Terrorismo e a memória do trauma

O atentado em Nice desta última quinta (29) me fez pensar. Recordar.

Onde você estava no dia em que os aviões se chocaram contra as torres gêmeas, quase 20 anos atrás?

Eu estava no centro acadêmico da faculdade de Comunicação, no corazón do Butantã, em São Paulo. Indo pegar um café e um sanduíche de ricota com cenoura na lanchonete da dona Hermínia, a mítica dona Hermínia, que alimentou provavelmente algumas gerações de jornalistiñas.

E alguém me contou. E, gente, eu dei risada. Achei que era pegadinha.

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Uma amiga hermana muito próxima, francesa de Marselha, vivia em Nice quando um atentado terrorista em julho de 2016 deixou quase 100 mortos na famosa Promenade des Anglais.

“Vou lembrar por toda a minha vida. Era uma sexta-feira, dia de festa nacional [Queda da Bastilha]. Havia fogos de artifício, muita festa, música, famílias”, relembra.

“Eu tinha me mudado há 15 dias. Minha mãe veio pra me ajudar com minha filha. Ella (sua filha, então com 5 anos) queria tomar um sorvete e ver os fogos, e minha mãe disse: minha perna dói, vai você com ela”.

“Sempre penso que, se minha mãe tivesse vindo, talvez a gente não tivesse escapado”.

“Eu vivia a 20 minutos a pé da praia. Quando chegamos, perguntei a um policial, onde vão ser os fogos? Ele indicou a direção leste da praia. Por instinto, fui na direção contrária [o caminhão que atropelou a multidão viria da ponta leste].”

“Minha filha não tinha nem terminado o sorvete quando, de repente… algo me disse: vai pra casa. Já.”

“Eu me surpreendi pegando ela nos braços e correndo, realmente correndo pelas ruas em direção a casa. Não tinha acontecido nada ainda.”

Cartaz em centro comercial de Barcelona dá instruções em caso de um atentado terrorista – outubro de 2020 (Susana Bragatto/Folhapress)

“Quando cheguei em casa, a porta do edifício estava aberta. Ponho minha filha pra dormir, leio uma história pra ela e, quando deito na cama, começo a receber mensagens desesperadas de amigos e familiares. ‘Você está bem? Onde você está?'”

“Escuto um ruído muito forte na escadaria do edifício e uma pessoa bate na minha porta com violência. Era um homem. Dizia: ‘estou com a minha família, me deixa entrar, necessitamos refúgio!’. Mas eu fiquei com medo de abrir. Éramos três mulheres sozinhas, e eu não vivia tão perto do local onde aconteceu o atentado.”

“No dia seguinte, abri a loja onde trabalhava, na rua de trás da Promenade. Pessoas tomavam café no bar da frente como se nada tivesse acontecido. E entra uma jornalista. Ela tinha falado com muita gente, e me contou histórias de pais que perderam filhos e crianças que perderam os pais, e outras que foram sequestradas no meio da bagunça.”

“Por um bom tempo, quase não se via gente na rua. O que sim eu vi eram vestígios: havia bichinhos de pelúcia e brinquedos por toda a Promenade des Anglais…”

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Fast forward pro atentado em Barcelona de 17 de agosto de 2017. Aniversário do meu irmão. Eu já vivia aqui há alguns anos.

Lembro com nitidez desse dia fatídico, quando um furgão saiu atropelando a multidão no centro da cidade, na Rambla, uma das promenades mais famosas e turísticas de Barcelona.

Moradores locais passeiam por Las Ramblas, um dos principais pontos turísticos de Barcelona, durante a pandemia de Covid, em setembro de 2020 (Susana Bragatto / Folhapress)

Eu estava no bairro vizinho e vi polícia pra todo lado, antes de saber o que tinha passado.

Mas uma amiga atravessava a Rambla justo naquele momento e, sem entender nada, ouvindo gritos e freios e outros ruídos terroríficos, saiu correndo pelas ruas laterais com a multidão que vinha em sua direção. Passou por comércios baixando apressadamente as persianas e terminou batendo na porta do edifício de uma conhecida, desesperada, pedindo pra entrar.

Detalhe do vídeo de “La Gent Normal”, versão da banda catalã Manel para “Common People”, do Pulp, gravado na Rambla, em Barcelona (Reprodução)

Outra, uma argentina que também passava por ali, teve tempo de ver um cara ensanguentado estendido no chão (“era o rapaz da banca de jornais… ele era de Córdoba!”, me contou, extra-afetada por se tratar de um patrício). A loucura da debandada coletiva era tal que ela sequer pôde se aproximar.

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O plano original dos criminosos em Barcelona era voar pelos ares a Sagrada Família e outros dois pontos da cidade com alta afluência de gente.

Para isso, o comando responsável pelos ataques produziu uma quantidade absurda de TATP (peróxido de acetona, um tipo de explosivo de fabricação caseira e o preferido das células jihadistas, não por acaso apelidado de “A mãe de Satã”).

No total, 100 quilos, de longe a maior quantidade (que se saiba) já reunida para um atentado na Europa. Em outros incidentes em Londres, Paris e Bruxelas, pra se ter uma ideia, a quantidade variou de meio quilo a 15 a 30 quilos.

Fachada da Sagrada Família, em Barcelona, em foto tirada da minha bicicletiña (Susana Bragatto/Folhapress)

Mas a munição acidentalmente explodiu antes. E os terroristas então improvisaram com o furgão supracitado e outro na cidade turística de Cambrils, na costa catalã, matando um total de 16 pessoas.

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Ainda hoje, em Barcelona, aqui e ali vejo cartazes com instruções em caso de ataques terroristas.

Ainda hoje, em toda a Espanha, vivemos no nível 4 de alerta terrorista, o que equivale a “risco alto” (são 5 níveis no total).

Ainda hoje, caminho com cautela extra quando passo pela Rambla, pela Plaza Catalunya ou a Sagrada Família, que não evito mais, apaixonada que sou por contemplar a cada dia a obra-prima de Gaudí.

Como cantam os do Manel, banda querida do indie catalão, em vídeo gravado na Rambla, num dia colorido d’antanho: “Viure com ho fan els altres / Veure les coses que veu la gent normal” (“Viver como vivem os outros, ver as coisas que vê a gente normal…”)

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