Normalitas https://normalitas.blogfolha.uol.com.br Espanholices, maravilhas do ordinário, brotos de brócolis Sat, 04 Dec 2021 00:01:00 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Leonard Cohen e seu coração espanhol https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/09/26/leonard-cohen-e-seu-coracao-espanhol/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/09/26/leonard-cohen-e-seu-coracao-espanhol/#respond Sun, 26 Sep 2021 20:26:01 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/Leonard-Cohen-CBC-Still-Collection_-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=1060 Um gentleman, seu chapéu. Suzanne. E o aroma de cedro espanhol.

Leonard Cohen, o bardo canadense, teria completado 87 anos no último 21 de setembro.

Até outro dia, não sabia da relação de amor que tinha ele com a Espanha.

Y entonces topei com seu discurso de agradecimento de 2011, quando veio a Oviedo para receber o Prêmio Príncipe de Astúrias, concedido a personalidades e instituições de destacada expressão nos campos das artes, humanidades, ciências e cooperação internacional.

Outros homenageados ao longo dos 40 anos do prêmio incluem gente tão diversa quanto Woody Allen, Mikhail Gorbachev, Nelson Mandela e Oscar Niemeyer.

“Depois de comer todos os chocolates e amendoins do minibar do hotel, escrevi umas linhas. Não creio que tenha que recorrer a elas”, começa Cohen, pra meu delírio interior. Chocolates, minduins.

“Sempre senti uma certa ambiguidade sobre um prêmio de poesia”, continua. “A poesia vem de um lugar que ninguém controla, que ninguém conquista; me parece charlatão aceitar um prêmio para uma atividade que eu não controlo. Se eu soubesse de onde vêm as boas canções, I’d go there more often”.

Eu poderia transcrever o discurso do hômi e call it a day. Que, né. Mas o bonito para esta coluna vem de uma anedota que ele nos facilita, ocorrida mais de meio século atrás, e que conecta seu corazón às terras españolas.

***

Um dia, Cohen moleke de vinteepoucos passeava pelo parque perto da casa da mãe em Montreal quando topou com um español tocando violão flamenco.

Esse encontro fortuito-serendipítico-e-acaso-existe-acasoenlavie? mudaria Tudo.

Naqueles tempos, conta o próprio, Cohen malemal surrava um violãozim entre amigos, e nem passava por sua cabeça considerar-se músico, muito menos um cara com voz artística própria.

De repente, ouvindo o español dedilhar escalas de emociones ancestrais, como uma andorinha desavisada fritada em voo por um relâmpago (imagino yo), pensou: É ISSO.

Fechou um preço e um horário com o fulano, jovem como ele, e se encontraram no dia seguinte na casa da mãe do Cohen. Lição número um: #fail, guitarra 3 x Cohen zero.

Depois de um par de dias, com algo de sofrência e persistência, conta ele que conseguiu mais ou menos entender a progressão harmônica de seis acordes “em que muitas, muitas canções flamencas se baseiam”, e que se tornaria uma das inspirações seminais para suas composições.

No quarto dia, o espanhol não veio. Cohen ligou pra pensão onde o cara tava ficando: tinha tirado a própria vida.

Alguns anos depois, Cohen visitaria a famosa loja de instrumentos e luthieria da família Conde, então situada na rua Gravina, número 7, em Madri.

Aí compraria o que seria seu companheiro de vida e palcos, um violão flamenco Conde número 26, feito de cedro espanhol, braço de cipreste brasileiro e pequenas partes de ébano, numa conjuração de madeiras de “pelo menos 30 anos”, como explica a página web. Hoje em dia, um modelo similar pode ser adquirido por uns módicos 11 mil euros (quase R$ 70 mil) plus impostos.

O local atualmente é administrado por Felipe Conde e pode ser visitado na rua Arrieta, 4, no centro de Madri.

Cohen não é o único famoso a ter um modelo Conde. A ele se somam David Byrne, Bob Dylan, Lenny Kravitz, Paco de Lucía (que criou um modelo Conde exclusivo) e Al Di Meola, entre outros.

Às vésperas de botar seu indefectível chapéu trilby e vir receber o tal prêmio peposo das xxtrela, conta, ele despiu a guitarrinha Conde de seu case e levantou-a. “Parecia feita de hélio –era tão leve”, diz.

“Eu a aproximei do meu rosto (…) e inalei a fragrância da madeira viva. You know that wood never dies”.

