Normalitas https://normalitas.blogfolha.uol.com.br Espanholices, maravilhas do ordinário, brotos de brócolis Sat, 04 Dec 2021 00:01:00 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Não há dia como hoje https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/04/30/nao-ha-dia-como-hoje/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/04/30/nao-ha-dia-como-hoje/#respond Fri, 30 Apr 2021 17:38:09 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/lua-é-pra-lá-que-eu-vou-arte-de-aniol-yauci-1-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=729 “Menina, aqui tem paciente dando positivo em PCR há mais de dois meses!”

Lá vou eu de novo com minhas modestas pílulas do front hospitalar. Microprivilégios (hhhmmmm errrr hããã) de quem é paciente crônica e tem que fazer revisões periódicas. Hoje tem exame de sangue no cardápio.

A enfermeira, jovem y corada, talvez de tanta atividade seringuística, já que são 2 da tarde, extrai o fluido borgonha de minhas veias raladas de tanta furação enquanto me conta.

“A gente tem visto com alguma frequência, isso de dar positivo repetidas vezes”, diz. “Coitados dos idosos que estão na fila de cirurgias, tendo que voltar aqui a cada dois por três, sem poder ser operados!”

“A cada dos por tres”: expressão espanhola equivalente ao nosso “”vira e mexe”; frequentemente.

De fato, o saguão está dominado por velhiños esperando sua vez para tomar aquela enfiada gostosa de cotonete nas narinas.

A relativa placidez do primeiro andar dá lugar no térreo do hospital a uma balbúrdia amarelo-e-vermelha com bandeiras mezzo catalãsq, mezzo sindicais. Pequena aglomeração diante da entrada de emergências.

Um médico que observa à distância, como eu, aproxima-se e comenta: são o pessoal da limpeza. Estão protestando há mais de ano por haver sido excluídos da gratificação extra que só os da saúde receberam durante a pandemia.

“Se eles se arriscam tanto quanto nós!” –abre os braços, indignado. “Trabalharam dobrado, como nós. Cada vez que a gente termina com um paciente, entram eles em ação. Com proteção e tudo, mas, mesmo assim…” –deixa a frase no ar. Não precisa completar, yo entiendo. “A ajuda seria de uns 300 euros, o que não é muito, mas, pra eles, sim”, acrescenta.

Faço um cálculo mental: amigo, onde é que 300 euros é pouco? Quase 2 mil reais. Yo soy brasileña, amigow.

Manifestação diante do hospital Sant Pau, um dos mais importantes de Barcelona, abril de 2021 (Susana Bragatto / Folhapress)

O cartaz principal da petite manifestação denuncia a “invisibilidade” do coletivo dedicado a deixar os hospitais, corredores e salas de cirurgia limpos, esterilizados, prontos para novas curas.

Vamos a veire, é óbvio: se se tratasse de um protesto de médicxs e enfermeirxs, apareceria imprensa sapeando, replicando, botando manchete. Mas não. Nessa sexta nublada em Barcelona, só eu, de sobretudo vermelho e mirada cansada, escrevendo uma discreta coluna pra um jornal d’além mar.

Irritada, uma jovem manifestante me explica: não só não receberam a tal gratificação como não têm o amparo da Seguridade Social em caso de positivo pra coronavírus –ao contrário dos profissionais de saúde, para os quais uma licença por Covid é considerada acidente de trabalho.

***

A Espanha se prepara para o 9 de maio, quando se prevê o fim do estado de emergência, em vigor desde março passado, quando eclodiu a pandemia. Restaurantes, por exemplo, poderão ficar abertos até as 23h. Em teoria, deixaria de existir também o toque de recolher (no caso da Catalunha, entre 22h e 6h) em vigor há meio ano.

Mas o governo da Catalunha já pensa em deixar na manga um decreto-lei que manteria o tal com alguma flexibilização, deixando-nos perambular livres até as 23h ou 24h.

Embora os gráficos covidianos estejam dando sinais de melhora (pouco mais de 9.000 casos e 136 mortes em todo o país nas últimas 24 horas) e a vacinação tenha se acelerado no último mês (até agora, com 10% da população vacinada com as duas doses), a Espanha já levou chulepada do destino vezes demais pra sair liberando tudo sin más.

É verdade, porém, que se avizinha junho, O Clássico Mês Em Que Começam A Chegar Os Turistas Pra Curtir O VerãoZão Español. Veículos de imprensa britânicos já festejam a reabertura de fronteiras anunciada pelo governo espanhol (com 8415879 PCRs e ressalvas), e as reservas de hotéis já tão uma doideira.

Lembro dos tempos não-saudosos em que “guiris” (estrangeiros) embriagados não nos deixavam dormir com suas festas em apartamentos alugados, ou lotavam tanto as atrações culturais e históricas de Barcelona que nós, moradores, desistíamos de tentar nossa vez, acabrunhados com tanta avidez. Será um longo e curioso verano…

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A terceira onda e a frutinha embriagante https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/01/15/a-terceira-onda-e-a-frutinha-embriagante/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/01/15/a-terceira-onda-e-a-frutinha-embriagante/#respond Fri, 15 Jan 2021 21:34:59 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/el-oso-y-el-madroño-maria-castellano-menor-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=459 Nããããooooo!
Eu quis des-ler, mas não deu.

Esses dias, em meio a notícias sobre a voluptuosa frente fria que cobriu a Espanha de branco e imagens de españoles fazendo guerrinha de neve em Madri…

Eu vi cozóio que a terra há de transformar em tomatiños cherry.

Em caixa alta, em manchetes de todas as cores, a expressão fatídica, até pouco tempo atrás mera quimera: LA TERCERA OLA (a terceira onda).

Só eu que penso sempre no Pedro e o Lobo (versão truncada on acid)?

Pausa pra um pouco de neve e um cão feliz na Puerta de Toledo, em Madri, janeiro de 2021 (Reprodução / David Canales)

Taí. De um dia pro outro, alguém decidiu que a Espanha vem vivendo a Terceira Onda da pandemia desde o Natal, quando o afrouxamento do protocolo anticovidiano teria favorecido a expansão do vírus.

Nem a vacinação, que começou no último dia 27 de dezembro, pode (por ora) conter o que já virou cíclico: expansão de contágios > colapso de hospitais > samba do crioulo doido de restrições novas a cada semana/10 dias/2 semanas, quase sempre anunciadas de última hora > incerteza, teorias, protestos, mais manchetes > rinse, cry, repeat.

