Nossos belos corpos de cada dia
Outro dia, num desses friflannigans casuais pelo buraco negro da internerd, topei com uma capa da revista feminina Cosmopolitan dos anos 1980.
Tava lá, adornando a figura de uma mina de maiô lilás cavadón e topete do picapau: “As estrelas da TV ensinam seus segredos para se manter lindas e magras”.
E: “A forma ideal feminina –como você se compara? (confira nosso gráfico para descobrir)”.
Por todas as deusas! A.Forma.Ideal.Feminina.
Thanks god(ess) que estamos em 2021, O Ano Em Que Podemos Ser Livres Pra Ser O Que Quisermos.
Ou não?
No último ano, o longo confinamento por que passamos nós e, por consequência, nossos corpiños, sem dúvida alimentou a sanha do ser humanus por ver e ser visto na internet. Por se sentir melhor. Tamo/távamos em casa de bôuas (ou de malas) com níveis astronômicos de ansiedade, mesmo. Sozinhos. Carentes. Preocupados. Bora dar scroll numas fotinha pra esquecer os noticiários. Nenon?
Ao longo dos meses, pulularam tik tokers (tik tok, esse bagulho estrela do lockdown) e influencers de redes sociais posando com filtros e biquinhos e traseiros overempinados, ocasionalmente tacando alguma peça de homewear ou um bowl de salada no composê e legendando com algo tipo: “ao natural”, “vamos nos cuidar”, “ser feliz”, essas merdas.
Ao natural my ass, e com muita celulite.
O mundo retocado pseudoespontâneo das redes, evidentemente, pode levar o cidadão ou cidadã, mirim ou não, a se comparar. A virar voyeur de modelo de instagram. Ou, ato seguido, a sentir-se o cocô do cavalo do bandido por não ter 1804791 seguidores e 1074701804189 likes ou a bunda da Kardashian.
Por isso, o projeto Anatomia do Confinamento, da fotógrafa barcelonesa Andrea Ruiz, me chamou a atenção.
Ao longo de 2020, Ruiz juntou autorretratos de 61 mulheres. Realizados em diferentes lares entre França, Argentina e Espanha, coletam corpos, a maioria, desnudos; inteiros ou fragmentados. Sinceros.
Ação traz reação: esse é um dos protestos artísticos que GRAÇAS A LAS DIOSAS têm emergido para se contrapor à corrente elegíaca do PadrãoDeBeleza e da objetificação do corpo feminino. Outro projeto que adoro, de uma dupla de mãe e filha, na linha quesef***vamosernóisaindaquecusteumaslágrimas: @stylelikeu. Etc.
Nos instantâneos reunidos por Ruiz, não há retoque, não há manipulação mais do que o desejo individual de se mostrar sem amarras, sem moldes ou poses pré-fabricadas, sem medo de ser o que se é, sem a intermediação de outro olhar. Com estrias, pelos, “michelínes” (gíria espanhola pra pneuzinho), cicatrizes, barrigão nada encolhido. Ô, coisa difícil não (se) julgar, não?
“Sempre tive a inquietação por mostrar aquilo que não se vê, que escondemos ou que a sociedade invibiliza”, conta a fotógrafa, que também mantém uma conta no Instagram, @mespapaia, dedicada a “compartilhar informação sobre ginecologia autogestionada, menstruação consciente, ativismo feminista e temas relacionados”.
“Durante a quarentena, tinha claro que precisava fazer algo com todas essas mensagens negativas sobre o corpo que chegavam a nós, mulheres –mantenha a forma durante a quarentena, fique ‘guapa’ para quando acabe o confinamento etc”, exemplifica.
A partir daí, propôs o projeto nas redes e começaram a chegar voluntárias, muitas.
As fotos são todas sem rosto e anônimas. Não só para despersonificar as personagens e facilitar sua participação; também para que “qualquer mulher possa se identificar com os corpos e pessoas que veem nas imagens”, diz Ruiz.
Gosto de pensar nos sentimentos embebidos nas imagens. Nestas, eu vejo amor e aceitação. Bora nessa.
A coletânea pode ser vista na web da artista e, até o fim de março, no Espai Jove Casa Sagnier, em Barcelona.
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