Toque de recolher na Espanha completa seis meses

Há exatamente um ano, no dia 15 de março de 2020, começava um longo período de confinamento na Espanha.

Já o toque de recolher na España coronada completa meio ano de vida este mês. E segue firme y fuerte –até a próxima deliberação quinzenal do governo, em função do número de contágios e da ocupação de hospitais.

Valendo das 22h às 6h da manhã (ou das 23h às 6, dependendo da província), o “toque de queda”, como se chama aqui, nos ensinou a fazer nossas vidas mais cedo, talvez mais frugais, regradas.

No começo foi difícil. Depois, como tudo na vida, nos ajustamos.

E tem punição pros incautos. Na Catalunha, quem é pego dando sopa nos horários proibidos pode ganhar uma multiña módica de 300 a 6.000 euros (aka R$ 2.000 a R$ 40 mil), dependendo da gravidade e dos implicados.

Excelente argumento pra gente obedecer bunitinho, claro.

Nos últimos seis meses, nos habituamos a adiantar o fim do dia. O comércio fecha cedo, os passeios terminam cedo, os encontros são limitados. Agora mesmo, e pelo menos pelas próximas duas semanas, bares e restaurantes fecham às 17h e a partir daí só estão habilitados a trabalhar com delivery.

Já me habituei ao silêncio da madrugada de Barcelona Recolhida. Que maravilha, penso –não nego. O ruído se singularizou: na calada da noche, só o barulho dos caminhões de lixo, a ocasional sirene e o hiss hiss das bicicletas (é, agora dá pra escutar) de Glovo e que-tais, permitidas até às 23h.

Também me acostumei às implacáveis y necessárias negociações para encontros. Combinar um ocasional vermú (nome nacional para o aperitivo do meio-dia, recentemente readmitido no nosso cotidiano) se transformou em um ato de cortar cabeças.

“Como assim, cê num chamou fulano?” “Não dava, já éramos seis”.

Seis é o número máximo de encontrantes permitidos num grupo, numa mesa, num almoço de família. Pense só nos litros de desafogo de mágoas, questionamentos sobre graus de amizade blalbabl.

((Num posso evitar: sempre que ouço essa ululante frase do éramos-seis, lembro da Maria José Dupré e sua obra fudigoonda homônima que me presenteou com uma de minhas primeiras deprês existenciais mirins. Pelo menos tinha a coleção cachorrinho samba pra me salvar))

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Em janeiro, 15,5 mil pessoas foram multadas só na Catalunha por furar o toque de recolher. Mencionei obediência e silêncio? Mais ou menos. Toda História acumula seus pedregúio.

Recentemente, por exemplo, a polícia enquadrou sete festas ilegais em hotéis de Barcelona. Estratégia simples: as pessoas alugam quartos e fazem um uniforrobodó indoors. Os hotéis, corresponsáveis por manter a ordem, levam multa junto com os ladinos hóspedes. Agora, o governo está fazendo campanha de conscientização junto ao setor hoteleiro.

A sanha de festa às vezes extravasa pra rua: em fevereiro, foi denunciado um “botellón” com uma centena de xovens em El Prat, na Grande Barcelona. A clássica “prática” — comprar árco no mercado e ir pra rua encher a cara cos colega –teve seu auge de popularidade covídica em meados do ano passado, quando todos os bares e restaurantes estavam absolutamente fechados.

Quanto a festas ilegais privadas, o score da pandemia registra umas muitas. Lá no princípio da pandemia, há um ano, teve até orgia num apartamento do bairro chiquê iluminê do Eixample.

E tem os criativos. Outro dia, um sujeito foi pego fora do horário de circulação permitido e saiu no noticiário. Motivo: pegou emprestada a mochila de um desses serviços de entrega a domicílio pra se disfarçar de entregador-de-quentinhas. Assim, podia passear livremente pela cidade nua, quando todos já estávamos encerrados em casa.

Mais de um haverá pensado: ora, como é que eu não tive essa ideia.

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A gente se acostuma. A fazer exercício com vídeo de iutubi e dançar na sala –saudade de uma baladiña. Mimosas com zoom, pra matar as saudades dos conterrâneos amados. Saudade se sente até de ofertas de trabalho nesta cidade de economia rotundamente baseada no turismo (cousa que é hora de mudar, questionou, justamente, a prefeita Ada Colau em algum momentum recente).

Por outro lado — e o conflito, o conflito –, zero saudades dos turistas internacionais que, timidamente, como se fossem bandidos com fotinho de procura-se em cada poste, começam a reocupar as ruas de Barcelona. O comércio agradece. Quer dizer, os que não fecharam as portas pra sempre.

São tempos complicados, e serão por mais um tempo. Nós por aqui, embora longe da situação cataclísmica do Brasil, ainda caminhamos com muita cautela. Cansados, como vocês. Meus pais, a um oceano de distância, me perguntam: e você, vacina pra quando? Eu não sei. As previsões ainda são vagas. Em breve.

“O que foi a vida em todos esses anos? Sacrifício e devotamento. É como ver uma tarde assim de chuva, pesada de tristezas. Mas não sei lamentar; se fosse preciso recomeçar novamente, novamente faria minha vida a mesma que foi, de sacrifício e devotamento” [Éramos Seis, de Maria José Dupré, 1943]. Ayay, dona Lola…

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