Quanto à nova mutação “britânica” do vírus, não só chegou ao território español em sua forma “importada” como já foram detectados casos autóctones, sem vínculo epidemiológico com o Reino Unido. A Mais Nova Teoria Provisória sugere que essa nova cepa circula entre nós há pelo menos um mês.

Zaragoza coberta de neve (Reprodução / Nerea Peña)

No entanto, são muito poucos os britCovid detectados até agora, mormente graças a uma feliz descoberta: um kit de PCR da marca Thermo Fischer que indica resultados (positivos) diferentes segundo a mutação do vírus. Portanto: a culpa da Terceira Onda Espanhola é de-nóis-mermo, não da cepa 70% mais contagiosa dos brexitados.

Assim, pelo menos até final de janeiro, seguimos sem bares e restaurantes a partir das 15h30, muitos comércios fechados, toque de recolher e confinamentos perimetrais. É o lobo, é o lobo.

***

Mudando de bicho: lembrei da história sobre a frutinha alcoólica do Mediterrâneo por causa de uma foto que vi hoje.

Mostra a famosa escultura conhecida como “El Oso y el madroño” (o urso e o medronho), símbolo heráldico de Madri, afincada na praça da Puerta del Sol, a mais importantchi da cidade. No caso, rodeada da neve assaz inusual dos últimos dias.

“El oso y el madroño”, escultura de Antonio Navarro Santafé. Puerta del Sol, Madri, janeiro de 2021 (Reprodução / David Canales)

Há quem afirme que o urso na realidade é uma ursa, símbolo de fortaleza e fertilidade. Poderia inclusive ser uma referência à constelação da Ursa Menor, por conta das 7 estrelas na bandeira de Madri. Até manifestação feminista já houve pra redefinir o sexo do urso, que, por sinal, permanece escondido debaixo do basto pelo metálico.

Quanto à frutinha comida pel@ urs@, é parente das “berries” e colore os bosques mediterrâneos ibéricos durante as estações frias.

Conhecida pelo menos desde a Antiguidade (com um possível “cameo”, por exemplo, na história dos doze trabalhos de Hércules, quando ele mata o gigante Gerião e o sangue deste se transforma num arbusto de frutiñas madroñeras), até hoje é popularmente utilizada para preparar licores, sidras, vinhos, vinagres, “salsas” e marmeladas.

Madroño in natura (Reprodução)

Durante a Idade Média, o madroño (que em português de PrutugaL se chama MEDRONHO ಠ‿ಠ ) se popularizou por suas propriedades medicinais. Naquela época, diziam que podia curar até a peste. Hoje em dia, estudos incipientes indicam que pode ser legal pra prevenir doenças cardiovasculares, por exemplo.

No século 20, deixou de ser vendida em mercados. Agora o lance pra encontrar o madroño (vaya nombre danado) é basicamente se aventurar no mato entre setembro e dezembro.

Vi meu primeiro arbusto de madroño durante um passeio pelos bosques de Sant Mateu, perto de Barcelona, no “Parc de la Serralada Litoral”. Eu, o namorildis e um amigo paramos maravilhados (ok, eu) diante de um arbusto pintadim de vermelho naquela tarde dourada outonal (ah: o madroño é um dos poucos bichos plantíficos que pode dar flor e fruto ao mesmo tempo, um esplendorrr).

Meu amigo, um italiano do norte muy blasé e Sabido em Cultura Popular, comentou: dizem que comer demais essa frutiña dá enxaqueca e embriaga. Passou por nós uma mulher com cara de This Bosque Is Mine, que nos disse: que nada, podem comer sem miedo!

Posso atestar que não fiquei bêbzda, infelizmente. Mas depois soube que a fama é real: o fruto do madroño começa seu processo de fermentação alcoólica ainda na árvore, e quando a gente come já virou mezzo cachaça-de-frutinha.

Daí seu nome em latim: Arbutus unedo, de “unum edo” –comer um só. Ou alguns de seus apelidos mundão afora, como “borrachines” (de “borracho”, bêbado). @ urs@ de Madri, señoras y señoretes, está bêbad@, bêbad@ de frutinh@s silvestres…

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O voo das pombas, ou: feliz 2042 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2020/12/23/o-voo-das-pombas-ou-feliz-2042/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2020/12/23/o-voo-das-pombas-ou-feliz-2042/#respond Thu, 24 Dec 2020 00:00:21 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/Pombas-do-paraíso-imaginado-Aniol-Yauci-baixa-res-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=432 Barcelona – Dia #283 – Quinta, 24 de dezembro. Cena: “Ouve esse silêncio”, ele diz. “É Natal!”

Segundona braba de eflúvios natalinos. Eis que me encontro no supermercado pensando se compro aquele kombucha de raspberry pra me sentir saudável com estilê quando avisto um casal de pombas ciscando tranquilamente entre uns pacotes de farinha bio, nozes bio, bio-bio.

Decido lançar um grito de alarme, que sai meio assim: “POMBAAAAS! Eiii, alguéeeeem! Tem POMBAS no corredor de produtos orgânicooooo-ooowws!”.

Impressionante. É hora do rush, mas ninguém nem tchum. Apenas as duas supracitadas meliantes, assustadas com minha ceninha humanoide, voam, alcançam as luzes ramificadas pelo imenso teto metálico do recinto, fazem um bailinho bonito no ar e pousam novamente entre os itens bio de sua preferência.

Não estou na roça. It’s Barcelona e este é um dos maiores supermercados da cidade (Carrefinhour, you know –daqueles que vendem sushi, bicicleta e jamones de Natal).

(((O que me faz lembrar de Javier Bardem cortando jamón sobre o capô do carro em “Jamón, Jamón”:)))

 

Olho à volta. Ninguém parece se preocupar com as pombas, ninguém dá mostras de haver visto as ditas. Fascinante.

Fico lá segurando o kombucha por um instante enquanto famílias, casais, jovens, velhos, aliens e titanoboas circulam ao meu redor com expressões compenetradíssimas, os braços e carrinhos cheios de itens natalinos e, talvez, uma promoção de 3×2 meias de presente pra alguém.

Cantarolo baixinho: el tiempo não paaa-a-a-ara…

 

***

Esta semana, o que já era duro piorou. Os casos de Covid estão crescendo, todo mundo nazoropa tá com medo dos britânicos e é quase Natal. Vaya mistura explosiva de contradesejos.

De última hora, na quinta (17), o governo decidiu reduzir ainda mais o horário de funcionamento dos bares e restaurantes.

Até então, os estabelecimentos locais já estavam estertorando à base de 30% da lotação máxima, mesa de até 4 pessoas (ok, falô) e toque de recolher às 22h. Desde esta segunda (21), passaram a só poder abrir 4 horas ao dia, pela manhã e pro almoço.

