que fazemos,
pois, bem ou mal,
isso as toca.
Vamos dar amor a elas
e tornar ricas
suas vidas”

O amor de Tráspas e Torijano atravessou décadas de revoluções ibicencas, do hippie ao pop. Permanece vivo e testamental no ateliê da rua Mayor, perto da supracitada praça da Catedral. Visitem –quando puderem –e digam que foi a Susana, brasileira, que recomendou. Ele nem vai lembrar, mas me sentirei importante :).

Tráspas e Torijano em foto dos anos 1970, Ibiza (Susana Bragatto / Folhapress)

Meio nostálgica, meio passarinho, sorvo com quase-compulsão as últimas fotinhos analógicas do casal, e também a colossal pasta de notícias que Tráspas vai folheando. Mariah Carey esteve na área, eu vejo, e visitou o ateliê.

Já nem vibro com isso, fico shippando mesmo é a foto que mostra a moçoila de roupita branca e botas de cano alto, enlaçada por seu beau com outfit de Travolta e braços cabeludos. Anônimos, celebridades, astronautas de Ibiza.

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Ah, já ia me esquecendo (vulgo last, but not least –Pepeu, um dos melhores guitarristas do mundo e autor de uma de minhas mais adoradas baladas de amor):

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O curioso conselho anti-Covid de um marroquino em Barcelona https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2020/10/15/o-curioso-conselho-anti-covid-de-um-marroquino-em-barcelona/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2020/10/15/o-curioso-conselho-anti-covid-de-um-marroquino-em-barcelona/#respond Thu, 15 Oct 2020 11:04:52 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2020/10/marrocos-tagine-1-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=243 — E como estão as coisas no Brasil, com o vírus e aquele Bolsonaro?

Mohammed é marroquino e vive há anos em Barcelona. É um dos 761 mil de sua nacionalidade com residência espanhola –de longe, a maior comunidade de estrangeiros no país. Pra se ter uma ideia, são nove vezes mais numerosos que os brasileños em tierras ibéricas (somos pouco mais de 84 mil, segundo o censo mais recente de 2020).

Alto, com seus 50-e-algo, Mohammed fala castelhano fluente. Sempre aprendo palavras com ele. Trabalha com controle de pragas em edifícios e chega com um sorrisón no rosto. Gosta de um dedo de prosa, eu também.

E, como todos que cruzam meu caminho, sabe quem é Bolsonaro, e menciona seu nome com um pesar cúmplice na voz. E corrige: não pergunta do vírus, quer saber da economia.

— Bom, Mohammed, cê sabe. Qué te voy a contar… o Brasil não é a Europa.

Justo nesse dia, me deu pregui desse assunto, gente. Todo mundo me pergunta, somos famosos. E não por nossas margens plácidas. Sendo uma prosaica brasileña vivendo na gringa, virei porta-voz acidental de assuntos-internacionais-toopiniquins-de-orelhada-de-jornal. Isso ou alvo de olhares compassivos edulcorados com comentários lamentosos sobre Bolsillonaro e certas catástrofes não-naturais.

(Exceção do garçom argentino no café francês de outro dia, bolsonarista ferrenho (!), que entrou numa superpiromaníaca discussão com um mineiro desavisado que ousou questioná-lo enquanto sorvia seu chazinho de menta. Eu, sádica, fiquei só observando)

Perdón, precisava desabafar. Passou, passou.

— E como estão as coisas em Marrocos, Mohammed? Alguém de Marrakech me disse que os contágios de coronavírus estão disparando de novo –devolvo, enquanto ele substitui uma caixinha de papel com uma barata freeze-frame de patinhas pra cima por outra limpinha que pega de sua maleta marrom tipo gato félix.

Ele me confirma, diz que estão em 2.000 a 3.000 casos novos por dia, numa incidência acumulada de 100 por 100 mil habitantes –por ora, consideravelmente menor que na Europa ocidental, onde estamos entrando em modus confinamentus de nuevo (inclusive na Catalunha, onde a partir de hoje fecham bares e restaurantes por 15 dias). Por ora.

— Mas lá em Marrocos a mortalidade é baixa. Sabe por quê? [suspense] Porque todo mundo cozinha e come em casa.

Silêncio meditativo. Hm.

— Bom, eu também como em casa e tive coronavírus –brinco. É uma terça pela manhã, faz frio e eu ainda não tomei café. Vagamente penso, em livre associação de semi-ideias: como era mesmo a (divina, transcendental) receita de cavalinha à escabeche da minha mãe?

