Mais um meteorito, por favor
PRÓLOGO QUEIXOSO
Nesta última quinta (17) o governo espanhol anunciou as mais novas restrições depois das mais novas restrições coronísticas para as festas de fim de ano.
Entre elas, os restaurantes e bares vão ter horários reduzidos (de novo) e lotação máxima ainda mais limitada (de novo), e por consequência houve panelaço contra o governo (de novo).
Entrementes, um conhecido me procura pelo fofobuqui: será que eu sei de algum emprego para seu primo que acaba de chegar in town?
Meu amigo –tenho vontade de dizer –, nesta tierra combalida por invasões víricas num tem Natal, num tem trabalho. Não este ano de mil anos de doismilevintedepoisdohôminacruz.
A não ser, quem sabe, em uma das 148078 startups de comida a domicílio florescendo qual torrones no polo tecnológico de Barcelona.
TORRONES: SOBRE AMÊNDOAS, FINALMENTE
A cousa aqui tá tão complicada que hoje eu quero falar de amêndoas.
Mais exatamente, de torrones.
Diz a hiihi-istória que o “turrón” espanhol nasceu em algum lugar da Alicante medieval, sob influência da cultura árabe.
A base, diferente da nossa versão brazilêra de amendoim e frutas cristalizadas, é de amêndoas, açúcar e mel.
Esse parente do torrone italiano e do nougat macio francês é uma instituição espanhola, exportado pros quatro cantos do globo e presença obrigatória na mesa de Natal.
(Ouvindo esta lindíssima canção no repeat)
Época de Natal ativa meus mixed feelings sobre doces espanholis e a Hegemonia da Amêndoa.
A Espanha tem um lance com amêndoas. Aqui se cultiva mais de uma centena de variedades. Pra doce é popular a marcona. O país é o terceiro maior produtor mundial, atrás de Austrália e Califórnia. É amêndoa a dar co’ pau. Natural que usem “a saco” (= muito, profusamente) em doces e em pratos como o ajoblanco, aka gaz(s)pacho branco, sopa fria original da região de Málaga.
Em zonas onde há produção de olivas, também se aproveitam as mesmas máquinas sacudidoras (!) para a colheita de amêndoas. Migrar de uma produção a outra é algo que tem atraído mais e mais produtores locais.
Como a oliveira, a amendoeira pode chegar a viver um século ou mais. E, quando o “almendro” dá flor, é bonito paka. Parecem as cerejeiras-sakuras lá de casa, na distante y saudosa Grande São Paulus.
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Junto com o frio do outono español, a amêndoa emerge em todas partes, brotando em gôndolas e ilhas glicósicas de todo santo y não-santo supermercado.
Por exemplo, os supracitados turrones. Numa mesa de Natal española pode até faltar panetone (que aqui também se come, privilegiando-se as receitas não-industrializadas de “pastelerías” ou “obradores”), mas turrón, nem pensar.
São tantos tipos quanto cores del arco-íris. Alguns levam caramelo, outros, ovos, chocolate, canela, limão; mas todos, absolutamente todos que se prezem, contêm amêndoas amêndoas amêndoas.
((Por sinal, acho que se você falar amêndoas amêndoas amêndoas umas 15 vezes olhando pro espelho segurando uma vela alguma coisa mágica deve acontecer))
Não satisfeitos, os espanhóis também inventaram polvorones, bombons de amêndoas igualmente ubíquos nessa época do ano. Parecem uma paçoca gordinha bolotuda. Têm sua graça calórica, desde que com um líquido potável à mão, evidentemente. Mesma coisa pros “mantecados”, que sempre levam banha de porco e, em algumas variedades, amêndoas amêndoas amêndoas.
Pra completar o domínio almendrístico, nesta época além do mais se come muito marzipan, aqui chamado de mazapán, em suas muitas versões locais. Na Catalunha e em outros lugares da Espanha, por exemplo, é popular o panellet, coberto de pinhões. Os locais comem o dito no dia-de-todos-os-santos, junto com as castanhas assadas e os “boniatos” (batata-doce).
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Fato número 1 sobre tais doces de amêndoas: em sua maioria são simples, simplérrrimos. O torrone clássico ou “turrón de Alicante” é possivelmente o mais parecido com o que se vende aí no Brazel. Leva amêndoas inteiras tostadas, clara de ovo e mel. Um quebra-queixo do caráleo.
Outra variedade muy conhecida é o turrón de Jijona, que leva o nome de onde tradicionalmente é feito, um pueblecito famoso de Alicante. Parece uma paçoca cremosa, feita à base de uma mistura homogênea de amêndoas moídas, mel e clara de ovo.
Um de meus preferidos é o de gema queimada –o equivalente em barra da famosa “crema catalana”, versão catalã do creme brûlée (embora eu esteja provavelmente ferindo orgulhos ao fazer essa comparação, ó vida).
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Minha mãe quando era xovem perdeu dente pra uma rapadura. Espero não repetir a ancestralidade com um turrón.
Fico pensando nos seres humanos mais velhos: imagino que terão que se decantar por versões mais macias. Apesar de que suas dentaduras provavelmente são mais fortes que meus dentes.
Na casa do sogrón, um Pai de Família estilo paternal-maternal-sanguíneo, desses que cozinham pra todo mundo, te cumprimentam com um tapaço nas costas e vão botando vinho na tua taça até cê dizer xjxxxjjjá tá bxxbom graxiaaass, é ele quem pilota os torrones de sobremesa, com o café (e maixx viñoou), sobre uma sólida e bem vivida tábua de madeira.
Pilotar os tabletes de torrones é absolutamente necessário, especialmente os duros. Ele pega a faca afiada: não pra cortar. Pra marretar com o cabo.
Comemos os (des)troços. Vestígios gamaglobulinos meteóricos de civilizações extraterrenas. De amêndoas amêndoas amêndoas. Me sinto em Saturno por um momento, entre anéis e pedras flutuantes do Chapolin. A concentração etílica suavemente me conduz à tentação de fazer um comentário maroto em voz alta, mas meu restinho de sobriedade e um tanto de overdose de açúcar me detêm, e eu estendo a mão para mais um trocinho de meteorito. Não pense nas calorias, Susana, que é (quase) Natal, apesar de tudo.
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