A maruja e o surrealista
Isso é que é roquenrol, señoras y señores.
Nem sei se tenho algo a escrever sobre isto. Este vídeo, extraído de um especial da TVE (TV Espanhola) de 1971, já diz muito, gorgoreja, hecatombiza, maçarocariza com amor entalado na garganta até passarinho fazer gggrruuu..grrruuu…soc…orrr..rrruu:
Gravado em Barcelona diante do indefectível Arc de Triomf, monumento construído como entrada para a Exposição Universal de 1888, “Es mi hombre” é basicamente a versão lisérgica-groovy-rumbeira de “My Man”, standard de jazz que eu aprendi a cantar y amar na voz da Billie.
Figura a espetacular Maruja Garrido baixando em helicóptero (da polícia de trânsito) e prostrando-se diante de Dalí, que faz caras e olhos arregalados pra câmera, Dalí style, enquanto ela grita ¨no puedo pasar / una noche sin pensar / en mi hooommmmbreee¨. Cortes rápidos, ângulos loucos.
O documentário é obra do lendário realizador/diretor/roteirista romeno-espanholizado Valerio Lazarov, do qual falarei mais algum dia. Verdade seja dita, porém: dizem que foi Dalí quem convenceu Lazarov de deixar a pemba do helicóptero no script.
A aura é de corações dilacerados, curiosidade antológica e uma pitada creizi sadomasô [estrelando carícias em cetros dourados, contra-plongées e coreografias submissas-dominantes], o que torna tudo mais, hmm, tridimensional.
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Tudo muy loco, muy bonito, mas: y qué?
Falemos da Maruja e não do onibigodudo catalão.
Maruja, gitana sagitariana caravaqueña (Caravaca de La Cruz, Múrcia, 1945), começou a cantar por necessidade. Mais velha de 8 irmãos, ia pra rua tentar conseguir um trocado, e desde uns 7 anos de idade já percebeu: podia cantarolar, la niña.
Fast forward pra Barcelona, onde chegou com a família como “polizona”, isto é, viajante clandestina num barco. Aqui, descolou trabalho de dançarina de flamenco no palco do Tarantos, o mais antigo “tablao” da cidade, fundado em 1963 na Plaça Reial e desde 2010 com selinho de patrimônio imaterial da Humanidade pela UNESCO (UNESCO’s fckn everywhere!).
Conta a própria Maruja que, numa sessão em que o público “no hacía ni caso” (ou seja, que se mostrava especialmente desinteressado –I feel you, Maruja), ela desembestou a improvisar uma canção mexicana.
Aí, ferrou: todo mundo gostou, e o dono da casa falou pra ela repetir. “Eu não queria de jeito nenhum, mas ou era isso ou ia pro olho da rua”, lembra, em uma entrevista ao jornal El Periódico. “Passei seis meses cantando todo dia a única canção que sabia”.
O tal dono da casa, também proprietário do famoso bar de jazz Jamboree, em Barcelona, seria mais tarde seu marido, o “payo” (como os gitanos chamam os não-gitanos) com quem passaria toda a vida e por quem, por sinal, acabaria deixando os “tablaos”.
O resto é história. Maruja foi apresentada por Dalí, que a viu no Tarantos, à nata da societê em Paris. E terminou nos palcos do Olympia, onde também Edith Piaf fez seu nome.
Seus gestos de levantar a saia, sacudir o cabelo e cantar como uma possuída são trademark de umas tantas performers de flamenco, mas, também marca registrada flamenca, Maruja tem caráter. Como se diz aqui: “se le ve” (se vê). No sorriso amplo, no magnetismo, na maneira gitana de dizer na cara, trovejar, ser passional.
Lembrei de quando fui numa festa gitana em Tarragona e o povo, no calorrr da música, começou a arrancar a camisa e a gritar entre si como se fossem se matar. É isso, ou algo assim. Sem querer reduzir o intraduzível. Hay que vivirlo.
“Se fosse por mim, nem artista tinha sido, porque quando era pequena pensava que todas as artistas eram putas”, diz Maruja, María Garrido Fernández de batismo. “Se subi num palco, foi porque meus irmãos precisavam comer”.
Anos depois, mudaria de ideia: as “chicas” que esperavam clientes no “meublé” (aka motel, francopalavriña da moda de entonces) ao lado do Tarantos até ajudavam a reservar mesa e pegar um sinal dos turistas antes de a casa abrir. “E depois não ficavam com nem ‘um duro’ de gestão”, lembra. “Pouca gente encontrei na vida com tanta categoria”.
Só não cantou diante de Franco: este retirou o convite quando soube que ela tinha gravado uma música dedicada ao Che Guevara. “E isso porque eu não tinha nem ideia de quem era. Um revolucionário, né?”
Curiosidade: o vídeo acima mostra a fachada em neon de outra casa de shows emblemática de Barcelona, fundada no final do século 19. Popularizada como “Petit Moulin Rouge” a princípios do século 20, à imagem da versão original parisiense, teve que mudar de nome quando veio o franquismo. Esse homem, de novo. Vermelho não podia. Virou El Molino (O Moinho), nome que ostenta até hoje.
** disclaimer: aqui, misturo flamenco com rumba, mas, se a gente for examinar, flamenco, rumba flamenca, rumba catalana, coplas etc etc são cada-uma-uma-coisa. Pra outra coluna normalita. 🙂