A volta do que não foi

Maravilha ordinária do dia: Suando em bicas e escutando no repeat a balada-nenúfar da banda indie catalã El Petit de Cal Eril, “Pols” (Pó, em catalão —”Eres rápida luz de las estrellas / Hasta que te apagas, hasta que te apagas…”)

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Barcelona, calor desgraciado de agosto de doismilevinte.

E eis que eu estreio esse bloguito tão ajeitadinho falando daquele Inevitável Assunto Que Você Sabe Qual É!

Vamos resumir assim: o tal segundo surto de Covid chegou em território español muito antes do que a gente imaginava. Ou: a lua de mel com a tal Nova Normalidade acabou muito antes do outono europeu, quando pensávamos que, aí sim, viria a nova onda de contágios.

Dos 141 positivos contabilizados no dia 21 de junho, numa Espanha recém-saída do confinamento, passamos a algo como 1.600 novos casos diários nos últimos dias, com cerca de 800 mortos na última semana. Os números se devem em parte a mais testes realizados na população, mas não se justificam apenas por isto. Vai vendo.

Outro dia, conversando com um amigo que é chefe de enfermaria de um dos principais hospitais privados de Barcelona, ele suspirou: sim, está difícil. “Os últimos quatro meses passaram como um sonho ruim — e continuamos nele”, lamentou.

A Espanha registra uma incidência acumulada de quase 100 casos por 100 mil habitantes, um número muito superior ao Reino Unido (18,2) ou à Itália (7,9). Em total, há neste exato instante 675 surtos ativos identificados em todo país, em comparação aos 34 de dois meses atrás.

Os principais focos: Catalunha, Aragón, discotecas, jovens e “temporeros”, os trabalhadores do campo que vêm ao país nesta época do ano para as colheitas.

Depois de voltar a limitar o uso de espaços coletivos e recomendar o autoconfinamento à população em zonas de altos índices de contágios, o objetivo agora é ampliar os testes massivos e buscar os assintomáticos.

Em Madri, 78% dos novos positivos não apresentam sintomas. Em Barcelona, testes de PCR gratuitos serão realizados este fim de semana nas zonas de maior índice de contágios e (ora, não por coincidência) piores indicadores socioeconômicos.

É o caso de Nou Barris, o distrito mais pobre da cidade, onde a incidência de casos é quase três vezes maior do que na super-rica área de Sarrià-Sant Gervasi, contígua ao parque natural de Collserola (onde, por certo, o famoso casal Gerard Piqué, do Barça, e sua señora doña Shakira têm uma cabañita muy ajeitadinha de 4.000 metros quadrados e estilo “minimalista”, com cinco andares, elevador, bodega, sala de cinema, academia de ginástica, piscinão, etcétera).

MAIS RÁPIDO QUE DÁME-UN-VERMUT

Embora tenha chegado muito antes de o ciudadano poder dizer camarero-dáme-un-vermut, o novo surto de contágios tem diferenças em relação ao dramático passado recente.

Pra começar, os números são, por enquanto, inferiores. Nem por isso todos concordam com Fernando Simón, porta-voz da Saúde e caballero alado health-symbol da nossa crise sanitária, médico e diretor do Centro de Alertas e Emergências Sanitárias, que disse no final de julho que não estaríamos ainda “vivendo uma segunda onda”.

“Temos que esperar pra ver o que acontece. Agora mesmo não há nenhuma transmissão descontrolada, detectamos muito mais casos e mais de 50% são assintomáticos”, argumentou.

Nesse novo cenário de Covid “veraniego”, destacam-se os jovens: no último mês, duplicaram-se os casos entre 15 e 29 anos em todo o país.

A média geral de idade dos novos positivos é de 43 anos (mulheres) e 40 (homens). Tudo isso levou diversas comunidades autônomas a limitar ou fechar as discotecas e outros locais de “ócio noturno”, o que por sua vez gerou um boom de “botellones” (festas de rua) e festinhas privadas, taxáveis com módicas multas de 3.000 (aproximadamente 19 mil reais) a 15 mil euros (pouco mais de 95 mil reais).

A proporção de hospitalizados e mortes do atual surto é por ora algo menor do que em abril, auge da coronacrise espanhola, quando estávamos todos confinados em casa sonhando com a saída semanal ao supermercado.

Na última semana, houve 65 falecimentos por Covid em todo o país, contra os 950 de um único dia em princípios de abril. Nesse mesmo período, registraram-se 750 hospitalizações, 45 das quais em unidades de tratamento intensivo.

Isso quer dizer que o vírus estaria sofrendo mutações e ficando mais “fraco”? Pergunta do millón, ainda inconclusiva. Ou que a primeira onda já ceifou a vida dos mais vulneráveis? Bem, os maiores de 60 voltam pouco a pouco a aparecer entre os mais afetados.