Com isso, todas as reservas de ceias de Natal e Ano Novo foram repentinamente canceladas. Barcelona é terra de muitos negócios familiares. Produtos caros e especiais estão perecendo nas geladeiras, e os donos dos bares e restaurantes têm saído às ruas para protestar. Quem paga a conta? Quem ajuda? O que virá?

E não para por aí. Agora mesmo, não podemos deixar a comarca, a cidade, o estado de residência, a não ser por motivos justificáveis. E pensar em ir mais além da fronteira nacional é embarcar num phD coronavirístico em que o currículo mínimo pode mudar todos.os.dias.

Eu em verdade vos digo: fico em casa o máximo possível. Uso a máscara masterblaster pra pegar condução. E evito ao máximo: faço tudo de bike.

Meu maior pecado em 2020 foi ter pego um voo pra Ibiza no verão, durante o breve idílio pós-primeira onda da pandemia. O avião tava vazio, Ibiza (pasme) tava vazia. Foi legal, foi tenso.

Quando eu comecei a escrever o Diário de Confinamento na Folha, em março, há exatos 283 dias, creio que todos pensávamos que a coisa ia durar alguns meses.

E, quando terminei os 100 dias de textos, me despedi contente: tamo quase. Isso foi há exatos 183 dias. Agora, segundo algumas manchetes, estaríamos nos preparando para uma terceira onda. A vacina começa a ser distribuída na Espanha nas últimas horas de 2020, no dia 27 de dezembro, priorizando profissionais de saúde e grupos de risco. Vamuvê.

Mas é Natal, gente. E a fofolização pollyanística-positivista do cotidiano está por toda parte, como um manifesto contrário ao desânimo. Vamos então vestir nossos melhores pijamas e clicar no convite do zoom de família com uma sidra de Astúrias na mão. Celebremus.

 

As vitrines festivas aqui seguem coalhadas da coronamoda de homewear, comfortwear, vamotodomundoviverdepijamawear. Compremos roupas fofiñas, pois. Nunca o presente clássico da vó fez tanto sentido. Celebremus, celebremus.

Fotos de Instagram mostram gente rrrrica/enfeitada/rosada em casa, com cara de gozo ou felicidade margarina, entre móveis novos da Ikea e paredes caiadas de branco pra dar aquele astral no claustro. 2020 nas redes sociais tem tanto filtro e producción que me olho no espelho e digo: joder, é só isso? Quedê os corazones flutuando sobre minha cabeça?

Como se todos fôssemos profissionais liberais felizes da vida com empregos bem pagos e firmefortes durante a pandemia, vivendo em castelos de mostruário da Casa Vogue, sem deprê, sem histeria íntima, sem saco cheio porque, né, POSITIVIDADE, GENTE.

As propagandas de peru, jamón, celular, panetone, caldo ki-norr mostram famílias reunidas, aconchegadas entre vapores de panelas e pratos quentinhos. Sim, eu sou véia e algo queixosa, mas ainda vejo manteiga no pão e acho que a vida é pra sempre.

Javier Bardem no filme “Jamón, Jamón”, de Bigas Luna, entre jamones jamones, só porque sí (Divulgação)

***

É 2042. Ano da 1347589701a cepa do vírus, aquele que há pouco mais de duas décadas começou como uma coceirinha.

E é Natal. Sempre haverá Natal. Este ano, sem peru, que os perus se extinguiram em 2025 por conta da variação 12382780 do vírus. Agora a onda é comer mini codornizes GMO, que podem ser criadas em casa.

Voltando às pombas. Naquele longínquo dezembro de 2020, eu deveria ter gritado: “FOGOO!!”. Ou: “VAI FICAR TUDO BEM, GENTE!”

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‘Melhor estocar papel higiênico outra vez’ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2020/10/09/melhor-estocar-papel-higienico-outra-vez/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2020/10/09/melhor-estocar-papel-higienico-outra-vez/#respond Fri, 09 Oct 2020 15:11:56 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2020/10/pierro-o-olho-que-olha-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=231 Ultimamente, considerando a nova onda de contágios de Covid que assola a Espanha, caí numa moda pessoal de perguntar a todo mundo o que pensa que vai acontecer adiante, corongamente speaking. Interessantes, pitorescas respostas.

Minha ginecologista, hospital público, amabilíssima, de origem colombiana, me conta que o confinamento afetou as mulheres hormonalmente, e muito, com menstruações descontroladas, fluxos alterados, cistos e miomas inéditos.

“Pode ser minha impressão, mas acho que virão mais alterações hormonais com o inverno”, diz. “O estresse impacta muito a saúde hormonal”. Alguém aí se identifica?

A senhora no mercadão diante de casa, cabelo grisalho de corte impecável, óculos de aros de tartaruga embaçando sobre a máscara: enquanto nós duas escolhemos calças de inverno vendidas por um rapaz indiano a 5 euros (vivemos na Espanha uma prolongada época de liquidações) e damos pitacos mútuos sobre estampas, ela comenta, “se a gente não sabia que ia vir tudo isso, como vamos saber o que virá?”.

Fiquei sem resposta. Isso seria o quê, reflexão neo-anti-proto-pós-fenomenológica? Muito avançado pro meu nível ticoeteco.

O indiano, entrando na conversa: “vai ser complicado, foi complicado, já tá complicado”.

Eu pensei em replicar algo na mesma linha, com melodia, ritmo e contundência esfíngica, mas, cantoira que sou, só me ocorreu cantarolar baixinho: “isso aqui, ôoooo…”.

Isso foi hoje, há minutos. Dia de sol, brisa fresca, princípio de outono.

Outro dia, no caixa de uma loja da Zara no centro de Barcelona, a funcionária pergunta: “qual é o seu código postal, senhora?”.

Me chamou de senhora, quase não quis responder, seguindo meu instinto de negação. Quando eu afinal lhe disse, perguntei por que pedia essa informação. Ela me explicou que era pra um estudo sobre o perfil de cliente que estava frequentando as lojas pós-confinamento.

Señoras y señores, tomem nota de que estamos falando da principal marca da Inditex, grupo do mogul espanhol Amancio Ortega, um dos hômi mais ricos do mundo. Mais exatamente, o quinto mais rico do planeta, segundo a Forbes, à frente do Zuckerberg.

“Y qué? Deixa ver se eu adivinho: os clientes são todos locais, nenhum turista”, repliquei. Ela faz um meneio afirmativo de cabeça e nos entreolhamos, com o olhar significativo e cúmplice de boca torcida dos que atravessamos uma quarentena prolongada e seguimos passando bombril na armadura montada no armário, à espera de novas batalhas.

