‘E na gente que está morrendo, vocês não pensam?’

Historiñas de uma pandemia — parte 8974 de 1835091

Um estrondo no metrô e quase vomito o coração pela boca.

Já se vão 17 anos desde o hecatômbico atentado terrorista ao metrô de Madri, em 2004, quando 191 pessoas morreram, e quase quatro desde o último incidente em Barcelona, quando um jovem dirigindo uma van atropelou dezenas de pessoas numa das avenidas mais movimentadas do centro turístico, matando 14 pessoas.

Por muito tempo, lembro, evitei a Rambla, onde aconteceu o incidente, e aglomerações.

Mas é sexta-feira de abril de 2021, e o vagão da linha vermelha tá cheio de gente. Mascarada. E silenciosa. Desde a pandemia, o espanhol passou a baixar o volume em espaços públicos, conversar menos, ser mais discreto. Milagre.

Me pergunto se sou a única cujo corazón se sobressaltou, pensando em bombas e é-agoras.

Entre os corpos flutuantes do vagão, diviso um cara com uma guitarra. Mais um busker (músico ambulante, em macro-jê) no metrô de Barcelona. Estão voltando à tona, junto com as andorinhas de primavera, que costumam chegar em Barcelona em abril. O kabum/estalo veio do amplificador meio ferrado, meio fudido. Eu simpatizo.

Mas a senhora na pontinha oposta do vagão, não.

Antes que o dito possa dar o primeiro acorde, ela atravessa:

— Que se cale! NÃO.PODE.CANTAR.NO.METRÔ! Não sabe que vivemos uma epidemia?!

De fato, ultimamente têm aparecido uns cartazes oficiais com recomendações de silêncio e uns SHHH gráficos em lugares públicos. Que eu entenda, com uma falha na cláusula, porque nenhum explicita que é proibido cantar.

Vagão de trem em Barcelona, abril de 2021 (Susana Bragatto / Folhapress)

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A Espanha registrou 10.598 novos contágios nas últimas 24 horas, ou 22,54 por cada 100 mil habitantes, contra um índice de 37,98 casos por 100 mil habitantes no Brasil, segundo dados referentes à última quinta-feira (15).

No auge da pandemia, em abril de 2020, chegamos na Espanha a 900 mortos diários, ou 1,98 por 100 mil habitantes. O Brasil, nas últimas 24 horas, registrou 3.774 mortos, ou 1,78 por 100 mil habitantes.

Até o exato momento, 7% da população espanhola já recebeu as duas doses da vacina, e 19%, uma dose, num total de mais de 12 milhões de injeções. A promessa do governo é vacinar integralmente 70% da população até o fim do verão.

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Voltando ao vagão sacolejante, blimblom, passando pela estação Arc de Triomf.

— Senhora, tenho um filho, e estou sem dinheiro… –tenta se defender, debilmente, o músico, que deve ter seus tantos anos, a pele curtida, tatuagens antigas diluídas pelo sol e por sabe-se quantos embates de la vie.

Saída das sombras, uma segunda mulher, envolta em um xale lilás que lhe dava um arzim de justiceira-mater, tasca:

— Cale-se a senhora. E, farfalhando o xale lilás pro músico, como uma maestrina: Adelante! Os ombros do dito, cobertos por uma cascata de cachos grisalhos e uma jaqueta jeans surrada, me pareceram uns milímetros mais encolhidos que há um minuto. CANTA!, exorta a mulher do xale, quase com violência. Alegria, alegria!

E, assim, ecoaram finalmente os primeiros acordes de “Un montón de estrellas”, do cubano Polo Montañez, uma estranha canção animada de dor-de-cotovelo. “Porque yo en el amoooor / soy un idiooo-ooota….”.

Aí vi que o músico eram dois, e muy afinados. Com participação especial da senhora contrariada, que já tinha virado as costas pro povis e seguia, revoltada, de backing vocal: que vergonha…. VÃO TODOS VOCÊS PRA UTI! E na gente que está morrendo, ceis não pensam, não?

Final da historieta: o público toma o lado do bardo, aplaudindo mais do que é costume nesse tipo de espetáculo de hora do rush e doando mil moediñas. Não era bomba, era só mais um dia, com trilha sonora de angústia e salsa cubana…

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