— É, mas você tá bem, né? Em Marrocos a gente não come na rua. Não come fritura como aqui. É tudo feito no vapor. E com muitas especiarias boas para a imunidade, como o gengibre, a cúrcuma…

Passamos a falar de receitas. De repente me deu uma vontade louca de comer um bom tagine, que provei pela primeira vez quando estive mochilando in Marruecos.

Tagines, cozidos típicos marroquinos. Todos aprovados in situ por esta que vos escreve (Susana Bragatto / Folhapress)

O prato, que se pode encontrar em cada esquina, é basicamente um cozido de legumes e carnes, que podem ser acompanhados de tubérculos, arroz ou cuscuz, feito em fogo baixo em um típico pote de barro com tampa cônica.

— Eu tenho síndrome do intestino irritável, me conta Mohammed. Faço tudo ao vapor. ¨Adobo¨ o frango (olhaí palavrinha legal: aqui as gentes não temperam a carne, adubam), ponho alecrim, gengibre, depende do dia vou mudando o tempero. Quase sem sal, que não posso. Acrescento verduras, maçã, abóbora, o que tiver no momento.

Maçã? É, maçã, pera, o que houver, diz. Anoto mentalmente a ideia de botar fruta no cozido.

— Ok, vocês comem em casa, mas os mercados estão cheios, suponho?

Sim.

— E as pessoas não usam máscara, suponho?

Muito pouco.

— E então…?

— Come em casa, Susana. Come em casa!

E se despede com o tal sorrisón, prometendo me ajudar a encontrar uma boa panela de barro pra fazer tagine aqui em Barcelona.

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‘Melhor estocar papel higiênico outra vez’ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2020/10/09/melhor-estocar-papel-higienico-outra-vez/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2020/10/09/melhor-estocar-papel-higienico-outra-vez/#respond Fri, 09 Oct 2020 15:11:56 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2020/10/pierro-o-olho-que-olha-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=231 Ultimamente, considerando a nova onda de contágios de Covid que assola a Espanha, caí numa moda pessoal de perguntar a todo mundo o que pensa que vai acontecer adiante, corongamente speaking. Interessantes, pitorescas respostas.

Minha ginecologista, hospital público, amabilíssima, de origem colombiana, me conta que o confinamento afetou as mulheres hormonalmente, e muito, com menstruações descontroladas, fluxos alterados, cistos e miomas inéditos.

“Pode ser minha impressão, mas acho que virão mais alterações hormonais com o inverno”, diz. “O estresse impacta muito a saúde hormonal”. Alguém aí se identifica?

A senhora no mercadão diante de casa, cabelo grisalho de corte impecável, óculos de aros de tartaruga embaçando sobre a máscara: enquanto nós duas escolhemos calças de inverno vendidas por um rapaz indiano a 5 euros (vivemos na Espanha uma prolongada época de liquidações) e damos pitacos mútuos sobre estampas, ela comenta, “se a gente não sabia que ia vir tudo isso, como vamos saber o que virá?”.

Fiquei sem resposta. Isso seria o quê, reflexão neo-anti-proto-pós-fenomenológica? Muito avançado pro meu nível ticoeteco.

O indiano, entrando na conversa: “vai ser complicado, foi complicado, já tá complicado”.

Eu pensei em replicar algo na mesma linha, com melodia, ritmo e contundência esfíngica, mas, cantoira que sou, só me ocorreu cantarolar baixinho: “isso aqui, ôoooo…”.

Isso foi hoje, há minutos. Dia de sol, brisa fresca, princípio de outono.

Outro dia, no caixa de uma loja da Zara no centro de Barcelona, a funcionária pergunta: “qual é o seu código postal, senhora?”.

Me chamou de senhora, quase não quis responder, seguindo meu instinto de negação. Quando eu afinal lhe disse, perguntei por que pedia essa informação. Ela me explicou que era pra um estudo sobre o perfil de cliente que estava frequentando as lojas pós-confinamento.

Señoras y señores, tomem nota de que estamos falando da principal marca da Inditex, grupo do mogul espanhol Amancio Ortega, um dos hômi mais ricos do mundo. Mais exatamente, o quinto mais rico do planeta, segundo a Forbes, à frente do Zuckerberg.