“Aspirei o aroma do cedro, tão fresco como no dia em que adquiri o violão. E uma voz pareceu me dizer, ‘você é um homem velho e nunca agradeceu; nunca trouxe sua gratidão de volta à terra onde essa fragrância nasceu’. Por isso, venho aqui esta noite para agradecer a essa terra e a alma dessa gente que me deu tanto…”

***

Gente, estou emotiva. Depois de duas (, duas) garrafas de Albariño compartilhadas com uma amiga querida em uma “finca” (granja, sítio) na montanha de Collserola, perto de Barcelona, e acompanhada de robustos javalis que capinavam a relva à nossa volta (há muchos na região), é fácil perder –ou encontrar –lampejantes perspectivas.

Mentira que eu não sabia do caso de amour do Cohen com a España. Ele deu à filha o nome de Lorca por causa do poeta granadino (de Granada) Federico García Lorca. Escreveu a linda “Take This Waltz” como uma homenagem/”guiño” ao poema “Pequena Valsa Vienense”.

E, sempre que podia, contava que Lorca “arruinou” sua vidiña adolescente de 15 anos quando ele topou com sua obra num sebo em Montreal.

“Eu li as linhas,

‘Por el arco de Elvira
voy a verte pasar
para sufrir tus muslos (coxas)
y ponerme a llorar’.

“Passei as décadas seguintes”, contou Cohen, em algum concerto num dia longínquo de passadas translações, “passei as décadas seguintes buscando os arcos de Elvira, buscando aquelas coxas, e buscando minhas lágrimas”…

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Ava Gardner, o holandês voador e um sonho espanhol https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/08/13/ava-gardner-o-holandes-voador-e-um-sonho-espanhol/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/08/13/ava-gardner-o-holandes-voador-e-um-sonho-espanhol/#respond Fri, 13 Aug 2021 18:55:36 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/Pandora-the-party-2-300x215.png https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=937 Tô lá fazendo meu topless na areia quando escuto um sambão.

Coisa de chamar a atenção, porque não estoy em Copacabana, mas numa baiazinha na fronteira da Catalunha Profunda, em Tossa de Mar, um belo balneário mediterrâneo com interesse histórico-medieval a uma hora e pouco de Barcelona, em Girona.

Não resisto e interpelo a mulher que tá botando som por alto-falantes na praia, do lado de um telão desligado com o mar de fundo.

Brasileira, claro, de Belô.

Brasileiro, quando encontra os patrícios na gringa, via de regra, fica todo emocionado.

“Eu, hein, de onde cê conhecia essa pessoa?”, já me perguntaram mais de uma vez. “Nada, acabo de conhecer, mas brasileiro quando se topa no mundão é assim, sai logo perguntando da vida, dando abraço, falando da saudade e combinando um churrasco lá em casa….”.

Clarice, que vive em Tossa há anos, me conta que vai ter projeção de filme à noite, aproveitando a lua cheia.

Não qualquer filme: mais exatamente, a superprodução que botou esse discreto vilarejo de pescadores na rota dos interesses hollywoodianos, há exatos 70 anos.

Cena de abertura de “Os Amores de Pandora”, 1951 (Reprodução)

A cena de abertura mostra uns “extras” contratados pra atuarem como os pescadores locais que trocam uma ideia em catalão chulo enquanto puxam uma rede anormalmente pesada do mar:

–Què creus que hi tenim a n’aquí, una ballena (O que você acha que temos aqui, uma baleia)?

–Una manada de ballenes!

As “ballenes” resultam ser cadáveres. Fim da cena de abertura.

***

“Os Amores de Pandora” (Albert Lewin, 1951) estrela Ava Gardner e James Mason nos papéis principais.

Ava interpreta Pandora Reynolds, cantora arretada e devoradoradehomens de passagem pela Espanha, que quebra as perna ao se apaixonar perdidamente por um misterioso e circunspecto holandês que atraca seu navio na baía de Tossa (no filme, Esperanza).

(quem nunca, não é mesmo)

Ava Gardner no filme “Os Amores de Pandora”, de 1951 (Reprodução)

O filme é uma mistura de mito grego, dramalhão hollywoodiano e a lenda do holandês errante, com toques surrealistas devidamente co-orquestrados pelo fotógrafo e artista vanguardista dadaísta surrealista ista ista Man Ray.

Ray se meteu com a fotografia do filme, salpicou a cenografia com umas esculturas romanas descabeçadas aqui e ali e criou o genial tabuleiro de xadrez que aparece em uma das cenas (assistam, assistam), além de ter metido a mão, dizem, no roteiro.

Por essas e outras, vale a pena ver a produção. Atentem para a cena superrr moderna da corrida de carros e a sequência que mostra uma louca festa de ricaços na praia –dá pra sentir o cheiriño de fotomontagem, desconstrução narrativa, subversão lógica à la dadá.

