Sobre Gildas e abismos em um longínquo boteco español
Subiu como um microincêndio interior. Não pude evitar morder os lábios (por que mordemos lábios? anoto, pra futuras investigações urgentes às 3 da manhã).
Era comoção e, vamos a veire, raiva, bruta, cristalina y malagueta raiva o que eu sentia.
Ele me observava de longe, pescoço levemente inclinado para a esquerda, cotovelo apoiado no balcão do bar, ao lado de uma taça de vinho branco chamado Gilda, variedade verdejo, colheita 2019.
Eu sei porque era o mesmo que tomava eu.
Seus olhos azuis, que eu vinha evitando desde que cheguei, estavam injetados, não sei se de álcool ou cansaço.
A cada cinco segundos, ralhava com o menino que comia na mesa próxima, talvez de uns 16, 17 anos: MIGUEL, tá errado de novo! Mas VOCÊ É BURRO? Já falei mil vezes: o garfo desce na horizontal e a carne se corta assim, mas você não aprende nunca, não aguento mais. Não te aguento mais!
Tantas vezes repetiu semelhante ladainha aos quase-berros que dissipou a discreta festividade segundeira (era uma segunda-feira) do ambiente, como um redemoinho nauseante que retorce o prazer de deglutir umas olivas e tomar um Gilda.
Ah: estamos no povoado litorâneo onde vive meu namorado, Masnou, a 20 minutos de Barcelona. Inclusive posso avistar este último daqui da minha cadeira, aborrecido, os olhos também algo trans-entornados, esperando pra pedir a conta no balcão. Como eu, está chateado.
De Miguel, via as costas. Amplas, um adolescente em plena expansão. Encarapitado em um assento de madeira, implicado em trinchar a carne, saraivado por uma ininterrupta trilha sonora de P***QUEPARIU, MIGUEL! A camiseta de um festival de música a que provavelmente não foi. Óculos de aro negro.
E em absoluto silêncio — mesmo quando o homem, não sei se pai, cuidador ou sequestrador, se inclinava sobre seu prato pela enésima vez, deixando brevemente seu posto no balcão do bar, vociferando: MAS EU JÁ FALEI, VOCÊ NÃO APRENDE NUNCA, O GARFO NA HORIZONTAL, VOCÊ SÓ ME DECEPCIONA, MIGUEL, JO-DER!
Autismo, des-autismos, não interessa. Mil maneiras de ser. Quantas pessoas assim estragaram quantas autoestimas em caminhos diversos?
Um pai com uma menininha estavam sentados à mesa com Miguel, numa possível conexão amigável por costume, por frequentar o mesmo estabelecimento.
Ele e eu nos entreolhamos, suspiramos. À mesa comiam os três em silenciosa fraternidade. Não sobrava espaço auditivo pra mais conversas, já que o homem no balcão não podia par– MIGUEL, VOCÊ NÃO APRENDE! O homem dos gritos afundou a cara nas mãos, chorando ele mesmo. Tive pena. Tive?
Foi então que a menininha, cabeleira encaracolada recolhida num rabo de cavalo, atenta e de olhos muito arregalados, timidamente arriscou um “mas ele tá tentando…”. Ao que O Homem Do Balcão replicou, ríspido e profundamente infeliz: filha, não se meta, porque este não aprende e tem que aprender, que eu estou de saco cheio, fica na tua, tá, filha?
Quantos olhos marejados nesse buteco de pueblo.
Ela saiu correndo porta afora sem dizer nada. E voltou quando o Homem estava de costas reclamando do vinho Gilda pro garçom.
E se sentou ao lado de Miguel, e pegou um garfo. E disse, com a voz mais doce del mundo mundial que poderia brotar qual flô de lótus em um ambiente selvagem de bar-de-pueblo español/ou/onde-seja: não tem problema, é fácil. Eu te ensino, Miguel.
Acho que foi aí que eu mordi os lábios.
***
Termino meu último trago de verdejo. A vindima (colheita de uva) está pra começar, é final de agosto. Vejo na tevê um vinicultor francês falando que houve uma queda de 30% no consumo este ano.
O pai e a menininha se levantam conosco e saímos os quatro para a noite iluminada, quase lua cheia. Abandonamos o barco, deixamos o Miguel, não dissemos nada.
Me sinto compelida a voltar e fazer algo; não sei se dialogar, gritar também (nooope) ou buscar a assistência social. Mas, nesse e em qualquer caso, quem no final vai voltar pra casa com o Miguel? Quem vai abraçá-lo e dizer, com a desenvoltura da menininha, não tem problema, eu te aceito como você é, somos todos loucos, Miguel?
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