O voo das pombas, ou: feliz 2042

Barcelona – Dia #283 – Quinta, 24 de dezembro. Cena: “Ouve esse silêncio”, ele diz. “É Natal!”

Segundona braba de eflúvios natalinos. Eis que me encontro no supermercado pensando se compro aquele kombucha de raspberry pra me sentir saudável com estilê quando avisto um casal de pombas ciscando tranquilamente entre uns pacotes de farinha bio, nozes bio, bio-bio.

Decido lançar um grito de alarme, que sai meio assim: “POMBAAAAS! Eiii, alguéeeeem! Tem POMBAS no corredor de produtos orgânicooooo-ooowws!”.

Impressionante. É hora do rush, mas ninguém nem tchum. Apenas as duas supracitadas meliantes, assustadas com minha ceninha humanoide, voam, alcançam as luzes ramificadas pelo imenso teto metálico do recinto, fazem um bailinho bonito no ar e pousam novamente entre os itens bio de sua preferência.

Não estou na roça. It’s Barcelona e este é um dos maiores supermercados da cidade (Carrefinhour, you know –daqueles que vendem sushi, bicicleta e jamones de Natal).

(((O que me faz lembrar de Javier Bardem cortando jamón sobre o capô do carro em “Jamón, Jamón”:)))

 

Olho à volta. Ninguém parece se preocupar com as pombas, ninguém dá mostras de haver visto as ditas. Fascinante.

Fico lá segurando o kombucha por um instante enquanto famílias, casais, jovens, velhos, aliens e titanoboas circulam ao meu redor com expressões compenetradíssimas, os braços e carrinhos cheios de itens natalinos e, talvez, uma promoção de 3×2 meias de presente pra alguém.

Cantarolo baixinho: el tiempo não paaa-a-a-ara…

 

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Esta semana, o que já era duro piorou. Os casos de Covid estão crescendo, todo mundo nazoropa tá com medo dos britânicos e é quase Natal. Vaya mistura explosiva de contradesejos.

De última hora, na quinta (17), o governo decidiu reduzir ainda mais o horário de funcionamento dos bares e restaurantes.

Até então, os estabelecimentos locais já estavam estertorando à base de 30% da lotação máxima, mesa de até 4 pessoas (ok, falô) e toque de recolher às 22h. Desde esta segunda (21), passaram a só poder abrir 4 horas ao dia, pela manhã e pro almoço.

Com isso, todas as reservas de ceias de Natal e Ano Novo foram repentinamente canceladas. Barcelona é terra de muitos negócios familiares. Produtos caros e especiais estão perecendo nas geladeiras, e os donos dos bares e restaurantes têm saído às ruas para protestar. Quem paga a conta? Quem ajuda? O que virá?

E não para por aí. Agora mesmo, não podemos deixar a comarca, a cidade, o estado de residência, a não ser por motivos justificáveis. E pensar em ir mais além da fronteira nacional é embarcar num phD coronavirístico em que o currículo mínimo pode mudar todos.os.dias.

Eu em verdade vos digo: fico em casa o máximo possível. Uso a máscara masterblaster pra pegar condução. E evito ao máximo: faço tudo de bike.

Meu maior pecado em 2020 foi ter pego um voo pra Ibiza no verão, durante o breve idílio pós-primeira onda da pandemia. O avião tava vazio, Ibiza (pasme) tava vazia. Foi legal, foi tenso.

Quando eu comecei a escrever o Diário de Confinamento na Folha, em março, há exatos 283 dias, creio que todos pensávamos que a coisa ia durar alguns meses.

E, quando terminei os 100 dias de textos, me despedi contente: tamo quase. Isso foi há exatos 183 dias. Agora, segundo algumas manchetes, estaríamos nos preparando para uma terceira onda. A vacina começa a ser distribuída na Espanha nas últimas horas de 2020, no dia 27 de dezembro, priorizando profissionais de saúde e grupos de risco. Vamuvê.

Mas é Natal, gente. E a fofolização pollyanística-positivista do cotidiano está por toda parte, como um manifesto contrário ao desânimo. Vamos então vestir nossos melhores pijamas e clicar no convite do zoom de família com uma sidra de Astúrias na mão. Celebremus.

 

As vitrines festivas aqui seguem coalhadas da coronamoda de homewear, comfortwear, vamotodomundoviverdepijamawear. Compremos roupas fofiñas, pois. Nunca o presente clássico da vó fez tanto sentido. Celebremus, celebremus.

Fotos de Instagram mostram gente rrrrica/enfeitada/rosada em casa, com cara de gozo ou felicidade margarina, entre móveis novos da Ikea e paredes caiadas de branco pra dar aquele astral no claustro. 2020 nas redes sociais tem tanto filtro e producción que me olho no espelho e digo: joder, é só isso? Quedê os corazones flutuando sobre minha cabeça?

Como se todos fôssemos profissionais liberais felizes da vida com empregos bem pagos e firmefortes durante a pandemia, vivendo em castelos de mostruário da Casa Vogue, sem deprê, sem histeria íntima, sem saco cheio porque, né, POSITIVIDADE, GENTE.

As propagandas de peru, jamón, celular, panetone, caldo ki-norr mostram famílias reunidas, aconchegadas entre vapores de panelas e pratos quentinhos. Sim, eu sou véia e algo queixosa, mas ainda vejo manteiga no pão e acho que a vida é pra sempre.

Javier Bardem no filme “Jamón, Jamón”, de Bigas Luna, entre jamones jamones, só porque sí (Divulgação)

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É 2042. Ano da 1347589701a cepa do vírus, aquele que há pouco mais de duas décadas começou como uma coceirinha.

E é Natal. Sempre haverá Natal. Este ano, sem peru, que os perus se extinguiram em 2025 por conta da variação 12382780 do vírus. Agora a onda é comer mini codornizes GMO, que podem ser criadas em casa.

Voltando às pombas. Naquele longínquo dezembro de 2020, eu deveria ter gritado: “FOGOO!!”. Ou: “VAI FICAR TUDO BEM, GENTE!”

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