O enfermeiro de um importante laboratório de análises clínicas, um rapaz jovial y alegre com gorrinho de estampa de ursinho (suponho que pra acalmar os ânimos dos “nens” (crianças, em catalão) que vêm enfiar palito no nariz pra fazer PCR), me diz: “tenho feito cada vez mais testes de Covid. Sobre o que nos espera, eu diria: melhor estocar papel higiênico outra vez”. E rimos. Fazer o quê.

Meu compañero de apartamento: “por via das dúvidas, já encomendei uns pesos e faixas elásticas pra gente não engordar no inverno”. A gente passou todos os meses de confinamento domiciliar este ano fazendo exercício de iutubi em casa. Ficamos super em forma, mas quando pudemos sair de casa de novo no verão muy rapidamente ganhamos uma barriguiña.

Um amigo catalão, advogado, meio niilista (como alguém pode ser meio niilista, Susana) e recém-recuperado de coronavírus, trabalha em um projeto de recepção de refugiados na prefeitura de Barcelona: “ora, vamos todos morrer, claro” –vaticinou.

Depois, mais convencional: “creio que a coisa vai estar complicada de novo até a primavera, com altos e baixos e semanas com mais ou menos restrições em função dos contágios… uma m****. Definitivamente, não poderemos fazer planos pra nada. Mas é falar por falar, porque não tenho ideia. Sou um enorme ignorante”, termina, algo pândego, algo sério.

E um amigo argentino, vivendo há milênios na Catalunha, lutando com sua garra e marra pra manter um pequeno bar que os amigos frequentamos pra estar e apoiar: “‘xxo’ sei lá como será, mas durante o confinamento em casa joguei fora os espelhos, e agora vivo sozinho”.

Você num tá vendo, mas ele termina a frase com um olhar de pupilas tinindo/reluzentes e um sorrisinho sábio de saca-só-essa-frase-que-genial.

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Madri entra em confinamento a partir desta sexta (02) https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2020/10/02/madri-entra-em-confinamento-a-partir-desta-sexta-02/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2020/10/02/madri-entra-em-confinamento-a-partir-desta-sexta-02/#respond Fri, 02 Oct 2020 23:02:44 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2020/10/Puerta-del-Sol-Madri-por-David-Canales-@d4v1dfotos-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=198 A partir das 22h desta sexta-feira (02), Madri entrará em um confinamento parcial.

A capital espanhola e 9 municípios dos arredores se encaixam nos novos critérios para confinamento divulgados pelo governo central nesta quinta (01) com o objetivo de conter a segunda onda de contágios no país.

Basicamente, o isolamento “perimetral”, como se vem chamando aqui, será imposto a todos os municípios espanhóis onde, simultaneamente, os casos ultrapassem os 500 por 100 mil habitantes na última quinzena; pelo menos 10% dos testes de PCR sejam positivos; e mais de 35% dos leitos de UTI estejam ocupados por pacientes de Covid.

Madri responde atualmente por mais de um terço dos quase 134 mil novos casos diagnosticados no país nas últimas duas semanas, e apresenta uma taxa de 780 casos por 100 mil habitantes. Além da capital, serão confinados outros 10 municípios da Grande Madri.

DESLOCAMENTOS LIMITADOS

A Espanha é o segundo país europeu com mais casos de Covid até hoje, atrás apenas da Rússia. É seguida por França, Reino Unido e, lá atrás, a Itália, com “apenas” 317 mil casos até o dia de hoje, menos que a metade dos casos espanhóis, segundo contas do Centro Europeu para Prevenção e Controle de Doenças.

Lembrei da conversa com uma italiana de Turim outro dia. “Nós, italianos, somos super passionais e tal, mas, olha só –conseguimos sobreviver ao verão e estamos bem”. Bom pra vocês, amici.

O novo confinamento não é domiciliar, como durante o estado de alarme, mas seletivo: somente permitirá deslocamentos entre municípios por motivos de trabalho, saúde ou estudos. Por qualquer outro motivo, somente dentro da própria cidade de residência, e seguindo as regras sanitárias já vigentes, como o uso obrigatório da máscara.

De resto, reuniões, só de até 6 pessoas, como já valia em Madri desde princípios de setembro; e comércio, bares e restaurantes voltarão a fechar entre 22 e 23h, com lotação máxima de 50%.

Homem é submetido a teste PCR, rodeado de enfermeiros e assistentes
Teste de Covid num centro cultural do bairro popular de Vallecas, um dos mais afetados pela pandemia e submetido a isolamento parcial em setembro de 2020 (Sergio Perez / Reuters)

No papel, muy bonito, mas os problemas e dúvidas são muitos, especialmente em uma cidade populosa como Madri, capital econômica da Espanha e ponto de convergência ou passagem de inúmeras rotas aéreas e terrestres europeias.

Por exemplo, como controlar a entrada e saída da população flutuante? E como aplicar sanções aos desobedientes?

As medidas recém-publicadas serão analisadas pelo Tribunal Superior de Justiça de Madri, o qual estabelecerá as multas em caso de descumprimento. Os valores poderão oscilar entre 600 e 600 mil euros.

Outra grande dúvida é o que fazer com os turistas, tanto nacionais quanto estrangeiros. Até este momento não existe posicionamento oficial a respeito.

Um cidadão espanhol de um município confinado não pode visitar Granada ou Barcelona, mas pode pegar o avião pra ir passear em Paris?

Ou: um turista estrangeiro poderá entrar em Madri? A julgar pelas novas regras, a resposta seria não. Mas, como agora mesmo as fronteiras espanholas não estão fechadas, tecnicamente não se pode impedir a entrada de visitantes.

DIVERGÊNCIAS

Além de dúvidas, as novas medidas, junto com a situação crítica do país, vêm servindo de lenha para atritos políticos.

A polêmica mais pitoresca da semana aconteceu durante sessão do plenário nesta última quinta (01), quando Madri foi chamada pela oposição de “Chernobyl da Europa”, em alusão ao crescimento exponencial de contágios. O caso gerou reações na internet e até um comentário do criador da série “Chernobyl”, da HBO.

Desde o início da pandemia, em março, os embates entre Madri e governo central vêm acontecendo na mesma nota: enquanto o primeiro defende uma abertura econômica imediata, com medidas amenas de segurança sanitária, a política do governo central vem priorizando a saúde.

