Gustavo, engenheiro, dois filhos: ‘vou pra rua’

Pergunto a Gustavo, catalão, 43, jardineiro e engenheiro de telecomunicações formado pela Universidade de São Paulo nos idos dos 1990, se poderia recontar sua história. “Pode, sim, eu não tenho vergonha nenhuma. Estou fazendo isso pela minha família”, me diz, abrindo os longos braços —em português quase perfeito.

Estamos na avenida mais turística-peposa de Barcelona, onde comércios de fast fashion se acotovelam com Dior, Rolex, Ivesanlorrân e que-tais; onde uma fugaz sainha de fulô pode custar quinhentos euros; e onde topei na calçada com o supracitado Gustavo, vestindo uma imaculada camisa azul, sentado entre as lojas da Nike e da Anthropologie (marca americana queridiña de celebridades como Taylor Swift, Jessica Alba ou Mila Kunis).

Pra sentar no chão, uma toalha branquíssima, tão branca quanto seus tênis.

Vista de longe, essa imaculabilidade toda adquire uma qualidade quase fosforescente, em contraste com o tom empoeirado do entardecer e a calçada algo suja dos famosos ladrilhos hidráulicos criados por Gaudí (sobre os quais falarei mais adiante, porque vale a pena <3).

Não pude não me intrigar. Me aproximei e perguntei na lata: o que está acontecendo? É a pandemia?

Com desenvoltura, ele vai me contando. Nunca havia pedido dinheiro antes. Mas, duas semanas atrás, quando as reservas acabaram, decidiu: “vou para rua”.

Com dois filhos em idade escolar, Gustavo leva desde abril esperando a prestação do ERTE a que tem direito.

Trata-se de um subsídio de proteção ao emprego, tipo um seguro-desemprego temporário sem demissão, concedido a quase 2 milhões de trabalhadores nos últimos meses pandêmicos, sob a perspectiva de minimamente defender o tecido trabalhista e empresarial da crise.

Como Gustavo, pelo menos outras 150 mil pessoas esperam. São meses sem nenhuma fonte de renda ou ajuda oficial. Os números exatos são incertos e não vêm do governo, que garante já haver quitado todos os subsidios até a data, mas de diversas entidades de direitos civis.

Passeig de Gràcia, uma das principais avenidas de Barcelona, vazia em agosto de 2020
Passeig de Gràcia, Barcelona, agosto de 2020 (Susana Bragatto / Folhapress)

Ao longo deste período, Gustavo já bateu algumas vezes na porta da Oficina de Emprego, responsável pela gestão dos pagamentos e, conta, até ao serviço social foi, na esperança de obter alguma ajuda.

“Tá embaçado”, soltou, em seu paulistanês fluente. “A única coisa que consegui do serviço social é que nos visitem uma vez por semana para ver se nossos filhos estão comendo”. Ele sacode a cabeça já grisalha e baixa os olhos, de onde pendem olheiras profundas que quase se unem à máscara de estampa de camuflagem: “Agora, além de tudo, temos medo de que nos separem das crianças…”.

E buscar trabalho?, pergunto, óbvia.

“Metade da cidade de Barcelona tem meu currículo!” —exclama, levantando-se da toalha branca. Noto que, além de imaculada, é impecavelmente dobrada. A cena, somada à alta estatura de Gustavo, chama a atenção do vendedor da Nike, que nos observa distraídamente há minutos, provavelmente entediado com a falta de turistas.

“Eu poderia emparedar duas casas com a quantidade de papel que tenho distribuído. Muitos me dizem: mas o que você está fazendo aqui, com esse currículo? Por que não busca emprego na sua área? Ora, porque não encontro nenhum!”.

“Eu trabalhei na Vodafone, na Telecom, em banco, e aí fiquei sem trabalho, me formei em jardinagem e agora aceito trabalhar de qualquer coisa: pintar parede, pedreiro, o que for”.

Comentando sobre a conversa depois, alguém vagamente incrédulo me diz: pô, será que ele não encontra nada, mesmo? Ou acha mais rentável pedir na rua do que ganhar pouco num subemprego?

Gustavo insiste que não tem encontrado nada. Todas as manhãs, conta, vasculha páginas de empregos e prepara e distribui currículos. Se pedisse o seguro-desemprego agora, diz, perderia todas as prestações de ERTE dos últimos meses. “Por sorte, o dono do apartamento onde vivemos é compreensivo. Eu devo cinco meses de aluguel”, diz.

“E agora tem a volta às aulas. A pequena está no primário, mais brinca que outra coisa, mas o maior já precisa de livro, caderno, lápis… eu preciso dar um jeito. Roubar não vou; então estou aqui”, encerra.

São sete horas da tarde e ele leva desde o meio-dia em seu posto. Guarda os 10 euros que lhe dou e diz, “com isto, já tenho 15 euros! É um dia de sorte”.

Um casal empurrando um carrinho de bebê nos observa por alguns momentos e se aproxima para depositar outros 10 euros no potinho de moedas posicionado entre cartazes trilíngues que explicam a situação. “No have work” me martela na cabeça, “two childs”, Susana, para de editar o cartaz do cara!

Homem sentado na calçada ao lado de mochila e cartaz onde pede ajuda
Gustavo, 43, na calçada do Passeig de Gràcia, uma das avenidas mais movimentadas de Barcelona (Susana Bragatto / Folhapress)

Gustavo diz ´gracias´ umas 5 vezes. O casal se afasta em silêncio, sorriso entre tímido y consternado, engolido pelo dourado da tarde.

Também sigo meu rumo, pensando vagamente que o vestido bonito e longínquo na vitrine ao lado do Gustavo, mesmo com o über desconto de tempos pandêmicos, vale 50 vezes mais do que a caixinha do dia. Proporções, ângulos, saltos de fé…

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