Sobre o ano que nos espera e algumas tradições escatológicas

A calefação está ligada, mas meus dedovskis estão congelados enquanto escrevo.

Eis então que é 2021, o Ano Depois Daquele Que Não Terminou. Ou que não existiu, não vivimos, um ano perdido –como escuto muita gente dizer. Ainda estou vivendo aqueles dias iniciais troca-turno, escrevendo 2020 no automático, meus dedovskis congelados ainda viciados na simétrica combinação de números doiszerodoiszero.

Na Catalunha e na Espanha, as festas de fim de ano terminaram há apenas dois dias. O Día de Reyes, 6 de janeiro, é o verdadeiro Natal local, quando todos trocam presentes. É o epílogo conclusivo depois da noite de 24 de dezembro, quando as crianças descem o cacete no caga-tío ou “tió de Nadal”, um tronco com gorrinho vermelho alimentado com biscoitinhos e água desde princípios de dezembro, pra que ele cague doces e ‘regalos’.

Caga tío revisited (Reprodução / Casa da Sogra)

É nessas poucas oportunidades de confraternização familiar em tempos covídicos, ainda que em petit comitê, que a gente ouve histórias de família. Adoro.

Como a minha sogra, médica, que, entre turrones e vinhos, nos contou como na juventude escondeu em sua casa a vietnamita (como se chamavam as impressoras de folhetos) e cartazes revolucionários de uma amiga sua, comunista, perseguida pela polícia franquista.

Mas voltando ao tema da cagada.

Quando eu cheguei aqui, há uns muitos anos, a escatologia festiva catalã foi um dos primeiros, hmmm, detalhes culturais que me chamaram a atenção.

Naquele longínquo ano de 2012, a Espanha ainda respirava com dificuldade por conta da crise financeira (e no entanto talvez vivesse relativamente feliz sem saber que na era sci-fi de 2020 rolaria uma temporada à la 12 Macacos do Terry Gilliam –ay, vida).

No Natal daquele ano, pousei ozóio nos primeiros caganers da minha vida.

Foi na famosa feira de Natal de Santa Lucía, diante da catedral de Barcelona. Avistei muitas banquinhas com bonequinhos, todos alinhados como um exército, cada um cagando uma compacta e vistosa merda marrom. Eram políticos, artistas, personagens históricos. Tinha até um Prince que quase comprei, que eu amo o Prince até cagando.

Detalhe: a tradição manda esconder o caganer no presépio de Natal. O personagem é símbolo de fertilidade e sorte. Esses espanholes são loucos, me gusta!!

No recém-finado ano de vintevinte, alguns dos caganers mais populares foram os do rei emérito Juan Carlos I, metido até o talo real em enrascadas e escândalos mil, e o sanitarista Fernando Simón, garoto-propaganda e porta-voz oficial da coronacrise española. Com máscaras.

Frida Kahlo fazendo o que todos fazemos. Infelizmente, não encontrei o Bolsillonaro (Reprodução: caganer.com)

Mas acabou a festa, apagaram as luzes natalinas e eis que o vintevinte-e-um começa na Espanha com mais e mais restrições, um reflexo do aumento ululante de casos de Covid.

Desde o dia 7 de janeiro, passamos de um confinamento por regiões para um municipal. Só se pode sair com justificativazíssima. Idem para entrar e sair da Catalunha. Os bares e restaurantes continuam abertos somente até as 15h30 e com muitas limitações. E a gente vai continuar pelo menos até fevereiro com o toque de recolher entre 22h e 6h.

Vero, começaram a vacinar o povo no dia 27 de dezembro. Houve um problema inicial de logística com a vacina da Pfizer, que tem que ser transportada a -80ºC, mas agora vai que vai. Os primeiros são os grupos de risco e os profissionais de saúde.

Sí, a festa acabou e, ainda por cima, está chegando um frio que vai bater recordes. Alguns lugares mais frios da Espanha já estão caminhando para a marca de 40 graus negativos. O alerta vermelho está em toda parte.

Se as previsões estão corretas, em três dias acumularemos mais neve na Espanha que em países do norte da Europa. Espera-se neve em Barcelona, Madri e alhures. É o encontro da massa mediterrânea Filomena, nome da minha vó, com a massa fria do continente. Daí meus dediños congelados.

Sobre os caganers: encontrei Frida Kahlo, Angela Merkel, Chewbacca, Trump, rainha Elizabeth II e o Joe Biden fazendo umas boas cagadas. Mas não o Bolsonaro, infelizmente. Nem o Neymar, que havia sido um caganer estrela em 2013, ano de sua contratação pelo Barça. Vou escrever pros caganer makers, isso não pode ser. Feliz doismilevinteeum.

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