“Madri é especial porque a saúde de Madri é a saúde da Espanha”, resumiu o ministro da Saúde, Salvador Illa, em entrevista coletiva na última quarta-feira (30).

No mesmo dia, Ayuso declarou: “estamos nos arruinando, temos que buscar fórmulas intermediárias criativas. Madri não pode se confinar”.

Mas a definição de “fórmulas intermediárias” também é complicada. Vide as medidas restritivas impostas há duas semanas pelo governo local a 45 áreas sanitárias de Madri –não coincidentemente, foram afetadas as zonas mais pobres, o que gerou protestos da população.

Com o novo confinamento imposto pelo governo central, deixam de valer a partir de hoje as restrições por áreas sanitárias.

O governo de Ayuso apresentou um recurso contra a nova resolução do governo central. Até sair uma decisão judicial, porém, acatará as medidas.

 

To be continued…..

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Quando a política encontra a HBO https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2020/10/02/quando-a-politica-encontra-a-hbo/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2020/10/02/quando-a-politica-encontra-a-hbo/#respond Fri, 02 Oct 2020 22:55:07 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2020/10/Chernobyl-e-Ayuso-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=207 Confesso, sou meio marota.

Adoro uma briguinha esotérica em redes sociais, dessas que geram zil memes e gifs animados. Especialmente se é pra realçar o absurdo de certas situaciones.

Com a segunda onda de coronacontágios crescendo alucinantemente na Espanha e a capital Madri prestes a ser confinada de novo a partir da noite de hoje (02 de outubro, pouco mais de uma semana depois do início do outono), os ânimos políticos por aqui estão acirradíssimos, as emoções, tocadas. Eu entendo, eu entendo. Tamo sensíver.

Pois o mais recente trending topic nacional embebido em tais sentimentos nasceu nesta última quinta (01) de um cruzamento de coronavírus com a série “Chernobyl” da HBO, e gerou resposta até do criador da série.

“A CHERNOBYL DA EUROPA”

Fato importante: a Grande Madri responde agora mesmo por mais de um terço dos quase 134 mil novos casos de Covid das últimas duas semanas, com uma taxa de 780 infectados por 100 mil habitantes.

Em sessão no plenário nesta quinta (01), o porta-voz do Más Madrid, partido centro-esquerdista de perfil jovem, atacou o governo de Madri encabeçado por Isabel Díaz Ayuso, chamando a cidade de “a Chernobyl da Europa”, em alusão à situação dramática vivida atualmente pela capital espanhola.

Em seu discurso, comparou a “negligência com que se gestionou o histórico acidente nuclear” à suposta má administração da crise por parte da governadora de Madri Isabel Díaz Ayuso –e aproveitou pra recomendar aos circunstantes a premiada série homônima da HBO.

(vixe)

Ayuso, filiada ao direitista PP, causou fricassê nacional com a resposta, em que bota a culpa nos, errr, comunistas: “Chernobyl nos demonstra como um sistema corrupto em mãos do comunismo levou à morte e destruição por ocultação. Chernobyl não aconteceu em Madri, aconteceu governada (sic) por vocês”.

((adoro fricassê))

O PP, que tem aproveitado qualquer oportunidade pra colar no governo central (formado pela coalizão de esquerdas de PSOE e Podemos) os rótulos de “comunista”, “chavista” e similares, curtiu tanto essa declaração da Ayuso que retweetou depois em sua conta oficial, impávido e confiante em sua Razão Imaculada.

“NÃO ENTENDEU NADA”

Desse tweet do PP brotou um thread com comentários de todo tipo, ainda em profuso processo de propagação (PPP).

O mais badalado comentário vem do próprio criador da série “Chernobyl”, o norte-americano Craig Mazin, que declarou, simplesmente: “Está claro pra mim que ela não entendeu o ponto da série”.

Não entendeu e, aliás, não viu: Ayuso declarou que não tem “tempo pra ver séries de televisão” como seu interlocutor do Más Madrid, que, segundo ela, “não faz outra coisa a não ser dar lição de moral do sofá de casa”.

A TUMBA DE LORCA

Não é a primeira vez que as pendengas ibéricas cruzam com séries da HBO.

Em agosto, a conta de Twitter de David Simon, criador de “A Escuta” (“The Wire”), foi inundada por 180458170 comentários de usuários espanhóis depois que o vice-presidente Pablo Iglesias tweetou sua opinião sobre a nova série do autor intitulada “The Plot Against America”, sobre a escalada do nazismo nos Estados Unidos pós-Roosevelt. No tweet, ele citava o autor.

Iglesias foi em seguida devorado por sua plateia de amantes e detratores, como de costume –ele é um dos sacos de pancada favoritos dos trolls antigoverno de plantão.

Já Simon, notoriamente um cara de gênio, digamos, fuerte, ao receber a colateral saraivada de comentários vindos da Espanha, disse: “meu feed está cheio de franquistas e catalanistas gritando entre si em línguas que não são a minha. Ok. É 1937 de novo. Fuck the fascists. No pasaran (ele quis dizer “não passarão”, mas disse “não passaram”)”.

Sei lá, super American essa declaração, ain’t it?

Em resposta a algum usuário, Simon defendeu Iglesias (que até então não sabia quem era, alegando que “nos EstadosUnidosdaAmérica, nós mal nos detemos pra relembrar nossos primeiros vice-presidentes”), dizendo que sua opinião sobre a série “faz sentido”.

E disparou adiante: “depois de 72h de jogação-de-m**** com trolls espanhóis direitistas, ganhei 9 mil novos seguidores do outro lado do oceano, ávidos por mais conversa de m**** sobre a Guerra Civil e a tumba de Lorca. Agora, vão ter que aguentar comentários sobre orçamentos do serviço postal e lances do Baltimore Orioles [time de beisebol]”. Auch.

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Estudo sugere que Espanha afrouxou confinamento cedo demais https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2020/09/25/estudo-sugere-que-espanha-afrouxou-confinamento-cedo-demais/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2020/09/25/estudo-sugere-que-espanha-afrouxou-confinamento-cedo-demais/#respond Fri, 25 Sep 2020 21:56:07 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2020/09/Praia-de-Bogatell-em-Barcelona-setembro-de-2020-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=175 Ah, as fantasias coletivas. Da noite pro dia, ou de alhos pra bugalhos, não vivo mais num país (razoavelmente) exemplar no combate à pandemia.

Pelo menos é como a mídia espanhola tem digerido o novo informe científico publicado nesta quinta (24) pela revista médica inglesa The Lancet, intitulado “Lições aprendidas ao aliviar as restrições anti-Covid-19: uma análise de países e regiões da Ásia-Pacífico e Europa”.

