As cores da memória e um pouquito de Almodóvar
PRÓLOGO: na varanda de casa, com meu fiel flatmate, observando a coleção de pássaros não-identificados e gaivotas cruzando o céu nublado de Barcelona. De repente, vem o sol… e a chuva.
Eu explico pra ele nosso ditado, que, por sinal, sempre deixa os espanhóis meio petrificados: “cómo así, casamiento de español?”. E aprendo que, na Catalunha, a trovinha goes: “Plou i fa sol, les bruixes es pentinen” — [quando] chove e faz sol, as bruxas se penteiam (na canção infantil completa, as bruxas também se vestem de luto e põem um ovo. Enciclopédias transcendentais do mundo, uni-vos!!!).
Mil teorias de uma singela manhã de quinta-feira se seguiram. Agora, sempre que houver chuva-e-sol, vou lembrar das bruxas penteadas botando ovo no casamento do espanhol.
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Não sei vansmecezes, mas a memória afetiva pra mim tem uma brisa, ou mió, uma paleta de tons muito particular.
E porque essa paleta é meu cafofo quentinho do passado fantasiado y reimaginado, me transformei numa voyeur vampiresca de álbum de família alheio.
Sou ávida devoradora de instantâneos (ou, com sorte, super8s, polaróides e afins) da família, dos amigos, dos pais dos amigos, dos avós dos primos dos amigos, dos dias de anteontem.
Por trás da minha tara, creio que busco signos da minha infância entre os 1980s e 1990s ou anteriores, cores estouradas, entardeceres granulados, costeletas gigantes, calças bocas de sino, longos cabelos lisos balouçados por uma brisa de eternidade, olhares felizes de quem já não está, um tempo que não avança, protegido-uterino.
Minha mãe era fotógrafa. Teve estúdio de foto no centro de Sumpaulo, por onde passou muita gente –eu vejo ela meio que como testemunha ocular da história. Chegou a tirar 3×4, sei lá, do Lima Duarte quando veio pra SP ser arxtista. E outras quantas histórias.
Quando eu era criança, ela tirava foto de mim e dos meus irmãos usando um caixote esquisito. Às vezes deixava a gente olhar por cima, onde tem aquele quadradinho. Uma Rolleiflex.
Meu pai também era ótimo fotógrafo, e por consegüinte (com trema) a gente tinha (tem) montanhas de fotos em casa. Eu aprendi a fotografar com as dicas e livros deles, repletos de imagens setentísticas maravilhosas. Tinha tantas pessôuas verdadeiramente lindas nos anos 1970, sem filtros –essa é minha crença divina particular.
Fico imaginando se os xovens de hoje em dia veem as cores de suas próprias lembranças de maneira semelhante, ou se eles têm um mundo interior mais parecido com megapixels de uma tela de smartfônn –algo oscilante entre filtros de beleza e resolução monster-HD (plus 4385709 efeitos e stickers).
(Hmm. Deve existir um estudo da universidade de Mashchscasssusschets sobre isto, ou vários)
Hoje em dia o álbum de fotos pulula no celulóids. Antes, não. A gente tinha que pensar muito bem em cada clique, pra não desperdiçar as 12/24/36 poses de cada rolo-de-filme.
Lembro da disputa de mercado entre a Kodak e a Fuji, com essa questão d’antanho entre os azulados e dourados.
Eu sempre fui kodakiana. Adoro as fotos no fundo das gavetas, nas caixas esquecidas, quando adquirem essa penugem douradiana e maravilhosamente esmaecida, ganhando profundidade e personalidade. São as rugas da experiência da fotografia. P&B também.
Sou só eu?
Naaah, eu sei que ceis tão aí bizoiando taradamente as fotinhos analógicas que ora compartilharey com vosotros.
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Conheci o Felipe Torres Bueno, autor das imagens aqui reproduzidas (IG: @fugazinstantedecisivo), porque ele lia meus textículos e tem bonitas fotos analógicas de suas andanças pela Espanha em seu Instagram. “Sem pretensão”, disse de cara. Um apaixonado –pela fotografia, pelo país e por Almodóvar, de quem seguiu rastros cinemáticos em diferentes cidades.
A primeira foto sua que me chamou a atenção foi a da catedral da Sagrada Família, de Gaudí, em Barcelona: estourada pela metade. Erro de revelação ou providência do divino. Kintsugi. Amey.
“Diferente da digital, a fotografia analógica não nos permite saber de imediato como ficou a foto e não é possível fazer edições. É sempre algo surpreendente o resultado. Cada filme te traz uma textura e saturação própria, o que torna tudo mais mágico”, diz.
Esse mineiro da Zona da Mata, jornalista, pisou em solo espanhol pela primeira vez em 2015, durante seu primeiro mochilão pela Zooropa. Trazia a tiracolo sua Olympus Trip 35 mm, uma beleziña popular nos anos 1970 e hoje objeto de colecionador, que comprou no centro de BH, onde “um senhor explicou em poucos passos como trabalhar com filme”.
“Cheguei a Barcelona vindo de Paris, na mesma hora em ocorreu o atentado [ataques terroristas ocorridos na noite de 13 de novembro na casa de shows Bataclan e outros lugares, e que levaram à morte de mais de uma centena de pessoas]”, lembra. Ah, memórias.
Amou Sevilha, “com seus pés de laranja pelas calçadas, o pôr-do-sol, o clima festivo, as casas com pátios e flores”, e Palma de Mallorca, capital da ilha homônima, a 200 quilômetros ou 20 minutos de voo de Barcelona –“cidade da cantora Concha Buika, que conheci por meio do filme ‘A pele que habito'”, conta.
Mas por conta do amor por Almodóvar, claro, o destino luminar obrigatório é Madri, que visitou duas vezes. Na primeira vez, quando o cineasta rodava o longa ‘Julieta’ em Chueca, bairro trendy e lindo conhecido por sua diversidade LGBT y cultural.
“Lá fui eu me hospedar num hostel na calle de Hortaleza [no corazón de Chueca]”, conta, na esperança de ver o hômi ou topar com alguma filmagem. “Andava pelo local e fui ao Cine Doré, do qual ele é frequentador assíduo. E nada! Mas tudo bem! Aproveitei muito a cidade”.
Em 2017, Felipe voltou à Espanha e percorreu vários cenários de filmes almodovarianos. O Museo Chicote (que de museu não tem nada, é um cocktail bar desses estilo americano super tradicionais da cidade), onde a personagem Judit García, de ‘Abraços Partidos’, toma dramáticos gin tonics; o viaduto Segóvia, cuja origem remonta à Idade Média, e que é cenário de ‘Matador’. “Em um dia nublado”, conta, “fui ao Teatro Bellas Artes, onde Manuela e Esteban, no filme ‘Tudo sobre minha mãe’, assistem ao espetáculo de ‘Um bonde chamado desejo'”.
“É bonita a relação que Almodóvar guarda com Madri. Cada filme é uma homenagem à cidade. Isto fica evidente na cena em que Penélope Cruz, em ‘Carne Trêmula’, dá à luz em um ônibus que percorre as ruas e lugares turísticos de Madri”.
“A fotografia analógica, como uma carta, traz consigo memórias importantes, afeto e beleza”, reflete. Eu também acho. Lembrei agora de algo que disse o fotógrafo teutobritânico Bill Brandt em um documentário que vi hoje: ver com os olhos da criança que observa o mundo pela primeira vez; maravilhamento, rapaiz. As cores, a passagem do tempo, o imediatamente memorável de um instantâneo no tempo. Revelar, desvelar, descobrir. Call me romantic. Yo soy. Y tu?
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