A princesa, o golfe e umas corujas imaginárias
Domingo de sol, e eu aqui qual serpente anaconda buscando as sinuosas nesgas de luz na varanda de casa. E pensando, lânguida e aleatoriamente: por que será que golfe tem fama de esporte de rico?
Vamos a veire. Até onde entendo, amadora que sou, a referida atividade parece estoicamente simples. Consta, em resumo, de um pau, um buraco (no pun intended) e um extenso gramado verde.
Talvez a chave simbólica esteja justamente na imensidão do terreno verde, que separa o cidadão privilegiado com luvinhas e blusa com logo de crocodilo do resto do mundo, vasto e imundo.
Os campos de golfe mais concorridos do mundo têm lagos, falésias e paisagismo assinado por arquitetos de renome. São recolhidas ilhas da fantasia.
Nem todos os clubes de golfe são, claro, feitos pra milionários. As mensalidades, taxas ou carteirinhas de membro podem variar entre acessíveis e proibitivas, dependendo do público-alvo. Ainda assim, mesmo os não-top-do-mundo são no mínimo uma cutucada ou cuchillada no corazón (tradução: facada no âmago do ser humano de carteira não-polpuda tipo #eu).
Num conhecido clube de golfe da Grande São Paulo, “eleito duas vezes um dos dez melhores campos de golfe do Brasil pela Golf Digest”, o cidadão paga em torno de R$ 400 por 18 buracos num fim de semana. Tem até heliporto. E a terça-feira das mulheres custa R$ 120 [insert: lágrimas de gratidão borrando meu rímel waterproof], de acordo com informações do próprio site.
Já no Sebonack, em Nova York, a carteirinha de membro pode custar algo entre US$ 650 mil e US$ 1 milhão, e é concedida por indicação de outros membros (os preços são estimativas, porque os clubes mais peposos não costumam abrir o jogo sobre preços —tudo pela mística da Vida Exclusiva).
FALEMOS DA PRINCESA
Meu pensamento flutua do golfe para os headlines espanhóis do momento. Começando pelo ubíquo tema Covid: os pacientes graves já ocupam 25% das camas de UTI na Espanha. A curva de contágios segue ascendente, embora o Ministério da Saúde insista que somos o país com menor índice de mortes da União Europeia.
Índices, dados, perspectivas. Com a volta às aulas na Espanha, já se registraram as primeiras confusões escolares covidianas. Cinquenta e três, pra ser mais exata, segundo dados do Ministério da Educação, envolvendo casos positivos de professores, pais e alunos.
O incidente mais famoso envolve a Princesa Leonor (putz, princesas), que acaba de ser mandada pra casa (err, palácio, mais exatamente o palácio de Zarzuela, na periferia de Madri) pelos próximos 14 dias junto com toda sua classe, depois que uma coleguinha deu positivo.
O colégio de Leonor e sua irmã, a infanta (putz, infantas) Sofía, é um dos mais tradicionais de Madri. Com uma anuidade de 7 mil euros (ou R$ 44 mil —again, cá das minhas brisísticas economias pessoais, uma bolada na cara, mas não tão chocante quanto certas escolas de elite brasileiras), tem até pista de golfe (ora, vejam, golfe). As refeições são “assinadas” por um chef e supervisionadas por uma equipe médica, e o périplo educacional inclui, dizem, ensinar às garowtas a não fazer ruído com os sapatos ao caminhar.
Ah: sendo uma instituição católica, a primeira comunhão e a confirmação basicamente fazem parte do currículo, e são celebradas in situ (exclusiva, ilha da fantasia mode).
Outros casos repetem o roteiro, com detalhes preocupantes.
Uma escola em Madri quarentenou uma classe inteira após uma aluna dar positivo.
O pulo del gato é que a iniciativa de propor a quarentena partiu da escola, e não dos técnicos da saúde pública, que disseram não ser necessário mandar todo mundo pra casa, segundo declarou o diretor da escola ao jornal El País esta semana. Os dados dos pais de todos os alunos foram repassados às equipes de rastreamento sanitário.
UM ANO ESCOLAR FRATURADO
As escolas espanholas começaram o ano letivo na última semana com aulas marcadamente presenciais —fruto da orientação do Ministério da Educação nos últimos meses. Acontece que, quando começou a ser feito o planejamento, não se contava com o chocante aumento de casos ainda durante o verão.
Resultado: três quartos das comunidades autônomas espanholas adaptaram seus planos escolares e anunciaram uma mescla de aulas presenciais com ensino a distância. E a tendência é que venha mais por aí —mais evasão escolar, mais classes inteiras quarentenadas e mais desigualdades pedagógicas. Será um ano escolar fraturado, com consequências ainda insuficientemente estudadas.
A fragilidade do Novo Momento Escolar espanhol é gritante. No quesito contágios, o strike, quando acontece, é fulminante: em Cantábria, a descoberta de dois alunos positivos resultou em quarentena imediata para quase 30 crianças e três professores.
Eu me pergunto como é isso na prática. Em teoria, essas 30 crianças têm pais ou responsáveis, que também teriam que se isolar. E…?
Meu fluxo de consciência domingueiro levanta voo outra vez. E lembro de quando era pequenita e privilegiada vivendo em uma espécie de roça urbanizada na Grande São Paulo. Naquele longínquo e saudoso entonces, o irmão mais velho de uma amiguinha jogava golfe com o pai, inglês.
Foi a primeira e, quem sabe, última vez em que eu indiretamente tomei contato com tal universo. Que eu achava, pra dizer o mínimo, encafifante. Pouquíssima gente pra tanta terra. Um tapete verde tão perfeitificado e infinito que parecia cenário de videogame, contrastando com bolinhas tão diminutas e branquinhas, cujo destino glorioso era ser encaçapadas num buraco invisível onde muito bem poderiam fazer ninho as corujas da região (na minha imaginação). Um perigo, um perigo —penso, enquanto espanto um mosquito insistente que veio azucrinar meu domingo.
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