Cena de “Os Amores de Pandora”, de 1951 (Reprodução) (Me chamem pra essa festa, por favor)

Surrealismos à parte, “Os Amores de Pandora” não deixa de ser um desfile estilizado de belas paragens mediterrâneas, becos poéticos, dramas burgueses, boa comida, noitadas com dança flamenca e touradas sanguinolentas (estrelando o toureiro-na-vida-real Mario Cabré, com quem, dizem, Ava teve um lance durante as filmagens).

A Espanha de “Pandora” é naïf y estereotipada no úrtimo, o que, por sinal, convinha ao desejo de “abertura” (…!) do governo franquista no início dos anos 1950. A interpretação caricatural de Cabré como o toureiro Juan Montalvo me fez sentir uns cringe deitada à luz do luar na praia de Tossa.

Ava Gardner e James Mason no Filme “Os Amores de Pandora” (1951) (Divulgação)
Mario Cabré como o toureiro Juan Montalvo em “Os Amores de Pandora”, 1951 (Reprodução)
Tossa de Mar, Catalunha, em cena de “Os Amores de Pandora”, de 1951 (Reprodução)

O filme foi rodado em diferentes pontos da chamada Costa Brava, incluindo a bela Platja (praia) d’Aro e a praça de touros de Girona.

Mas é Tossa, esse lindo pueblo catalão de menos de 6 mil habitantes, que ganha os louros como A Cidadezinha Espanhola da Ava.

 

***

Ava, Ava. Era a primeira vez que pisava em solo espanhol, e não seria a última –muito menos isenta de drama, mas isso fica pra outro artigo. Tinha então 28 anos e já dois divórcios nas costas, além de um namorico incipiente com Frank Sinatra.

O cantor Frank Sinatra e a atriz Ava Gardner, com quem se casou em 1951 (Reprodução)

A passagem da estrela por Tossa está em toda parte, a começar pela parte mais alta da Vila Vella, onde contempla o mar, eternizada em uma estátua de bronze de tamanho natural. Também há fotos suas em bares, restaurantes como o Tonet e hotéis da região. Todo mundo quer uma casquinha da Ava.

E do Frank. Na época, Sinatra era o beau da bella. Tinha largado mulher e três filhos pra estar com ela. E, dizem, ciumento, veio vigiar o set e aproveitar pra tomar uns bons drink (imagino).

Também lá está ele eternizado em Tossa em fotos e anedotas entrelaçadas nos papos fugazes com os locais, uma gente muy catalana e ao mesmo tempo acolhedora, e que, por motivos abstratos e flanológicos, e até onde minha totalmente parcial exploração de terreno pode concluir, costuma tomar o partido da Ava, ao mesmo tempo que vê o Sinatra como um acossador que era dado ao álcool e ao maltrato à mulher.

Por exemplo, um dono de bar à beira-mar me comentou, entre terno e divertido, que Ava “era terrível” (hmmm) e fez menção ao seu fugaz caso com Cabré, o toureiro do filme.

De fato, Ava diria depois a um biógrafo que foi “só uma noite”, e que o toureiro era um “diablo guapo”. “Depois de uma daquelas noites espanholas românticas, cheias de estrelas, dança e drinques, me despertei e me encontrei ao lado de Mario Cabré”, conta ela em suas memórias.

Tossa, Sua Linda (Susana Bragatto / Folhapress)
Tossa de Mar, Vila Vella medieval, Catalunha. Ainda vou ter uma casinha dessas (Susana Bragatto / Folhapress)

Já Cabré, muitos anos depois, confessaria que se apaixonou pela diva “como un ceporro (panaca!)”. Também poeta, em seu “Dietario Poético para Ava Gardner”, de 1950, escreveu: “Rocio sobre amapolas, tus labios guardan asombros”….

Três anos mais tarde, em 1953, Ava viria a Madri para viver um tempo. Ali, teria um caso tórrido com outro toureiro, o lendário e controvertido Luis Miguel Dominguín, amigo de Dalí e de Franco, bróder do Orson Welles e do Hemingway (Hemingway, essa onipresença), mulherengo dukacete. Também causo pra outro artigo.

***

À noitinha, sento na areia fresca da praia de Tossa, entre famílias, casais e grupinhos barulhentos de xóvenes, para ver “Pandora”. Estou só. Venho quase sempre sozinha a Tossa. É meu refúgio, minha ilha da fantasia. Um dia, penso, vou ter uma casinha de pedra dentro da zona da “Muralla”.