“Y qué? Deixa ver se eu adivinho: os clientes são todos locais, nenhum turista”, repliquei. Ela faz um meneio afirmativo de cabeça e nos entreolhamos, com o olhar significativo e cúmplice de boca torcida dos que atravessamos uma quarentena prolongada e seguimos passando bombril na armadura montada no armário, à espera de novas batalhas.

O enfermeiro de um importante laboratório de análises clínicas, um rapaz jovial y alegre com gorrinho de estampa de ursinho (suponho que pra acalmar os ânimos dos “nens” (crianças, em catalão) que vêm enfiar palito no nariz pra fazer PCR), me diz: “tenho feito cada vez mais testes de Covid. Sobre o que nos espera, eu diria: melhor estocar papel higiênico outra vez”. E rimos. Fazer o quê.

Meu compañero de apartamento: “por via das dúvidas, já encomendei uns pesos e faixas elásticas pra gente não engordar no inverno”. A gente passou todos os meses de confinamento domiciliar este ano fazendo exercício de iutubi em casa. Ficamos super em forma, mas quando pudemos sair de casa de novo no verão muy rapidamente ganhamos uma barriguiña.

Um amigo catalão, advogado, meio niilista (como alguém pode ser meio niilista, Susana) e recém-recuperado de coronavírus, trabalha em um projeto de recepção de refugiados na prefeitura de Barcelona: “ora, vamos todos morrer, claro” –vaticinou.

Depois, mais convencional: “creio que a coisa vai estar complicada de novo até a primavera, com altos e baixos e semanas com mais ou menos restrições em função dos contágios… uma m****. Definitivamente, não poderemos fazer planos pra nada. Mas é falar por falar, porque não tenho ideia. Sou um enorme ignorante”, termina, algo pândego, algo sério.

E um amigo argentino, vivendo há milênios na Catalunha, lutando com sua garra e marra pra manter um pequeno bar que os amigos frequentamos pra estar e apoiar: “‘xxo’ sei lá como será, mas durante o confinamento em casa joguei fora os espelhos, e agora vivo sozinho”.

Você num tá vendo, mas ele termina a frase com um olhar de pupilas tinindo/reluzentes e um sorrisinho sábio de saca-só-essa-frase-que-genial.

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Sobre Gildas e abismos em um longínquo boteco español https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2020/09/22/sobre-gildas-e-abismos-em-um-longinquo-boteco-espanol/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2020/09/22/sobre-gildas-e-abismos-em-um-longinquo-boteco-espanol/#respond Tue, 22 Sep 2020 20:10:56 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2020/09/gildas-arte-sobre-fotos-de-yann-allegre-e-nikolas-noonan-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=166 Subiu como um microincêndio interior. Não pude evitar morder os lábios (por que mordemos lábios? anoto, pra futuras investigações urgentes às 3 da manhã).

Era comoção e, vamos a veire, raiva, bruta, cristalina y malagueta raiva o que eu sentia.

Ele me observava de longe, pescoço levemente inclinado para a esquerda, cotovelo apoiado no balcão do bar, ao lado de uma taça de vinho branco chamado Gilda, variedade verdejo, colheita 2019.

Eu sei porque era o mesmo que tomava eu.

Seus olhos azuis, que eu vinha evitando desde que cheguei, estavam injetados, não sei se de álcool ou cansaço.

A cada cinco segundos, ralhava com o menino que comia na mesa próxima, talvez de uns 16, 17 anos: MIGUEL, tá errado de novo! Mas VOCÊ É BURRO? Já falei mil vezes: o garfo desce na horizontal e a carne se corta assim, mas você não aprende nunca, não aguento mais. Não te aguento mais!

Tantas vezes repetiu semelhante ladainha aos quase-berros que dissipou a discreta festividade segundeira (era uma segunda-feira) do ambiente, como um redemoinho nauseante que retorce o prazer de deglutir umas olivas e tomar um Gilda.

Ah: estamos no povoado litorâneo onde vive meu namorado, Masnou, a 20 minutos de Barcelona. Inclusive posso avistar este último daqui da minha cadeira, aborrecido, os olhos também algo trans-entornados, esperando pra pedir a conta no balcão. Como eu, está chateado.

De Miguel, via as costas. Amplas, um adolescente em plena expansão. Encarapitado em um assento de madeira, implicado em trinchar a carne, saraivado por uma ininterrupta trilha sonora de P***QUEPARIU, MIGUEL! A camiseta de um festival de música a que provavelmente não foi. Óculos de aro negro.