NOVA PÓS-NORMALIDADE

Voltando à conversa com meu amigo enfermeiro, falamos sobre imunidade. Eu, que tive coronavírus (completamente assintomática) e precisei me reconfinar depois do confinamento, ficando 14 dias em casa isolada até dar negativo em um novo PCR, agora topo com as pessoas anunciando: pode me abraçar, tô imunizada (é uma piadiña, gente… eu ainda dou mais o cotovelo que abraço, seguindo o protocolo social do momento). Mas estou, mesmo?

O enfermeiro, catalão de seus trinta-e-algo, enésima PCR negativa recém-feita, um gigantesco Ganesha (deus-elefante-hindu-abre-caminhos) estampado na coxa direita, sacode a cabeleira, baixando ozoinho algo cansados. “Não sabemos até que ponto dura a imunidade. O que posso dizer é que colegas de trabalho que deram positivo viram seu nível de anticorpos diminuir ou desaparecer em dois, três meses”.

Silêncio na mesa. É o primeiro encontro entre amigos em 5, 6 meses. Domingo de sol numa praia próxima a Barcelona. A lotação máxima das praias foi diminuída novamente, e os bares só podem utilizar até 50% de sua capacidade. Diga-se de passagem que os outros 50% andam profusamente ocupados. Agrupamentos, domésticos ou na rua, só de até 10 pessoas.

Como já éramos uma dezena no bar, outros três amigos sentaram separados. Em muitos sentidos, voltamos às fases iniciais da desescalada, num semiconfinamento light —por enquanto.

Reunidos em volta de mesas de plástico fincadas na areia, compartilhamos coronahistórias.

“Um colega de trabalho esteve em uma festa de família de onde saiu um positivo e eu só soube depois de uma reunião com ele”, conta uma amiga. “Eu estava de máscara, mas ele, falando ao telefone, tinha a sua no queixo. Meu marido é do grupo de risco. Voltei pra casa e dormi no sofá”, conta. A overprecaução é também por conta da filha, grávida de 7 meses.

O enfermeiro conta seu ritual durante o confinamento, familiar para muitos profissionais de saúde: chegar em casa, deixar as roupas na porta, botar num saco, banho e separação dos entes queridos.

No caso, um parceiro, também meu amigo, que, como eu, passou recentemente por um câncer. No auge da pandemia, se separaram fisicamente pra facilitar a vida. O enfermeiro voltava todos os dias para uma casa vazia. Às vezes pulava o jantar e ia direto pro Valium-e-cama, um combo comum entre os profissionais de saúde durante a pandemia.

“Mas estar em casa no fim de semana tampouco me tranquilizava”, comenta. “Eu tinha ansiedade por estar fora do hospital, com tudo o que estava passando”.

Uma amiga inglesa, com viagem marcada para visitar sua família em agosto, conta que foi surpreendida com a novíssima medida britânica de quarentena obrigatória pra quem chega da Espanha. “Isso quer dizer que eu terei que ficar quatorze dias encerrada em casa com minha mãe numa ‘village’, e que perderei as reservas que fizemos”, lamenta. “Mas tudo bem. É hora de ser flexível. Estão todos bem, e isso é o mais importante”.

BARCELONA, CIUDAD FANTASMA

Outro dia, alguém do Brazel me perguntou, algo indignado: como assim, vocês estão saindo pra rua, indo a bares e fazendo reuniões de amigos?! Está tudo assim Tão Normal?

Vamos a veire. Basicamente, não tem nada normal nesta bela e overturística cidade em que vivo. Não estamos saindo muito. Barcelona está deserta. Os turistas sumiram. Eu, que ando de bike parriba e pabajo sobretudo por trabalho e compromissos médicos, quase poderia pedalar de olhos fechados sem atropelar ou ser atropelada.

As lojas caem como dominó, com mais portas fechadas a cada dia. O turismo em todo o país viu um cancelamento de 80% das reservas para o verão. OITENTAPORCENTO, no segundo país mais visitado do mundo, señoras y señores.

Vários países europeus vêm desaconselhando viagens à Espanha. França cogita fechar fronteiras conosco, e isso quer dizer que meu plano de finalmente ir visitar meu irmão, que vive no campo em Toulouse, pode ter que esperar –de novo. Sair de casa, só com máscara, inclusive no bar, sob pena de levar uma multa de 100 euros (ou 634 reais).

Um pouco coronasaturada a certa altura desse dia de recorde de calor, me levanto pra tomar um banho de mar e atravesso um esparso mar de sombrinhas. A praia está algo cheia, embora não como em outros verões, e a maioria das pessoas busca manter distância entre toalhas (em Andaluzia, fizeram até mapeamento da areia, dividindo-a em lotes).

As línguas que mais escuto são o espanhol e o catalão —gente local. No caminho, passo por um grupo e-noooor-me de xóvens amontoados escutando reggaeton, fumando um “porro” e, claro, sem máscaras ou distância de segurança. Onde estão os gualdas?, me pergunto. O que nos espera?

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