Uma história de amor em Ibiza
Eu caminhava pelas ruas medievais do centro histórico de Eivissa, capital de Ibiza, cantarolando “Eu só quero você” do Pepeu por baixo da minha máscara de neoprene negra, quando os vi.
Altos, belos, em branco e negro. Casal. Segurando um bebê. Apaixonados –parecia, sonhei, imaginei.
Dalt Vila (“cidade alta”, em ibicenco, cercada por muralhas do século 16) tem sua magia. Ainda mais agora, sem turistas.
Ibiza corongada é outra história, miña gente. Como explicar. Sem clubbers, sem xovens trupicando pelos paralelepípedos em saltinhos y alegrias etili*mdma*lísticas, sem o poperô e o jet set de costume, é de uma tranquilidade abissal, é outra ilha.
Nas ruas vazias, apenas minguados turistas “nacionales” como nós aproveitando o breve idílio veranil entre-ondas-coronavíricas… e gente local.
Como Jesús García, estrelando em uma gigantesca foto em P&B diante da porta de seu ateliê na Calle Mayor, posando com sua mulher e comparsa há quase 50 anos, Isabel Delgado, e o filho então bebê.
Os dois, moradores da ilha desde os anos 1960, são mais conhecidos como Tráspas e Torijano, artesãos e organizadores de festins como o já tradicional banquete medieval, na praça da Catedral, com uma mesa à la Santa Ceia, pernas de porco servidas em vasilhas de barro e trajes a caráter.
Mas tudo isso eu viria saber depois.
Entro no ateliê, topo com o próprio Tráspas. Embora tenham se passado uns 40 anos desde a foto da entrada, é inconfundível. O bigodão é o mesmo, o olhar algo oblíquo, mezzo blasé, mezzo tô-te-sacando. Camisa amarela de linho, calça cargo e uma longa trança grisalha que chega até o peito.
Tivemos que tirar uma foto juntos, que eu levei minha blusa de estampa de vaquinha pra Ibiza só pra essa selfie combinada-lacrada-impromptu, poha :).
“Na ausência de turistas, isso aqui me lembra a Ibiza dos anos 1970”, me conta, enquanto me mostra um de seus muitos diários de viagens, repletos de uma caligrafia esvoaçante e desenhos sensitivos em nanquim. “Esse aqui foi feito no Caminho de Santiago”, murmura. Tráspas e sua mulher são absolutos fãs de tudo quanto é triquelê medieval –já deu pra perceber.
Ambos são personagens conhecidos da vida cultural local. Também são fotogênicos papoha, e creio que sabem. Em outras fotos igualmente deliciosas, aparecem olhando pro infinito ou dançando à la Studio 54, glamurosos, com a indiferença dândi que flutua nos olhares dos boêmios inesquecíveis.
Um poema da dupla (há vários, escritos à mão em lousas, paredes e cadernos) legenda de maneira singela-direta a vibración acolhedora dessa esquina ibicenca:
“Somos estrelas errantes
no céu da vida,
deixando rastros qual chuva
nas pessoas queridas.
Devemos pensar no que fazemos,
pois, bem ou mal,
isso as toca.
Vamos dar amor a elas
e tornar ricas
suas vidas”
O amor de Tráspas e Torijano atravessou décadas de revoluções ibicencas, do hippie ao pop. Permanece vivo e testamental no ateliê da rua Mayor, perto da supracitada praça da Catedral. Visitem –quando puderem –e digam que foi a Susana, brasileira, que recomendou. Ele nem vai lembrar, mas me sentirei importante :).
Meio nostálgica, meio passarinho, sorvo com quase-compulsão as últimas fotinhos analógicas do casal, e também a colossal pasta de notícias que Tráspas vai folheando. Mariah Carey esteve na área, eu vejo, e visitou o ateliê.
Já nem vibro com isso, fico shippando mesmo é a foto que mostra a moçoila de roupita branca e botas de cano alto, enlaçada por seu beau com outfit de Travolta e braços cabeludos. Anônimos, celebridades, astronautas de Ibiza.
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Ah, já ia me esquecendo (vulgo last, but not least –Pepeu, um dos melhores guitarristas do mundo e autor de uma de minhas mais adoradas baladas de amor):
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