Morte por Covid: o epitáfio do artista
Não conheci Guillermo.
Mas… sim. Seu rosto, presença póstuma em relatos de amigos por todas as redes sociais esta semana, é totalmente familiar.
Seguramente nos cruzamos em algum bar do bairro histórico de Tarragona, no corazón do assentamento romano com o Mediterrâneo de fundo, o mesmo que teria contemplado o imperador Augusto há dois mil anos. Talvez a gente tenha gargalhado juntos.
Coisas daquele canto do mundo, onde as narrativas podem ser tão líquidas.
Guillermo era artista. De Málaga. Era querido. Fazia figuras, esculpia colos e mundos. Foi pintor, escultor, poeta visual, escritor. Criou música sensorial, livros-objeto, cartazes. Inventou o espirocanto cuadrangular “das tetas” de sua “fantasía”, para os poetas aflitos diante da página em branco. Eu o avistei mais de uma vez (lembro? invento?) transitando por uma colossal porta de madeira cravada nos muros milenares ao lado da catedral da cidade, onde tinha um ateliê.
Uma pessoa, vamos, normalita.
Assim o descreveu Maravilla, uma amiga também artista: “criador genial e personagem surrealista, contraditório e peripatético, que passeou seu olhar de peculiar humor por esse ecossistema artístico de Tarragona tão pouco favorável para sua fauna”.
Maravilla é outro complexo encanto. Sempre lembro dela dançando. Ela bailou ao som dos meus concertos entre circos romanos e cachos de primaveras, que cá se conhecem como buganvílias, e eu, eu bailei com Maravilla mais de uma vez, que Maravilla é bailarina de sorriso perene, e sempre que a encontro tenho um prazer enorme em dizer “Maraviiiiiilla!” como se evocasse pássaros do paraíso.
Como Guillermo, ela também cria mundos e fábulas com as mãos e o corazón, provavelmente há mais de meio século, ou desde tempos medievais, quem sabe? Que Maravilla tem algo de druídico.
Seu ateliê de cerâmica, cheio de figuras supraterrenas, de dragões e olhos hóricos, numa esquina do “casco antiguo” com vistas pro mar, foi das primeiras belezas que me cativaram quando, oito anos atrás, aterrissei em Tarragona, meu primeiro e amadíssimo lar español.
Tarraco para os antigos, cidade mágica de personagens nenúfares. Poderia jurar que brotam das paredes milenares, com inscrições de outros tempos, e que se desmaterializam no lusco-fusco de vielas medievais, dessas com paralelepípedos quase macios de tão pisados, jornada após jornada, século após século.
O que é o coronavírus pra essas ruas, essas casas com ângulos dinâmicos e pórticos irregulares, esse ir-e-vir de sol y luna, imutável-impermanente?
Nada, não interessa. As rochas cinzeladas e tetrificadas através dos tempos –atualmente, caiadas do pantone terracota-bege que faz parte do plano artístico-urbanístico das fachadas históricas da cidade –são impenetráveis aos vírus e aos clamores de tropas, resistem a intempéries, ao desgaste e aos lamentos, perenemente massageadas-ressuscitadas por mãos de humanos, esses serezinhos transitórios que insistem em pensar que são pra-sempre.
Não como Guillermo Marín Mesa, que morreu este último domingo (17) de Covid. No também histórico hospital de Santa Tecla, padroeira da cidade, onde alguma vez eu entrei de urgências por um “àpat” (comida) estragado.
“Viver”, escreveu Maravilla a alguma amiga que apresentou condolências, “é ir amansando as penas que vamos colecionando”.
“Me custa modelar frases nestes momentos”, disse, ao recordar o companheiro de tertúlias y caminhos. “Deixarei o epitáfio que ele tinha já redigido: ´Aqui descansam minhas circunstâncias; yo me voy*”.
* eu me vou. Partiu. Adeu**
** en català
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