E em absoluto silêncio — mesmo quando o homem, não sei se pai, cuidador ou sequestrador, se inclinava sobre seu prato pela enésima vez, deixando brevemente seu posto no balcão do bar, vociferando: MAS EU JÁ FALEI, VOCÊ NÃO APRENDE NUNCA, O GARFO NA HORIZONTAL, VOCÊ SÓ ME DECEPCIONA, MIGUEL, JO-DER!

Autismo, des-autismos, não interessa. Mil maneiras de ser. Quantas pessoas assim estragaram quantas autoestimas em caminhos diversos?

Um pai com uma menininha estavam sentados à mesa com Miguel, numa possível conexão amigável por costume, por frequentar o mesmo estabelecimento.

Ele e eu nos entreolhamos, suspiramos. À mesa comiam os três em silenciosa fraternidade. Não sobrava espaço auditivo pra mais conversas, já que o homem no balcão não podia par– MIGUEL, VOCÊ NÃO APRENDE! O homem dos gritos afundou a cara nas mãos, chorando ele mesmo. Tive pena. Tive?

Foi então que a menininha, cabeleira encaracolada recolhida num rabo de cavalo, atenta e de olhos muito arregalados, timidamente arriscou um “mas ele tá tentando…”. Ao que O Homem Do Balcão replicou, ríspido e profundamente infeliz: filha, não se meta, porque este não aprende e tem que aprender, que eu estou de saco cheio, fica na tua, tá, filha?

Quantos olhos marejados nesse buteco de pueblo.

Ela saiu correndo porta afora sem dizer nada. E voltou quando o Homem estava de costas reclamando do vinho Gilda pro garçom.

E se sentou ao lado de Miguel, e pegou um garfo. E disse, com a voz mais doce del mundo mundial que poderia brotar qual flô de lótus em um ambiente selvagem de bar-de-pueblo español/ou/onde-seja: não tem problema, é fácil. Eu te ensino, Miguel.

Acho que foi aí que eu mordi os lábios.

***

Termino meu último trago de verdejo. A vindima (colheita de uva) está pra começar, é final de agosto. Vejo na tevê um vinicultor francês falando que houve uma queda de 30% no consumo este ano.

O pai e a menininha se levantam conosco e saímos os quatro para a noite iluminada, quase lua cheia. Abandonamos o barco, deixamos o Miguel, não dissemos nada.

Me sinto compelida a voltar e fazer algo; não sei se dialogar, gritar também (nooope) ou buscar a assistência social. Mas, nesse e em qualquer caso, quem no final vai voltar pra casa com o Miguel? Quem vai abraçá-lo e dizer, com a desenvoltura da menininha, não tem problema, eu te aceito como você é, somos todos loucos, Miguel?

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Gustavo, engenheiro, dois filhos: ‘vou pra rua’ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2020/08/29/gustavo-engenheiro-dois-filhos-vou-pra-rua/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2020/08/29/gustavo-engenheiro-dois-filhos-vou-pra-rua/#respond Sat, 29 Aug 2020 11:33:18 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/gustavo-4-3-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=85 Pergunto a Gustavo, catalão, 43, jardineiro e engenheiro de telecomunicações formado pela Universidade de São Paulo nos idos dos 1990, se poderia recontar sua história. “Pode, sim, eu não tenho vergonha nenhuma. Estou fazendo isso pela minha família”, me diz, abrindo os longos braços —em português quase perfeito.

Estamos na avenida mais turística-peposa de Barcelona, onde comércios de fast fashion se acotovelam com Dior, Rolex, Ivesanlorrân e que-tais; onde uma fugaz sainha de fulô pode custar quinhentos euros; e onde topei na calçada com o supracitado Gustavo, vestindo uma imaculada camisa azul, sentado entre as lojas da Nike e da Anthropologie (marca americana queridiña de celebridades como Taylor Swift, Jessica Alba ou Mila Kunis).

Pra sentar no chão, uma toalha branquíssima, tão branca quanto seus tênis.

Vista de longe, essa imaculabilidade toda adquire uma qualidade quase fosforescente, em contraste com o tom empoeirado do entardecer e a calçada algo suja dos famosos ladrilhos hidráulicos criados por Gaudí (sobre os quais falarei mais adiante, porque vale a pena <3).

Não pude não me intrigar. Me aproximei e perguntei na lata: o que está acontecendo? É a pandemia?

