O círculo vicioso da ansiedade covídica

Nos encontramos oversaturados por um loop vicioso de ansiedade, qual patinhos perdidos em uma caça noturna

No centro de saúde perto de casa, em Barcelona, esperam pela vacina. Esta semana não chegou. A campanha de vacinação parou.

Quem me conta é Lola, enfermeira, enquanto me aplica uma injeção —não anti-Covid –acalmando minha respiração algo ansiosa com palabritas dulces. Gente, cês num viram o tamanho da agulha. Zoladex no gordinho da barriga é uma pancada.

“Solta o ar, Susana… tudo pra fora. Libera tudo”. O andar está vazio, são 11 horas de uma sexta-feira nublada. Sim, Lola, sim. Bom conselho. Em geral, tô nem aí pra agulha monstro. Mas hoje estou estressada. Não estamos todos?

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Caminhando de volta pra casa, passo por uma pracinha do bairro. Contabilizo duas mães com bebês de colo e outros dois núcleos familiares curtindo o balancín.

Sento no banco, busco o horizonte entre o mar de edifícios e linhas de eletricidade riscando o céu.

Lembro de uma entrevista recente com um neurocientista da universidade de Stanford, Andrew Huberman, especializado em visão e seus diversos efeitos sistêmicos.

Segundo ele, os seres humanos temos dois tipos de visão: o modo retrato/focal, em que estamos atentos ao detalhe, geralmente em primeiro plano, e o modo “panorâmico” –contemplar o horizonte. Ver o nascer do sol. Olhar o mar.

Cê adivinhou: o problema é que estamos enfiados demais no primeiro modo. Mais ainda com a pandemia.

Os olhos, conectadíssimos ao sistema nervoso, passam mensagens distintas ao cérebro conforme o modo de visão. Você acertou de novo: o modo portrait-olhando-feed-de-Instagram-por-3-horas comunica ao cérebro e ao corpo um crescente estado de agitação, ao contrário do modo panorâmico ou “optic flow”, que relaxa e amplia a visão periférica.

Cartaz em metrô de Barcelona divulga iniciativa do governo catalão em apoio à “saúde mental” do cidadão, sob o mote: “Eu tampouco estou bem; e você, como está?” (Susana Bragatto / Folhapress)

Ao se topar com um “input” perturbador, como, ora ora, as notícias preocupantes e acaso absurdas dos nossos dias, a respiração se agita, o ritmo cardíaco se altera e os olhos entram em modo-lince: foco total. Segue-se um banho de neurotransmissores que te preparam para a-tu-ar.

O estresse, portanto, seria originalmente um mecanismo evolutivo para despertar o Homo Sabidus para a ação. A luta contra o tigre. Etc. A pandemia, ao restringir nossos movimentos, estaria promovendo o estresse coletivo a uma reiteração borderline olímpica quasi-patológica. Estamos oversaturados por um loop vicioso de ansiedade, qual patinhos perdidos em uma caça noturna.

Do meu banquinho no espaço-tempo daquela praça urbana, faço um esforço e encontro um pedaço impoluto de céu. Dura dois segundos e já tô respondendo mensagem de zapzap. Não me julguem.

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A pandemia segue complicada em vários países da Europa. O que hoje é, amanhã não mais. Pra ser sincera, às vezes me perco nas contas: não sei mais em que onda estamos.

Na Espanha, algumas regiões se recuperam de situações críticas. Outras, como a Catalunha, avançam seu projeto de reabertura com cautela, vigiando a (lenta) estabilização dos números pós-farra-natalina.

Em Barcelona, a situação das UTIs ainda requer atenção. O problema, como disse outro dia o gerente do hospital Vall d’Hebron, um dos principais da cidade, é que, se vier uma quarta onda, o sistema de saúde, ao contrário das outras três grandes ondas anteriores, não vai aguentar o tranco.

Com isso, sofrem não só os afetados pelo vírus, mas também os que padecem(os) outras enfermidades. Eu acompanho um câncer em remissão. Dou um jeito de me virar entre consultas no sistema público e privado, porque tenho essa sorte.

Mas os dados são preocupantes. Já é sabido que a pandemia vem gerando contextos de subdiagnósticos, seja pela falta de infraestrutura hospitalar e clínica ou pelo receio da população.

Quando se trata de saúde pública, o problema, portanto, não é só o coronavírus. É, ora, a saúde pública. Começo a estressar-me again.

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–Lola, e afinal: quem já pegou o vírus pode pegar de novo ou já tá imunizado?, pergunto, serelepe, levantando-me da maca. Faço essa perguntinha capciosa a “todo dios”.

A senhora catalana de cabelos anelados me observa detrás da escrivaninha entre potes de álcool em gel. A janela detrás de si borrifa em sua silhueta auras de luz. Santíssima Lola, com seus óculos novelescos de aro vermelho. Sinto invadir-me por uma onda de gratidão. Sofro de Síndrome da Idolatria ao Profissional de Saúde –outro (este, bendito) efeito covidiano.

–Hoje mesmo… mais ou menos –ri, finalmente. –Muda o tempo todo. Até outro dia, a orientação era dar vacina aos que haviam passado a Covid há mais de 6 meses. Agora, aos que passaram há 3 meses. Só uma dose. Amanhã…

Lembrei de uma conversa recente com um amigo médico, que me contou ter sofrido uns efeitos meio intensos da primeira dose de sua vacina –ele teve Covid há meses. Lola e eu intercambiamos votos de que a benedeta vacinação nos libere em breve pra tomar Aquele Cafezinho. E nos despedimos com uma cotovelada amistosa.

Até a próxima injeção.

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