Cheiro de macho, licor do macaco e a mirada de Rosalía
Vale 6,75 euros (41,47 reais) em uma grande cadeia de perfumaria espanhola.
Inclui notas de madeira, couro, vetiver e castóreo –a secreção glandular dos genitais dos castores, considerada um potente estimulante. Um pupurri cheirosístico que conjura, diz o reclame, “um caráter cálido e opulento”.
Este, señoras e señores, é o resumo descritivo de um dos aromas mais clássicos da Espanha Profunda, aka Cheiro do Macho Imaginário Espanhol since 1927 (CMIEPro). O nome de tal patrimônio sensorial-cultural é assaz eloquente: COLÔNIA VARON DANDY.
Adoro. Mais literal, só se chamasse CHEIRO DE MACHO.
Pergunto a um amigo xovem, ele ri. “Sabe aquele cara que leva dois quilos de gel no cabelo, pente no bolso, corrente dourada e camisa meio aberta? Esse é o Varon Dandy”, explica. E o cheiro? “Basicamente horrível”.
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Ao longo dos oscilantes tempos históricos, o Varon Dandy (marca e personagem) transmutou-se de Colônia de Homens de Caráter nos primórdios do século 20 (vide anúncio abaixo) para parte integrante da mística “barriobajera”, palabrinha espanhola um tanto pejorativa que faz referência aos bairros “baixos” ou periféricos e significa algo entre marginal/vulgar/popular.
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A primeira vez que topei com Varon Dandy foi no videoclipe de 2018 da barcelonesa Rosalía.
(imagino que ceis saibam quem é? Estrelíssima do pop espanhol, com trajetória que começou no flamenco, trupicou no hip hop e hoje é puro neon celebrity multicultural internacional)
É uma mescla de homenagem, crítica e superação simbólica do universo machista “barriobajero”, com caminhoneiros de corações sangrantes e muitos moletons crop.
Em uma icônica cena, o videoclipe mostra uma mesa. Sobre ela, incide uma luz entre celestial e propaganda-de-caldo-ki-norr. Ilumina uvas, alhos, alcachofras e granadas. Limões de Múrcia. Laranjas de Valência. Uma jarra de barro com azeite ou vinho.
Desses commodities da culinária y economia atemporais espanholas, emergem símbolos do macho varonil español ancestral: um pacote de cigarros Rex (populares nos anos 1970 e 80, junto com os indefectíveis Ducados espanhóis), um vidro de Varon Dandy e uma garrafa de anís del mono.
Este último merece um aparte: significa, literalmente, licor do macaco, um digestivo de ervas centenário fabricado em um edifício de fachada art nouveau em Badalona, na Grande Barcelona, mesma Terra da Varon Dandy. Diante da fábrica, uma escultura de um macaco. Dizem, com a cara do Darwin. O anís del mono era a 51 ou Underberg do bar “de toda la vida” com um splash mais cultural.
Sua garrafa prismada em alto-relevo era tão onipresente que os “críos” locais –crianças, incluindo meu namorildo nos idos dos 1980s –infalivelmente a usavam de reco-reco na escola pra acompanhar canções natalinas.
Aliás, o licor também é internacionalmente famoso. Aparece, por exemplo, em cenas de filmes gangsta como Donnie Brasco e O Poderoso Chefão, acompanhando jogatinas ou banquetes.
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Voltando à cena, que esse artigo está overdigressivo.
No centro da elegia crítica (hmm, nem sei o que quero dizer com isso), uma bailarina de flamenco. E não uma qualquer: é uma preciosa peça de Lladró, empresa familiar de Valência que produz figuretas de porcelana conhecidas em todo o mundo. Podem chegar a custar a bagatela de uns 500 euros (3 mil reais) cada.
De repente, sua delicada cabeça é estourada por um taco de bêisebol. Atacada por um macho varonil, um dândi dos recantos sexistas da tal Espanha Profunda. Talvez seu sovaco machérrimo suado cheirasse a castóreo, ou a água de rosas benzida pelos santos da próxima esquina.
O nome do videoclipe, parte de uma série: “Pienso en tu mirá (Cap. 3: Celos)”. Penso em tua mirada. Celos, zelo, ciúme. Possessividade, submissão da mulher, tradição, medo e culpa.
“Me dá medo quando você sai / sorrindo pela rua / porque todos podem ver / as suas covinhas que apareee-ceeem” traducción libre minha)
Mas aí rola a reviravolta, néah. A caminho do fim do vídeo, ressuscita a bailarina, que sorri com sua covinha, enquanto é lavada pelo pó de uma casa antiga que desaba sob a vibração dos pés de mulheres. Estas saem à rua, deixam seus trajes de luto; são agora as hip-hopescas “chonis” urbanas, liberadas, unindo as pontas da tradição e da liberdade-de-ser.
Na cena final, um caminhão, veículo por excelência da estética “barriobajera” (junto com os automóveis rebaixados y tunados), aparece de pernas pro ar, destroçado, o carregamento de laranjas pelo asfalto. Rosalía aparece no topo. Fim.
A música, parceria mauravilhosa da artista com o produtor-espanhol-dos-meus-sonhos Guincho (que colaborou com Mala Rodríguez e Björk e, mais recentemente, foi recrutado para o novo disco da FKA Twigs), ganha em superlatividade com as imagens da produtora barcelonesa Canada, que assina este e outros videoclipes da cantora.
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Outro dia fui numa bodega de pueblo com o boffs (aka namorildo ou compañero, em meu vocabulário pessoal) e pedi o tal anís del mono.
Já tinha uns dois vinhos Matsu, El Pícaro na cabeça e a colisão nuclear co´a aguardente do macaco me deixou com as bochechas rosadíssimas, to say the leastststs. Forte pacarayo, gosto ululante de anis, mais doce e perigoso que dizer umdoistrêsdeoliveiraquatro atravessando a rua de olhos fechados.
Ah: dizem que o licor tem esse nome porque o fundador da companhia era meio excêntrico e um dia pediu pra alguém importar um ou dois (“1 o 2”, em castellano) macacos. Porque queria ter macacos, uai. Esse alguém entendeu 102 e o resto … é história española das microcosmidades.
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