Tossa foi declarada Monumento Histórico-Artístico Nacional em 1931 e é hoje o único pueblo medieval fortificado preservado de toda a costa catalã.

À direita do telão, um breve desvio de olhar nos leva para as torres da cidade amuralhada. Coisa mais linda. Com um perímetro de uns 300 metros quadrados, a cidade “Vella” foi construída entre os séculos XII e XIV como defesa contra a pirataria.

Lua cheia, Ava Gardner nadando nua no mar, ruínas medievais. E volto a pensar na simples letra de Paulo Onça em versão de Jorge Aragão ecoada horas antes. Confesso que não está nas minhas playlists, mas semeia em minh’alma uma estranha saudade de casa:

Queria o prazer do amoooor / Assim desejando estoooou
Só vou sossegar / Quando te conquistaaaar………..

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Vai um abraço aí? https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/04/02/vai-um-abraco-ai/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2021/04/02/vai-um-abraco-ai/#respond Fri, 02 Apr 2021 14:31:26 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/Pili-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=640 — Não me meto porque não posso!!!

Demoro um milissegundo pra perceber que é com a gente.

O grito interrompe meu longo abraço com uma amiga numa calçada de Barcelona, numa tarde de sol. Fazia meses, quantos?, que a gente não se via. Maior emoção. Pandemia, u know.

A gente se aparta e vê uma señora de seus setenta, baixinha, óculos na pontiña do nariz, observando-nos com lágrimas nos olhos e as mãos dramaticamente entrelaçadas apoiando seu rostinho corado, os óculos embaçando em cima da máscara cirúrgica.

Saquei na hora. Perguntei: quer um abraço também? E tasco um puta abraço nela. Começa a se sacudir de choro. Os transeuntes nos olham com curiositê.

Mais calma, nos conta: perdeu o marido para um câncer de cólon fulminante no início do ano. Seu filho mora longe, em Valência. Só o viu pros atos funerários. Pandemia, pandemia.

Ela teve coronavírus, eu também. Seguem-se tapinhas empáticos nas costas. É duro, é duro. Mas estamos aqui.

“Não tenho ninguém, e há muito tempo não sei o que é um abraço. Obrigada, obrigada”, diz.

Maria del Pilar, Pili para os íntimos, é bailarina. Nos mostra fotos. Essa sou eu encenando a crucificação de Cristo, essa sou eu numa apresentação de tango. Aqui eu dançava sevillanas. Olha que pedaço de mulher eu era!

A gente aquiesce. Puta gata, mesmo. Minha amiga também é bailarina e coreógrafa, digo –de quê?, pergunta Pili. “De street dance”, responde a referida, modestamente. Pili faz cara de quem não entende e segue. Ela precisa falar falar falar, e desembesta a contar sua vida, os últimos meses, a mostrar fotos de seu marido, um simpático senhor com bigodinho grisalho, que por sinal, penso, parecia um pouco com meu tio.

“Nos últimos anos, comecei a me apresentar em residências geriátricas”, conta. “Tadinhos dos velhinhos. Tão sozinhos”.

Os asilos foram um dos maiores focos da pandemia espanhola, com milhares de mortos e denúncias de abandono e maus tratos.

Ela diz que um dia uma senhora numa cadeira de rodas, as mãos crispadas por artrite e outros paranauês pouco amáveis da idade, se recusou a jogar dominó com os companheiros. Desanimada, desencorajada. Pili tascou: olha. Se você só tivesse meia hora de vida, você jogaria? E a velhinha entrou no jogo.

Em outra conversa numa dessas visitas a uma residência, comentou a um señor uma dessas filofrases básicas que não escreveu a Clarice mas todo mundo tatua na bunda: a vida, seu Pepe, é um momento. “Às vezes, nem isso” –retrucou Pepe, esse sábio desconhecido.

Tento me despedir inúmeras vezes. Minha amiga é mais suave que eu, mas mesmo minhas habilidades cortantes falham aqui. Pili nos sorve até a última gotiña, como água no deserto. Não quer deixar a gente ir. Pergunta aonde vamos, onde vivemos, e, finalmente, dou meu número pra ela. “Posso te mandar bom dia, boa tarde e boa noite com corações?”, pergunta ela. Eu respondo, sacando o máximo de bom humor de minhas profundezas biliosas: Pilar, se você fizer isso, juro por Dios que te bloqueio.

Quando já nos íamos, ela grita à distância: ei, vocês gostam de frango? Porque o frango assado do Carrefour, meninas, é uma delícia, e está muito bem de preço!! E, borbulhante como veio, se esvai pela tarde de luz primaveril.