Com desenvoltura, ele vai me contando. Nunca havia pedido dinheiro antes. Mas, duas semanas atrás, quando as reservas acabaram, decidiu: “vou para rua”.

Com dois filhos em idade escolar, Gustavo leva desde abril esperando a prestação do ERTE a que tem direito.

Trata-se de um subsídio de proteção ao emprego, tipo um seguro-desemprego temporário sem demissão, concedido a quase 2 milhões de trabalhadores nos últimos meses pandêmicos, sob a perspectiva de minimamente defender o tecido trabalhista e empresarial da crise.

Como Gustavo, pelo menos outras 150 mil pessoas esperam. São meses sem nenhuma fonte de renda ou ajuda oficial. Os números exatos são incertos e não vêm do governo, que garante já haver quitado todos os subsidios até a data, mas de diversas entidades de direitos civis.

Passeig de Gràcia, uma das principais avenidas de Barcelona, vazia em agosto de 2020
Passeig de Gràcia, Barcelona, agosto de 2020 (Susana Bragatto / Folhapress)

Ao longo deste período, Gustavo já bateu algumas vezes na porta da Oficina de Emprego, responsável pela gestão dos pagamentos e, conta, até ao serviço social foi, na esperança de obter alguma ajuda.

“Tá embaçado”, soltou, em seu paulistanês fluente. “A única coisa que consegui do serviço social é que nos visitem uma vez por semana para ver se nossos filhos estão comendo”. Ele sacode a cabeça já grisalha e baixa os olhos, de onde pendem olheiras profundas que quase se unem à máscara de estampa de camuflagem: “Agora, além de tudo, temos medo de que nos separem das crianças…”.

E buscar trabalho?, pergunto, óbvia.

“Metade da cidade de Barcelona tem meu currículo!” —exclama, levantando-se da toalha branca. Noto que, além de imaculada, é impecavelmente dobrada. A cena, somada à alta estatura de Gustavo, chama a atenção do vendedor da Nike, que nos observa distraídamente há minutos, provavelmente entediado com a falta de turistas.

“Eu poderia emparedar duas casas com a quantidade de papel que tenho distribuído. Muitos me dizem: mas o que você está fazendo aqui, com esse currículo? Por que não busca emprego na sua área? Ora, porque não encontro nenhum!”.

“Eu trabalhei na Vodafone, na Telecom, em banco, e aí fiquei sem trabalho, me formei em jardinagem e agora aceito trabalhar de qualquer coisa: pintar parede, pedreiro, o que for”.

Comentando sobre a conversa depois, alguém vagamente incrédulo me diz: pô, será que ele não encontra nada, mesmo? Ou acha mais rentável pedir na rua do que ganhar pouco num subemprego?

Gustavo insiste que não tem encontrado nada. Todas as manhãs, conta, vasculha páginas de empregos e prepara e distribui currículos. Se pedisse o seguro-desemprego agora, diz, perderia todas as prestações de ERTE dos últimos meses. “Por sorte, o dono do apartamento onde vivemos é compreensivo. Eu devo cinco meses de aluguel”, diz.

“E agora tem a volta às aulas. A pequena está no primário, mais brinca que outra coisa, mas o maior já precisa de livro, caderno, lápis… eu preciso dar um jeito. Roubar não vou; então estou aqui”, encerra.

São sete horas da tarde e ele leva desde o meio-dia em seu posto. Guarda os 10 euros que lhe dou e diz, “com isto, já tenho 15 euros! É um dia de sorte”.

Um casal empurrando um carrinho de bebê nos observa por alguns momentos e se aproxima para depositar outros 10 euros no potinho de moedas posicionado entre cartazes trilíngues que explicam a situação. “No have work” me martela na cabeça, “two childs”, Susana, para de editar o cartaz do cara!

Homem sentado na calçada ao lado de mochila e cartaz onde pede ajuda
Gustavo, 43, na calçada do Passeig de Gràcia, uma das avenidas mais movimentadas de Barcelona (Susana Bragatto / Folhapress)

Gustavo diz ´gracias´ umas 5 vezes. O casal se afasta em silêncio, sorriso entre tímido y consternado, engolido pelo dourado da tarde.

Também sigo meu rumo, pensando vagamente que o vestido bonito e longínquo na vitrine ao lado do Gustavo, mesmo com o über desconto de tempos pandêmicos, vale 50 vezes mais do que a caixinha do dia. Proporções, ângulos, saltos de fé…

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