Ovos, latas, pedras

“Marzo ventoso, abril lluvioso”, recita meu sogro canário, enquanto contemplamos o entardecer dourado em uma colina perto de Barcelona.

E põe vento nisso. Os vendavais pode ser especialmente cruéis nas Ilhas Canárias.

Lá, no meio do caminho entre Europa e o continente africano, não só venta paka nessa época como as volutas de ar trazem, oraora, partes do Saara consigo.

É a calima, aka tempestade de areia do deserto, fenômeno de fim de inverno no hemisfério norte que deixa carros, janelas e narizes empoeirados, não só no sul da Europa (aqui em Barcelona também tem), mas, potencialmente, em lonjuras como o Mar do Norte e até, dizem, Cuba.

A mais potente calima das últimas duas décadas aconteceu em fevereiro passado, justo antes de adentrarmos essa Realidade Virótica em que Ora Vivemos.

O famoso Carnaval de Tenerife, talvez o mais brasileiro dos carnavais europeus, aconteceu então sob uma chuva de areia.

Foliões irredutíveis em Tenerife durante a calima, em fevereiro de 2020 (Reprodução)

Em princípios de fevereiro deste ano, o pó marrom coloriu a neve dos Pirineus. De pirlimpimpim do deserto, óia que chique.

***

Fui ao centro resolver umas cousas hoje e aproveitei pra checar os estragos deixados pelos protestos pela libertação do rapper Pablo Hasél.

Marcadas por episódios de violência, vandalismo e confrontos com a polícia, as manifestações ganharam as manchetes internacionais na última semana.

No centro de Barcelona, várias fachadas se encontram pichadas ou destruídas.

Remendadas com tapumes ou papelão, as vitrines do elegante Passeig de Gràcia dão um ar desolador ao calçadão notório da cidade –em tempos a.C. (antes do Coronavírus), coalhado de turistas e roupiñas assaz caras.

Fachada da Tommy Hilfiger, fevereiro de 2021 (Susana Bragatto / Folhapress)
Edifício da Apple Store na Praça Catalunha, fevereiro de 2021. A fachada de vidro foi toda coberta por madeira e placas de metal (Susana Bragatto / Folhapress)
Fachada da loja de fast-fashion Primark na Praça Catalunha, fevereiro de 2021 (Susana Bragatto / Folhapress)

A Espanha ainda vive muitas restrições à abertura comercial, por conta da periclitante coronasituação espanhola: lojas de mais de 400 metros quadrados não podem abrir, e as demais podem funcionar com lotação limitada de segunda a sexta. Nos fins de semana, tudo fechado.

Mas, hoje, até alguns dos estabelecimentos que podem abrir deliberadamente optaram por baixar as persianas. O setor cobra do governo uma compensação pelos danos.

A dona de uma tabacaria invadida no coração turístico de Barcelona, na Plaza Catalunya, afirmou a um jornal local: os ladrões não são os manifestantes.

Claro. Pra que um manifestante quer 7 mil euros em tabaco?

Ou apedrejar a fachada do Palau de la Música, um dos monumentos culturais da cidade?

Entrada da Bolsa de Barcelona após os protestos pró-Pablo Hasél, fevereiro de 2021 (Susana Bragatto / Folhapress)

A regra geral dos últimos dias: protestos em sua maioria pacíficos até certa hora da noite. Quando se aproxima o toque de recolher das 22h, os mais assanhados começam a dar asas à piromania.

A matéria-prima preferida para as barricadas contra a polícia são os contêineres de lixo. Mas a piromoda é democrática: pode abranger também motos e carros. Queimados no asfalto, derretem também o pavimento.

Alguns moradores de edifícios vizinhos tentam às vezes participar com um débil balde de água. Tarde demais. Avança a polícia com seus porretes e começa a lambança. Os sacanas de plantão entram em lojas, mercadinhos, o que estiver dando sopa, e roubam o que houver pela frente.

Uma amiga holandesa tirou uma foto fantasticamente significativa. Nem preciso dos meus livros de Semiótica da universidade pra me arrepiar com a fartura de sentidos. VEJAM ESSA GENTE TIRANDO SELFIE DIANTE DA FOGUEIRINHA NO ASFALTO, MEO DEOS!

Pessoas tiram selfies diante de contêineres de lixo incendiados durante protesto pela libertação de Pablo Hasél (Kay Mulder / Folhapress)
Manifestante tira foto de contêiner de lixo incendiado durante protestos pela liberdade de expressão em Barcelona, fevereiro de 2021. Parece que todo mundo quer um #teco compartilhável da revolução (Nacho Doce/Reuters)

Ruas em chamas, bancos, delegacias e até fachadas de jornais depredadas (como a do jornal catalão El Periódico, que amanheceu um dia desses pichada e detonada). Lojas de grife tipo Tommy Hilfiger, Diesel e Nike saqueadas. Ovo. Latas. Pedras. Porrada de um lado e de outro, como se a vida fosse um dele(i)tável videogame.

Os protestos vêm acontecendo ininterruptamente há dez dias em diversas partes da Catalunha e da Espanha.

Entre os detidos até o momento, um terço tem antecedentes criminais — entre todos, acumulam mais de 150 delitos prévios. Também um terço dos detidos são menores de idade, e a maioria não passa dos 25 anos.

Os gastos públicos com a zorra toda aqui em Barcelona podem chegar a 1 milhão de euros (aproximadamente R$  6,7 milhões). Thanks to piromaníacos queimadores de asfalto e contêineres de lixo.

Já os prejuízos estimados pelo setor comercial estão na casa de 750 mil euros (R$ 5 milhões).

Até que ponto a revolta contra o sistema tem que botar pra quebrar e incendiar?

***

A calima, também conhecida como “polvo (pó) sahariano”, está dando uma trégua depois de uma semana do balakobaco.

Em algumas regiões das Ilhas Canárias, a concentração de pó chegou a superar os 600 microgramas por metro cúbico de determinadas partículas maiores consideradas nocivas para a saúde –uma cifra muito superior aos 50 microgramas considerados “seguros” pela Organização Mundial da Saúde.

Nos próximos dias, preveem os serviços meteorológicos, virá uma nova onda de tempestades de areia importadas do deserto, que poderá atingir até o Reino Unido e França.

Embora a calima crie mil problemas para os humanos, como cancelamento de voos e muita alergia e incômodo (além da sujeiraiaiaiaihada por toda parte), tem bicho que curte: a fauna marinha. Os minerais, óxidos de ferro e argilas que transporta a calima são nutritivos pra essa população. La vie, la vie en marron….

(Siga o Normalitas no Instagram)