Pili, Pili. Pequenas grandes significâncias da pandemia. Em tempo: até agora, não me mandou corações pelo whatsapp. Mas a linda foto que vocês veem neste prosaico artigo, sim. Bailando, bailando…

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Cheiro de macho, licor do macaco e a mirada de Rosalía https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2020/12/11/cheiro-de-macho-licor-do-macaco-e-a-mirada-de-rosalia/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2020/12/11/cheiro-de-macho-licor-do-macaco-e-a-mirada-de-rosalia/#respond Fri, 11 Dec 2020 23:38:32 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/tu-mirá-celos-rosalía-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=391 Vale 6,75 euros (41,47 reais) em uma grande cadeia de perfumaria espanhola.

Inclui notas de madeira, couro, vetiver e castóreo –a secreção glandular dos genitais dos castores, considerada um potente estimulante. Um pupurri cheirosístico que conjura, diz o reclame, “um caráter cálido e opulento”.

Este, señoras e señores, é o resumo descritivo de um dos aromas mais clássicos da Espanha Profunda, aka Cheiro do Macho Imaginário Espanhol since 1927 (CMIEPro). O nome de tal patrimônio sensorial-cultural é assaz eloquente: COLÔNIA VARON DANDY.

Adoro. Mais literal, só se chamasse CHEIRO DE MACHO.

Pergunto a um amigo xovem, ele ri. “Sabe aquele cara que leva dois quilos de gel no cabelo, pente no bolso, corrente dourada e camisa meio aberta? Esse é o Varon Dandy”, explica. E o cheiro? “Basicamente horrível”.

***

Ao longo dos oscilantes tempos históricos, o Varon Dandy (marca e personagem) transmutou-se de Colônia de Homens de Caráter nos primórdios do século 20 (vide anúncio abaixo) para parte integrante da mística “barriobajera”, palabrinha espanhola um tanto pejorativa que faz referência aos bairros “baixos” ou periféricos e significa algo entre marginal/vulgar/popular.

Sem essa de perfume afeminado, me deem colônia de macho (Reprodução)

***

A primeira vez que topei com Varon Dandy foi no videoclipe de 2018 da barcelonesa Rosalía.

(imagino que ceis saibam quem é? Estrelíssima do pop espanhol, com trajetória que começou no flamenco, trupicou no hip hop e hoje é puro neon celebrity multicultural internacional)

Cena de “Pienso en tu mirá (Cap. 3: Celos” de Rosalía (Reprodução)

É uma mescla de homenagem, crítica e superação simbólica do universo machista “barriobajero”, com caminhoneiros de corações sangrantes e muitos moletons crop.

Em uma icônica cena, o videoclipe mostra uma mesa. Sobre ela, incide uma luz entre celestial e propaganda-de-caldo-ki-norr. Ilumina uvas, alhos, alcachofras e granadas. Limões de Múrcia. Laranjas de Valência. Uma jarra de barro com azeite ou vinho.

Desses commodities da culinária y economia atemporais espanholas, emergem símbolos do macho varonil español ancestral: um pacote de cigarros Rex (populares nos anos 1970 e 80, junto com os indefectíveis Ducados espanhóis), um vidro de Varon Dandy e uma garrafa de anís del mono.

Cena de “Pienso en tu mirá (cap. 3: celos)”, videoclipe da cantora espanhola Rosalía (Reprodução)

Este último merece um aparte: significa, literalmente, licor do macaco, um digestivo de ervas centenário fabricado  em um edifício de fachada art nouveau em Badalona, na Grande Barcelona, mesma Terra da Varon Dandy. Diante da fábrica, uma escultura de um macaco. Dizem, com a cara do Darwin. O anís del mono era a 51 ou Underberg do bar “de toda la vida” com um splash mais cultural.

Cartaz do anís del mono por Ramón Casas, 1898, intitulado El mono y la mona (Reprodução)

Sua garrafa prismada em alto-relevo era tão onipresente que os “críos” locais –crianças, incluindo meu namorildo nos idos dos 1980s –infalivelmente a usavam de reco-reco na escola pra acompanhar canções natalinas.

Aliás, o licor também é internacionalmente famoso. Aparece, por exemplo, em cenas de filmes gangsta como Donnie Brasco e O Poderoso Chefão, acompanhando jogatinas ou banquetes.

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Voltando à cena, que esse artigo está overdigressivo.

No centro da elegia crítica (hmm, nem sei o que quero dizer com isso), uma bailarina de flamenco. E não uma qualquer: é uma preciosa peça de Lladró, empresa familiar de Valência que produz figuretas de porcelana conhecidas em todo o mundo. Podem chegar a custar a bagatela de uns 500 euros (3 mil reais) cada.