O documento, assinado por 17 especialistas de diferentes nacionalidades, faz uma análise comparativa entre as estratégias de desescalada do confinamento adotadas por 9 países e regiões “de alta renda” —Hong Kong, Japão, Nova Zelândia, Singapura, Coreia do Sul, Alemanha, Noruega, Espanha e Reino Unido.

O objetivo é identificar “as lições que os governos podem aprender com os êxitos e fracassos de outros”. As conclusões são tão óbvias quanto preocupantes, considerando que estamos, no hemisfério norte, a caminho do inverno, com uma segunda onda no encalço.

MÁSCARAS E ABERTURA TURÍSTICA

Entre as medidas positivas adotadas pela Espanha, o estudo aponta a adoção precoce da distância de 1,5 metro e o uso obrigatório da máscara em contextos específicos (e, desde maio, em qualquer contexto, inclusive na rua —uma medida mais radical que em outros países como Alemanha, França e Reino Unido, onde até o momento não é obrigatório o uso da máscara ao ar livre).

Vista da entrada do aeroporto em Barcelona, com a rua deserta
Aeroporto de Barcelona, setembro de 2020 (Susana Bragatto / Folhapress)

 

No âmbito social, o informe destaca a aprovação acelerada do Ingresso Mínimo Vital, uma renda mínima com a qual o governo espanhol espera beneficiar 2,5 milhões de pessoas em situação de risco.

Por outro lado, e aí vem a pedrada que já sabíamos, mas não em letras douradas assinadas por mil phDs, o estudo frisa que temos na Espanha muito menos camas de UTI (9,7 por 100 mil habitantes) que outros países asiáticos e vizinhos europeus como Alemanha (34 por 100 mil), e um sistema sanitário basicamente frágil, com muitas deficiências no rastreamento e isolamento de casos e na capacidade de absorção de enfermos.

Ora, essa fragilidade do sistema de saúde significa, obviamente, o que todo brasileiro também sabe de berço: que, quando a coisa aperta, a infeliz tendência é um coletivo deus-dará, elevado ao cubo nesses drásticos tempos pandêmicos.

Finalmente, o estudo da Lancet critica algumas decisões que considera precipitadas, como a suspensão espanhola da quarentena obrigatória para europeus que entram no país.

A medida algo desesperada foi anunciada em junho, quando estávamos saindo do confinamento nacional. A ideia era não perder os turistas de verão e afundar ainda mais a economia, monoamparada no setor em diversas partes do país, com destaque para Madri e Barcelona.

Trem lotado em véspera de feriado, Barcelona, setembro de 2020 (Susana Bragatto / Folhapress)

Mas não funcionou muito: além de previsivelmente contribuir para a segunda onda de contágios, a abertura não impediu o cancelamento de 70 a 80% das reservas turísticas de agosto, a partir do momento em que que a imprensa internacional começou a alertar para novo aumento de casos no país.

Barcelona, onde vivo há anos, viveu um verão atípico. Pela primeira vez desde que cheguei, as ruas e atrações turísticas estiveram (estão) vazias; os bares e praias, demasiado cheios de gente local; e inúmeros negócios, de portas fechadas, temporariamente ou para sempre.

O FIM DO UFANISMO PÓS-PANDÊMICO

É difícil lembrar, porque a memória é curta, o caminho é longo e os problemas são muitos (lá se vão mais de 7 meses desde o anúncio do estado de alarme espanhol); mas, poucos meses atrás, o governo, a mulher da cafeteria e o vizinho estavam relativamente orgulhosos do combate coronático espanhol.

No final de março, um estudo divulgado pelo Imperial College of London em colaboração com a Universidade de Oxford e a OMS (Organização Mundial da Saúde) celebrava as 60 mil vidas europeias preservadas até aquele momento graças ao “lockdown” restrito em 11 países, Espanha incluída.

Durante o confinamento espanhol, nem a oposição era capaz de ofuscar o ufanismo simonesco (centrado na figura de Fernando Simón, médico e porta-voz do Ministério da Saúde durante a crise).

Já em abril, porém, a OMS avisava do risco de se afrouxar a guarda cedo demais, principalmente nos países mais afetados —de novo, Espanha incluída.

Em junho, depois de um mês de desescalada progressiva, ingressamos no tal NovoNormal. Dois meses depois, e muito mais rápido do que se imaginava, caímos na segunda onda, já pressentida no início de agosto, auge do verão.

Como o personagem daquele desenho animado antigo que repete “eu te disse, eu te disse” (quem lembra disso??), o novo relatório publicado pela Lancet aponta erros e culpados. Saudável e importante crítica, ainda que talvez demasiado tardia.

Saímos da desescalada pós-primeiro surto rápido demais. Yadda yadda yadda. Agora é óbvio. É a voz do sábio tomando uísque no café em Parrí e observando os anarquistas na rua, barricadas, Charles Hebdo, embrulhado no conforto phopho de sua poltrona de couro vermelho (minha imaginação não tem limites, perdón). Eu te disse, eu te disse.

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A princesa, o golfe e umas corujas imaginárias https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2020/09/13/a-princesa-o-golfe-e-umas-corujas-imaginarias/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2020/09/13/a-princesa-o-golfe-e-umas-corujas-imaginarias/#respond Sun, 13 Sep 2020 16:09:21 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2020/09/25-baixa-res-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=155 Domingo de sol, e eu aqui qual serpente anaconda buscando as sinuosas nesgas de luz na varanda de casa. E pensando, lânguida e aleatoriamente: por que será que golfe tem fama de esporte de rico?

Vamos a veire. Até onde entendo, amadora que sou, a referida atividade parece estoicamente simples. Consta, em resumo, de um pau, um buraco (no pun intended) e um extenso gramado verde.

Talvez a chave simbólica esteja justamente na imensidão do terreno verde, que separa o cidadão privilegiado com luvinhas e blusa com logo de crocodilo do resto do mundo, vasto e imundo.

Os campos de golfe mais concorridos do mundo têm lagos, falésias e paisagismo assinado por arquitetos de renome. São recolhidas ilhas da fantasia.

Nem todos os clubes de golfe são, claro, feitos pra milionários. As mensalidades, taxas ou carteirinhas de membro podem variar entre acessíveis e proibitivas, dependendo do público-alvo. Ainda assim, mesmo os não-top-do-mundo são no mínimo uma cutucada ou cuchillada no corazón (tradução: facada no âmago do ser humano de carteira não-polpuda tipo #eu).

