Estudo sugere que Espanha afrouxou confinamento cedo demais

Ah, as fantasias coletivas. Da noite pro dia, ou de alhos pra bugalhos, não vivo mais num país (razoavelmente) exemplar no combate à pandemia.

Pelo menos é como a mídia espanhola tem digerido o novo informe científico publicado nesta quinta (24) pela revista médica inglesa The Lancet, intitulado “Lições aprendidas ao aliviar as restrições anti-Covid-19: uma análise de países e regiões da Ásia-Pacífico e Europa”.

O documento, assinado por 17 especialistas de diferentes nacionalidades, faz uma análise comparativa entre as estratégias de desescalada do confinamento adotadas por 9 países e regiões “de alta renda” —Hong Kong, Japão, Nova Zelândia, Singapura, Coreia do Sul, Alemanha, Noruega, Espanha e Reino Unido.

O objetivo é identificar “as lições que os governos podem aprender com os êxitos e fracassos de outros”. As conclusões são tão óbvias quanto preocupantes, considerando que estamos, no hemisfério norte, a caminho do inverno, com uma segunda onda no encalço.

MÁSCARAS E ABERTURA TURÍSTICA

Entre as medidas positivas adotadas pela Espanha, o estudo aponta a adoção precoce da distância de 1,5 metro e o uso obrigatório da máscara em contextos específicos (e, desde maio, em qualquer contexto, inclusive na rua —uma medida mais radical que em outros países como Alemanha, França e Reino Unido, onde até o momento não é obrigatório o uso da máscara ao ar livre).

Vista da entrada do aeroporto em Barcelona, com a rua deserta
Aeroporto de Barcelona, setembro de 2020 (Susana Bragatto / Folhapress)

 

No âmbito social, o informe destaca a aprovação acelerada do Ingresso Mínimo Vital, uma renda mínima com a qual o governo espanhol espera beneficiar 2,5 milhões de pessoas em situação de risco.

Por outro lado, e aí vem a pedrada que já sabíamos, mas não em letras douradas assinadas por mil phDs, o estudo frisa que temos na Espanha muito menos camas de UTI (9,7 por 100 mil habitantes) que outros países asiáticos e vizinhos europeus como Alemanha (34 por 100 mil), e um sistema sanitário basicamente frágil, com muitas deficiências no rastreamento e isolamento de casos e na capacidade de absorção de enfermos.

Ora, essa fragilidade do sistema de saúde significa, obviamente, o que todo brasileiro também sabe de berço: que, quando a coisa aperta, a infeliz tendência é um coletivo deus-dará, elevado ao cubo nesses drásticos tempos pandêmicos.

Finalmente, o estudo da Lancet critica algumas decisões que considera precipitadas, como a suspensão espanhola da quarentena obrigatória para europeus que entram no país.

A medida algo desesperada foi anunciada em junho, quando estávamos saindo do confinamento nacional. A ideia era não perder os turistas de verão e afundar ainda mais a economia, monoamparada no setor em diversas partes do país, com destaque para Madri e Barcelona.

Trem lotado em véspera de feriado, Barcelona, setembro de 2020 (Susana Bragatto / Folhapress)

Mas não funcionou muito: além de previsivelmente contribuir para a segunda onda de contágios, a abertura não impediu o cancelamento de 70 a 80% das reservas turísticas de agosto, a partir do momento em que que a imprensa internacional começou a alertar para novo aumento de casos no país.

Barcelona, onde vivo há anos, viveu um verão atípico. Pela primeira vez desde que cheguei, as ruas e atrações turísticas estiveram (estão) vazias; os bares e praias, demasiado cheios de gente local; e inúmeros negócios, de portas fechadas, temporariamente ou para sempre.

O FIM DO UFANISMO PÓS-PANDÊMICO

É difícil lembrar, porque a memória é curta, o caminho é longo e os problemas são muitos (lá se vão mais de 7 meses desde o anúncio do estado de alarme espanhol); mas, poucos meses atrás, o governo, a mulher da cafeteria e o vizinho estavam relativamente orgulhosos do combate coronático espanhol.

No final de março, um estudo divulgado pelo Imperial College of London em colaboração com a Universidade de Oxford e a OMS (Organização Mundial da Saúde) celebrava as 60 mil vidas europeias preservadas até aquele momento graças ao “lockdown” restrito em 11 países, Espanha incluída.

Durante o confinamento espanhol, nem a oposição era capaz de ofuscar o ufanismo simonesco (centrado na figura de Fernando Simón, médico e porta-voz do Ministério da Saúde durante a crise).

Já em abril, porém, a OMS avisava do risco de se afrouxar a guarda cedo demais, principalmente nos países mais afetados —de novo, Espanha incluída.

Em junho, depois de um mês de desescalada progressiva, ingressamos no tal NovoNormal. Dois meses depois, e muito mais rápido do que se imaginava, caímos na segunda onda, já pressentida no início de agosto, auge do verão.

Como o personagem daquele desenho animado antigo que repete “eu te disse, eu te disse” (quem lembra disso??), o novo relatório publicado pela Lancet aponta erros e culpados. Saudável e importante crítica, ainda que talvez demasiado tardia.

Saímos da desescalada pós-primeiro surto rápido demais. Yadda yadda yadda. Agora é óbvio. É a voz do sábio tomando uísque no café em Parrí e observando os anarquistas na rua, barricadas, Charles Hebdo, embrulhado no conforto phopho de sua poltrona de couro vermelho (minha imaginação não tem limites, perdón). Eu te disse, eu te disse.

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