De repente, sua delicada cabeça é estourada por um taco de bêisebol. Atacada por um macho varonil, um dândi dos recantos sexistas da tal Espanha Profunda. Talvez seu sovaco machérrimo suado cheirasse a castóreo, ou a água de rosas benzida pelos santos da próxima esquina.

(Reprodução)

O nome do videoclipe, parte de uma série: “Pienso en tu mirá (Cap. 3: Celos)”. Penso em tua mirada. Celos, zelo, ciúme. Possessividade, submissão da mulher, tradição, medo e culpa.

“Me dá medo quando você sai / sorrindo pela rua / porque todos podem ver / as suas covinhas que apareee-ceeem” traducción libre minha)

Mas aí rola a reviravolta, néah. A caminho do fim do vídeo, ressuscita a bailarina, que sorri com sua covinha, enquanto é lavada pelo pó de uma casa antiga que desaba sob a vibração dos pés de mulheres. Estas saem à rua, deixam seus trajes de luto; são agora as hip-hopescas “chonis” urbanas, liberadas, unindo as pontas da tradição e da liberdade-de-ser.

(Reprodução)

Na cena final, um caminhão, veículo por excelência da estética “barriobajera” (junto com os automóveis rebaixados y tunados), aparece de pernas pro ar, destroçado, o carregamento de laranjas pelo asfalto. Rosalía aparece no topo. Fim.

A música, parceria mauravilhosa da artista com o produtor-espanhol-dos-meus-sonhos Guincho (que colaborou com Mala Rodríguez e Björk e, mais recentemente, foi recrutado para o novo disco da FKA Twigs), ganha em superlatividade com as imagens da produtora barcelonesa Canada, que assina este e outros videoclipes da cantora.

***

Outro dia fui numa bodega de pueblo com o boffs (aka namorildo ou compañero, em meu vocabulário pessoal) e pedi o tal anís del mono.

Já tinha uns dois vinhos Matsu, El Pícaro na cabeça e a colisão nuclear co´a aguardente do macaco me deixou com as bochechas rosadíssimas, to say the leastststs. Forte pacarayo, gosto ululante de anis, mais doce e perigoso que dizer umdoistrêsdeoliveiraquatro atravessando a rua de olhos fechados.

Ah: dizem que o licor tem esse nome porque o fundador da companhia era meio excêntrico e um dia pediu pra alguém importar um ou dois (“1 o 2”, em castellano) macacos. Porque queria ter macacos, uai. Esse alguém entendeu 102 e o resto … é história española das microcosmidades.

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A maruja e o surrealista https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2020/12/04/a-maruja-e-o-surrealista/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2020/12/04/a-maruja-e-o-surrealista/#respond Fri, 04 Dec 2020 23:25:37 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/dali-e-maruja-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=371

Isso é que é roquenrol, señoras y señores.

Nem sei se tenho algo a escrever sobre isto. Este vídeo, extraído de um especial da TVE (TV Espanhola) de 1971, já diz muito, gorgoreja, hecatombiza, maçarocariza com amor entalado na garganta até passarinho fazer gggrruuu..grrruuu…soc…orrr..rrruu:

Gravado em Barcelona diante do indefectível Arc de Triomf, monumento construído como entrada para a Exposição Universal de 1888, “Es mi hombre” é basicamente a versão lisérgica-groovy-rumbeira de “My Man”, standard de jazz que eu aprendi a cantar y amar na voz da Billie.

Figura a espetacular Maruja Garrido baixando em helicóptero (da polícia de trânsito) e prostrando-se diante de Dalí, que faz caras e olhos arregalados pra câmera, Dalí style, enquanto ela grita ¨no puedo pasar / una noche sin pensar / en mi hooommmmbreee¨. Cortes rápidos, ângulos loucos.

O documentário é obra do lendário realizador/diretor/roteirista romeno-espanholizado Valerio Lazarov, do qual falarei mais algum dia. Verdade seja dita, porém: dizem que foi Dalí quem convenceu Lazarov de deixar a pemba do helicóptero no script.

A aura é de corações dilacerados, curiosidade antológica e uma pitada creizi sadomasô [estrelando carícias em cetros dourados, contra-plongées e coreografias submissas-dominantes], o que torna tudo mais, hmm, tridimensional.

***

Tudo muy loco, muy bonito, mas: y qué?

Cenas do especial “A la Española”, de 1971, com Salvador Dalí e Maruja Garrido (Reprodução)

Falemos da Maruja e não do onibigodudo catalão.