Num conhecido clube de golfe da Grande São Paulo, “eleito duas vezes um dos dez melhores campos de golfe do Brasil pela Golf Digest”, o cidadão paga em torno de R$ 400 por 18 buracos num fim de semana. Tem até heliporto. E a terça-feira das mulheres custa R$ 120 [insert: lágrimas de gratidão borrando meu rímel waterproof], de acordo com informações do próprio site.

Já no Sebonack, em Nova York, a carteirinha de membro pode custar algo entre US$ 650 mil e US$ 1 milhão, e é concedida por indicação de outros membros (os preços são estimativas, porque os clubes mais peposos não costumam abrir o jogo sobre preços —tudo pela mística da Vida Exclusiva).

FALEMOS DA PRINCESA

Meu pensamento flutua do golfe para os headlines espanhóis do momento. Começando pelo ubíquo tema Covid: os pacientes graves já ocupam 25% das camas de UTI na Espanha. A curva de contágios segue ascendente, embora o Ministério da Saúde insista que somos o país com menor índice de mortes da União Europeia.

Índices, dados, perspectivas. Com a volta às aulas na Espanha, já se registraram as primeiras confusões escolares covidianas. Cinquenta e três, pra ser mais exata, segundo dados do Ministério da Educação, envolvendo casos positivos de professores, pais e alunos.

O incidente mais famoso envolve a Princesa Leonor (putz, princesas), que acaba de ser mandada pra casa (err, palácio, mais exatamente o palácio de Zarzuela, na periferia de Madri) pelos próximos 14 dias junto com toda sua classe, depois que uma coleguinha deu positivo.

O colégio de Leonor e sua irmã, a infanta (putz, infantas) Sofía, é um dos mais tradicionais de Madri. Com uma anuidade de 7 mil euros (ou R$ 44 mil —again, cá das minhas brisísticas economias pessoais, uma bolada na cara, mas não tão chocante quanto certas escolas de elite brasileiras), tem até pista de golfe (ora, vejam, golfe). As refeições são “assinadas” por um chef e supervisionadas por uma equipe médica, e o périplo educacional inclui, dizem, ensinar às garowtas a não fazer ruído com os sapatos ao caminhar.

Ah: sendo uma instituição católica, a primeira comunhão e a confirmação basicamente fazem parte do currículo, e são celebradas in situ (exclusiva, ilha da fantasia mode).

Outros casos repetem o roteiro, com detalhes preocupantes.

Uma escola em Madri quarentenou uma classe inteira após uma aluna dar positivo.

O pulo del gato é que a iniciativa de propor a quarentena partiu da escola, e não dos técnicos da saúde pública, que disseram não ser necessário mandar todo mundo pra casa, segundo declarou o diretor da escola ao jornal El País esta semana. Os dados dos pais de todos os alunos foram repassados às equipes de rastreamento sanitário.

UM ANO ESCOLAR FRATURADO

As escolas espanholas começaram o ano letivo na última semana com aulas marcadamente presenciais —fruto da orientação do Ministério da Educação nos últimos meses. Acontece que, quando começou a ser feito o planejamento, não se contava com o chocante aumento de casos ainda durante o verão.

Resultado: três quartos das comunidades autônomas espanholas adaptaram seus planos escolares e anunciaram uma mescla de aulas presenciais com ensino a distância. E a tendência é que venha mais por aí —mais evasão escolar, mais classes inteiras quarentenadas e mais desigualdades pedagógicas. Será um ano escolar fraturado, com consequências ainda insuficientemente estudadas.

A fragilidade do Novo Momento Escolar espanhol é gritante. No quesito contágios, o strike, quando acontece, é fulminante: em Cantábria, a descoberta de dois alunos positivos resultou em quarentena imediata para quase 30 crianças e três professores.

Eu me pergunto como é isso na prática. Em teoria, essas 30 crianças têm pais ou responsáveis, que também teriam que se isolar. E…?

Meu fluxo de consciência domingueiro levanta voo outra vez. E lembro de quando era pequenita e privilegiada vivendo em uma espécie de roça urbanizada na Grande São Paulo. Naquele longínquo e saudoso entonces, o irmão mais velho de uma amiguinha jogava golfe com o pai, inglês.

Foi a primeira e, quem sabe, última vez em que eu indiretamente tomei contato com tal universo. Que eu achava, pra dizer o mínimo, encafifante. Pouquíssima gente pra tanta terra. Um tapete verde tão perfeitificado e infinito que parecia cenário de videogame, contrastando com bolinhas tão diminutas e branquinhas, cujo destino glorioso era ser encaçapadas num buraco invisível onde muito bem poderiam fazer ninho as corujas da região (na minha imaginação). Um perigo, um perigo —penso, enquanto espanto um mosquito insistente que veio azucrinar meu domingo.

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‘Parece que nunca estiveram em uma escola’ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2020/09/04/parece-que-nunca-estiveram-em-uma-escola/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2020/09/04/parece-que-nunca-estiveram-em-uma-escola/#respond Fri, 04 Sep 2020 17:46:38 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2020/09/Aniol-Yauci-freedom-retangular-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=110 A moça do caixa faz uma careta: “do jeito que coça essa máscara, vou brigar com alguém”, diz, bem-humorada. Por quê?, pergunto. Ah, aqui na Espanha é crença popular. Ixe, digo, então vamos todos nos matar.

Eu sempre vou a esse mercado local comprar papaya do Brazel. A preço de ouro, mas a saudade é maior. Trocamos ideia sobre tipos de máscara, recomendo a minha, que não solta fibra. E me despeço dizendo: não briga, não, que não vale a pena!

Além da saída do Messi do Barça (que não sai mais, embora contra sua vontade, segundo notícias frescas del día) e a escalada de contágios de Covid, outro tema onipresente nos headlines espanhóis esta semana é o desafio da volta às aulas em tempos pandêmicos.

O ano letivo começa de maneira escalonada na primeira semana de setembro, com máscaras obrigatórias para todos os alunos maiores de 6 anos. Já se podem notar mais carros nas ruas, mais gente na cidade —moradores, não turistas.

Os casos de coronavírus estão em franca ascendência em todo o país, mas a ministra da Educação Isabel Celaá afirmou há alguns dias: se for pra fechar institutos de ensino, será por casos pontuais, e não pela situação do país. E ainda insistiu: “os benefícios da escola [presencial] são muito superiores aos riscos”.

Tem que insistir, mesmo, porque ninguém está acreditando.

Em enquete popular lançada pelo jornal La Vanguardia, um dos maiores da Espanha e o maior da Catalunha, 88% dos leitores (60 mil pessoas) declararam não confiar nas medidas de prevenção de contágios nas escolas e universidades. Indo mais além, 76% defenderam o absenteísmo escolar.

