‘Isso não acabou’
Saio de bicicleta. As ruas e praças do meu bairro em Barcelona estão cheias, pululando de gente.
É meio-dia, hora da compra no mercadão, do dedim de prosa e de recolher as crianças no colégio.
A colisão de microeventos vibra em 440 Hz e, de repente, percebo num highlight retinístico uma Grande Verdade: a rua do meio-dia pertence aos idosos.
Neste dia de sol invernal, são principalmente eles que ocupam os inúmeros bancos do caminho.
São eles, os “iaios”, que empurram delicadamente seus carrinhos de compra, se saúdam, alguns com chapéu ou boina, elegantes, aprumados.
São eles, os “avis” (avós em catalão), gestos vagarosos e dengosos, que recolhem os netos na porta da escola. Os idosos, aqui, são parte ativa e importante da estrutura familiar, é super comum que eles cuidem dos pequenos. Bunito de ver.
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Nesse dia de sol invernal em Barcelona, todos levamos máscara, com muito poucas exceções de uns pendejos boludos cabrones, que siempre los hay.
“Susanaaaaa!” Sou parada por uma garota mascarada. Eu já era ruim de fisionomia, sou pior ainda de olhonomia. “Como você me reconheceu?!” “Aaahh, seu olhar é inconfundível”. Brigada, vou tomar como elogio. Me despeço sem ideia de quem era, as duas com pressa de quinta-feira.
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Essa pululância social nas ruas de Barcelona pode dar a errônea impressão de que o rei Momo tá solto e o Carnaval tá rolando na terrinha do monseñor.
Nonono.
Aqui, como em Portugal e outros alhures, cancelaram tudo.
Carnaval em Barcelona não é tão expressivo quanto a festa de Santa Eulàlia, padroeira da cidade, na mesma época.
Este ano, em lugar de alguns dos eventos de rua, temos sardanas (danças típicas) transmitidas por iutubi, passeios virtuais, exposição de fantasias e bonecos de anos passados e retrospectiva em vídeo dos castellers e correfocs (corrida de fogos, um espetáculo bruxístico pirotécnico medievalesco que é das cousas que mais amo nesta terra). Enfim, essas coisas não-sensoriais digitalizadas meio boring.
Eu entendo. É o que temos.
Os contágios por coronavírus na Espanha vêm diminuindo progressivamente há duas semanas. Temos agora mesmo uma taxa de pouco menos de 500 casos por 100 mil habitantes, contra os 886 por 100 mil de finais de janeiro.
Mas isso não significa, pelo menos até março ou abril, um relaxamento das restrições.
Em coletiva de imprensa, o epidemiologista e representante do governo Fernando Simón avisou, no seu já clássico estilo vago-precavido: “temos que ter muito claro que isso não acabou; ainda não temos vacinação suficiente ou taxas de transmissão suficientemente baixas para começar a relaxar mais rápido do que podemos”.
A cautela oficialesca é previsível, considerando a árdua lição pós-verão do ano passado, quando a baixada de guarda levou rapidamente a uma segunda onda, e depois a uma terceira, e, agora, uma quarta, em que quase metade dos leitos de UTI do país se encontram ocupados por pacientes críticos de Covid.
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Pra completar a cereza da tarta de queso, domingo (14) não só é San Valentín (Dia dos Namorados local); também é domingo de eleições na Catalunha.
Este ano, o debate independentista deixou seus matizes usuais para formar um grande bloco cujo único mote é: “todos contra Illa”.
Salvador Illa, ex-ministro da Saúde, deixou o cargo há pouco menos de um mês para entrar na disputa como candidato local dos socialistas.
Catalão, nativo e ex-prefeito de La Roca del Vallès, um pueblecito de montanha de 10 mil habitantes, Illa conduziu toda a pandemia de 2020 em meio a uma saraivada de críticas sobre políticas de vacinação, medidas restritivas e (falta de) apoios setoriais durante a crise.
Apoiado pelo premiê espanhol Pedro Sánchez (PSOE), Illa-candidato tem um trabalho ingrato pela frente. Isolado, sem o amparo dos partidos independentistas locais, todos em pé de guerra contra o discurso unionista dos socialistas, só lhe resta cultivar ‘nervios’ de aço: chegar ao poder seria apenas o começo das provações.
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Quanto aos idosos do princípio, lembrei de uma conversa que tive recentemente com uma amiga inglesa que também vive aqui.
“Os idosos aqui são mais felizes”, disse. “Tomam sol, participam da vida social. Vejo eles em toda parte; não é como na Inglaterra, onde eles estão todos ‘entocados'”. Lá, ela comenta, falta solidariedade. Até o caixa de supermercado da cidadezinha remota, quem sabe a última oportunidade de uma breve interação social, já virou máquina…
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