Maruja, gitana sagitariana caravaqueña (Caravaca de La Cruz, Múrcia, 1945), começou a cantar por necessidade. Mais velha de 8 irmãos, ia pra rua tentar conseguir um trocado, e desde uns 7 anos de idade já percebeu: podia cantarolar, la niña.

Fast forward pra Barcelona, onde chegou com a família como “polizona”, isto é, viajante clandestina num barco. Aqui, descolou trabalho de dançarina de flamenco no palco do Tarantos, o mais antigo “tablao” da cidade, fundado em 1963 na Plaça Reial e desde 2010 com selinho de patrimônio imaterial da Humanidade pela UNESCO (UNESCO’s fckn everywhere!).

Conta a própria Maruja que, numa sessão em que o público “no hacía ni caso” (ou seja, que se mostrava especialmente desinteressado –I feel you, Maruja), ela desembestou a improvisar uma canção mexicana.

Aí, ferrou: todo mundo gostou, e o dono da casa falou pra ela repetir. “Eu não queria de jeito nenhum, mas ou era isso ou ia pro olho da rua”, lembra, em uma entrevista ao jornal El Periódico. “Passei seis meses cantando todo dia a única canção que sabia”.

Maruja e Dalí, anos 1970 (Reprodução)

O tal dono da casa, também proprietário do famoso bar de jazz Jamboree, em Barcelona, seria mais tarde seu marido, o “payo” (como os gitanos chamam os não-gitanos) com quem passaria toda a vida e por quem, por sinal, acabaria deixando os “tablaos”.

O resto é história. Maruja foi apresentada por Dalí, que a viu no Tarantos, à nata da societê em Paris. E terminou nos palcos do Olympia, onde também Edith Piaf fez seu nome.

Seus gestos de levantar a saia, sacudir o cabelo e cantar como uma possuída são trademark de umas tantas performers de flamenco, mas, também marca registrada flamenca, Maruja tem caráter. Como se diz aqui: “se le ve” (se vê). No sorriso amplo, no magnetismo, na maneira gitana de dizer na cara, trovejar, ser passional.

Lembrei de quando fui numa festa gitana em Tarragona e o povo, no calorrr da música, começou a arrancar a camisa e a gritar entre si como se fossem se matar. É isso, ou algo assim. Sem querer reduzir o intraduzível. Hay que vivirlo.

“Se fosse por mim, nem artista tinha sido, porque quando era pequena pensava que todas as artistas eram putas”, diz Maruja, María Garrido Fernández de batismo. “Se subi num palco, foi porque meus irmãos precisavam comer”.

Anos depois, mudaria de ideia: as “chicas” que esperavam clientes no “meublé” (aka motel, francopalavriña da moda de entonces) ao lado do Tarantos até ajudavam a reservar mesa e pegar um sinal dos turistas antes de a casa abrir. “E depois não ficavam com nem ‘um duro’ de gestão”, lembra. “Pouca gente encontrei na vida com tanta categoria”.

Maruja Garrido e seu delineador impecável (Reprodução)

Só não cantou diante de Franco: este retirou o convite quando soube que ela tinha gravado uma música dedicada ao Che Guevara. “E isso porque eu não tinha nem ideia de quem era. Um revolucionário, né?”

Curiosidade: o vídeo acima mostra a fachada em neon de outra casa de shows emblemática de Barcelona, fundada no final do século 19. Popularizada como “Petit Moulin Rouge” a princípios do século 20, à imagem da versão original parisiense, teve que mudar de nome quando veio o franquismo. Esse homem, de novo. Vermelho não podia. Virou El Molino (O Moinho), nome que ostenta até hoje.

** disclaimer: aqui, misturo flamenco com rumba, mas, se a gente for examinar, flamenco, rumba flamenca, rumba catalana, coplas etc etc são cada-uma-uma-coisa. Pra outra coluna normalita. 🙂

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Espanha lidera o ranking europeu de casos acumulados de Covid https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2020/08/21/espanha-lidera-o-ranking-europeu-de-casos-acumulados-de-covid/ https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/2020/08/21/espanha-lidera-o-ranking-europeu-de-casos-acumulados-de-covid/#respond Fri, 21 Aug 2020 09:57:49 +0000 https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/Sagrada-Família-Susana-Bragatto-Folhapress-2-300x215.jpg https://normalitas.blogfolha.uol.com.br/?p=34 Maravilha ordinária do dia: lembrando o prato de sépia com chocolate e vinho branco de mi sogrita (pedi a receita), enquanto escuto o andaluz Camarón de la Isla, ícone punk-rocker do flamenco español, cantar “ay, como el agua-a-a-a-a-aa”….