Problema à vista: a escolarização é obrigatória dos 6 aos 16 anos, e sua privação deliberada pode ser interpretada como um delito de abandono familiar e punida com prisão ou perda da guarda filial por um período entre 4 e 10 anos.

Inseguros diante do crescimento de número de casos de Covid e das muitas contradições das novas normas escolares, porém, muitos pais começam a aderir ao movimento absenteísta. Associações de pais de alunos em todo o país já soltaram notas e entrevistas dizendo que o plano de volta à escola proposto pelo governo não é consistente.

Entre os pontos controversos está a medida que permite o convívio de até 30 alunos em uma sala de aula, enquanto que no país inteiro, agora mesmo, estão proibidas as reuniões de mais de 10 pessoas.


(“Essa não foi a máscara com que você foi ao colégio esta manhã!”
“Não, essa é muito mais legal! Troquei com o Diego e ele trocou com o Lucas”)

Assim como Celaá, Salvador Illa, Ministro da Saúde, insistiu na última semana que “fechar as escolas seria o ultimíssimo recurso”, e que “há um acordo unânime de que a atividade educacional deve ser presencial”.

Do outro lado da equação, os educadores concordam, mas pedem medidas de segurança mais definidas.

Segundo o sindicato do setor, em declaração à cadeia nacional RTVE, a guia de orientações divulgada pelo governo na semana passada (ou seja, nos 45 do segundo tempo) é uma “declaração de boas intenções”, mas imprecisa e irreal: “parece que nunca estiveram num centro educativo ou que faz tanto tempo que esqueceram como é a prática diária”.

Além do mais, muitos professores vêm se queixando das super über responsabilidades jogadas em suas costas caso passe alguma coisa, e da exposição ao risco, sobretudo no caso de docentes do grupo de risco, por idade ou enfermidade.

Enquanto a lusitana roda, fui investigar as crendices em torno da tal coceira no nariz. Descobri que algo parecido existe em muitos países (se tem no Brazel, so sorry, eu só lembro que coceira na palma da mão é dinheiro —o que não estaria mal, pensando na minha cuenta bancária).

Quanto ao significado, você escolhe: tem gente que diz que é presságio de briga ou más notícias; outros, que o afortunado vai conhecer alguém que vai mudar sua vida; e ainda tem a crença russa de que uma coceirinha nasal indica um drinque mais à vista. Ou, basicamente, nos tempos atuais, que é hora de trocar de máscara.

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Espanha registra aumento de mais de 200% nos casos de Covid em agosto https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2020/09/01/espanha-registra-aumento-de-mais-de-200-nos-casos-de-covid-em-agosto/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2020/09/01/espanha-registra-aumento-de-mais-de-200-nos-casos-de-covid-em-agosto/#respond Tue, 01 Sep 2020 22:40:53 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2020/09/Hospital-Clinic-Barcelona-agosto-de-2020-1-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=97 Bar de pueblo, chazinho numa segunda qualquer.

Na parede ao meu lado, cintilante e gorduroso debaixo de um lustre de parede em forma de flor, um retrato autografado de Messi, um dos temas ‘calientes’ dos noticiários espanhóis por sua possível saída do Barça.

A Espanha fecha o mês de agosto, pico do verão, com quase 5 vezes mais casos de coronavírus do que em julho, primeiro mês do chamado “desconfinamento”. É o país europeu com a maior taxa relativa de contágios, 205,53 casos por cada 100 mil habitantes, e o segundo maior em cifras absolutas, atrás apenas da Rússia.

Em todo o território, há 2.400 surtos identificados, o dobro de apenas 10 dias atrás. Com mais de 174 mil casos registrados no último mês, o país se prepara para um setembro crítico.

Além disso, em apenas 12 dias, intervalo entre os dois últimos relatórios oficiais do Ministério da Saúde, a ocupação de leitos de UTI por pacientes positivos sofreu um aumento de 46% em todo o país. As regiões mais afetadas são Aragón, Ilhas Baleares e Madri.

Um desses leitos está ocupado pelo irmão do meu colega de apartamento. Relativamente jovem, pré-diabético e obeso, está em estado grave, em coma induzido, há alguns dias.

“Estamos detectando quase o mesmo número de casos que em finais de março e princípio de abril [auge da pandemia espanhola]”, argumentou esta semana Fernando Simón, porta-voz da Saúde. “Se nossa capacidade agora fosse a mesma de então, provavelmente estaríamos detectando uma sétima ou oitava parte do que detectamos agora”, disse. Ah-tá.

Cadeiras vazias em sala de espera de hospital com cartazes alternados com os dizeres "não"
Cadeiras na sala de espera do Hospital Sant Pau, em Barcelona, durante a pandemia (Susana Bragatto / Folhapress)

Uma das situações mais dramáticas está em Madri, onde os casos se multiplicaram por 11 no último mês e onde foram registradas 42% das mortes por coronavírus em todo o país nas últimas duas semanas.

A preocupação se amplifica com a aproximação do outono e a volta às aulas. Entre as propostas de entidades do setor de saúde para combater o crescimento exponencial de contágios e prevenir o colapso do sistema, há o aumento de contratações de profissionais de saúde e de rastreadores.

Quando dei positivo em coronavírus, em junho, imediatamente me quarentenei e repassei ao centro de saúde uma lista completa com as (poucas, pero buenas) pessoas com quem tinha tido contato nos dias anteriores.

Pergunta se alguém telefonou pra alguma delas. Só eu, pedindo pelamor, #fiquememcasa.

Quase meio ano depois do primeiro decreto do estado de emergência na Espanha, eis que começa a brotar consistentemente um sentimento de ratinho cansado na gaiola, daqueles correndo nhenhenhe numa roda.

Embora a curva de contágios esteja inequivocamente ascendente, por enquanto o grau de letalidade é muito mais baixo, com predomínio de assintomáticos e contágios entre os mais jovens. Em torno de 45% dos diagnosticados não apresentam sintomas. Os menores de 40 anos correspondem a metade dos casos, e os maiores de 70, a 10%.

Aqui em casa, o clima, obviamente, não está pra festa. Em uma espécie de compensação semiconsciente de oscilações cósmicas, desde que o irmão do meu compi foi hospitalizado, as plantas em nosso terraço estão mais viçosas. Estamos cuidando bem do que está ao nosso alcance. Os seis vasos com aloe vera, mais os canteiros com kalanchoe, a hera e a nossa mudinha de árvore da fortuna agradecem.

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