Esquina de Barcelona, manhã de sol de fazer desmaiar as ratazanas do Raval.

Eu passo em bicicleta e ele me abre passagem, rodopiando num passinho matreiro à la Astaire na guia da calçada. Estamos quase a sós, embora o mundo ao nosso redor seja grande, muy grande, emoldurado de fundo pelo edifício mais assombroso y querido de Barcelona: a Sagrada Família, de Gaudí, esses dias desertada pelos turistas.

Antonio, possivelmente andaluz (penso eu) pelo sotaque com que emenda e come as palavra no finá, trabalha de gari em Barcelona. É só o que sei sobre ele. E que seu uniforme é verde e amarelo. “Guapa, guapa, esa mirada a mí me atrapa”, canta, enquanto espero o sinal verde.

A cidade está vazia, pacificada neste atípico mês de férias de verão, a não ser por nós, locais de cada dia.

Os contágios por Covid na Espanha continuam a crescer. Agora mesmo, existem 1.126 surtos ativos documentados em todo o país, quase o dobro dos 675 de apenas uma semana atrás, o que levou o porta-voz da Saúde, Fernando Simón, a dizer nesta quinta (20) que “as coisas não vão bem”.

Fernando Simón fala à imprensa diante de um microfone, com a bandeira da Espanha e da União Europeia detrás
Fernando Simón, diretor do Centro de Coordenação de Alertas e Emergências Sanitárias, em entrevista coletiva em Madri em junho – Borja Puig de la Bellacasa/Governo da Espanha/AFP

“Se deixarmos que a transmissão siga, ainda que sejam casos em sua maioria leves, acabaremos com muitos hospitalizados (…) e muitos falecidos”, alertou, detrás de uma máscara azul de tecido com estampa de tubarão, presente de um familiar de uma vítima de Covid-19.

Em apenas duas semanas, a Espanha passou a encabeçar o ranking de casos acumulados por 100 mil habitantes na Europa —132, superando de longe Luxemburgo (98,6), Romênia (88,5) e Bélgica (60,8), além de França (45), Reino Unido (19) e Alemanha (16).

Uma das principais preocupações é o aumento de casos entre a população jovem e o comportamento imprevidente de muitos, negligenciando o uso de máscara e se reunindo em festinhas e “botellones” nas ruas sem qualquer medida de segurança sanitária, apesar das multas aplicáveis a indivíduos e negócios.

Para diminuir o índice de contágios nessa faixa da população, destinos famosos por sua badalação e vida noturna, como Ibiza e País Basco, passaram de proibir o ócio noturno a também vetar festas diurnas esta semana (como as típicas “party boats” e happy hours em terraços de hotel, comuns nessa parte do globo no verão).

“Hoje, detectamos entre 70% e 75% dos infectados, enquanto que no auge da pandemia não chegávamos aos 10%”, contemporizou Simón em coletiva de imprensa. Por enquanto, o índice de hospitalizações é de 4%, muito inferior ao pior momento da primeira onda, quando chegamos a 55%.

Mas o relativo otimismo de algumas semanas atrás já desapareceu. No princípio de agosto —ou seja, há apenas 3 semanas —, o próprio Simón havia afirmado que ainda não estaríamos vivendo uma “segunda onda”. Wroooong —

Mãe caminha com criança em passeio vazio em Barcelona
Rambla de Catalunya, uma das ruas mais movimentadas de Barcelona, em agosto. Foto: Susana Bragatto/Folhapress

Voltando à esquina das ruas (“carrers”, em catalão) Provença e Sardenya, diante da Sagrada Família: em minha bicicleta, inspirada pela paz do momento, sem 1340751708 turistas se amontoando pra selfies, paro (como muitas vezes faço, sempre descobrindo algo novo) para contemplar a louca e infinita obra de arte gaudiana em forma de catedral católica.

(Esses dias, por sinal, motivada pelo breve momento que vos narro, me meti a ler sobre a história da Sagrada Família. Descobri detalhes bacanas y singelos. Em breve conto neste bloguito, a quem interessar possa.)

Antes de seguir meu caminho, escuto Antonio, o gari xará de Gaudí, comentar com seu companheiro, num relance de thread filosófico de meia-manhã: “Xavi, tudo o que há sob o sol tem seu tempo”. Refletindo sobre essa tremenda frase, quase atropelo uma senhora passeando com um fox terrier. Deu vontade de soltar: e o que nos espera, Antonio?

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