Não há dia como hoje
“Menina, aqui tem paciente dando positivo em PCR há mais de dois meses!”
Lá vou eu de novo com minhas modestas pílulas do front hospitalar. Microprivilégios (hhhmmmm errrr hããã) de quem é paciente crônica e tem que fazer revisões periódicas. Hoje tem exame de sangue no cardápio.
A enfermeira, jovem y corada, talvez de tanta atividade seringuística, já que são 2 da tarde, extrai o fluido borgonha de minhas veias raladas de tanta furação enquanto me conta.
“A gente tem visto com alguma frequência, isso de dar positivo repetidas vezes”, diz. “Coitados dos idosos que estão na fila de cirurgias, tendo que voltar aqui a cada dois por três, sem poder ser operados!”
“A cada dos por tres”: expressão espanhola equivalente ao nosso “”vira e mexe”; frequentemente.
De fato, o saguão está dominado por velhiños esperando sua vez para tomar aquela enfiada gostosa de cotonete nas narinas.
A relativa placidez do primeiro andar dá lugar no térreo do hospital a uma balbúrdia amarelo-e-vermelha com bandeiras mezzo catalãsq, mezzo sindicais. Pequena aglomeração diante da entrada de emergências.
Um médico que observa à distância, como eu, aproxima-se e comenta: são o pessoal da limpeza. Estão protestando há mais de ano por haver sido excluídos da gratificação extra que só os da saúde receberam durante a pandemia.
“Se eles se arriscam tanto quanto nós!” –abre os braços, indignado. “Trabalharam dobrado, como nós. Cada vez que a gente termina com um paciente, entram eles em ação. Com proteção e tudo, mas, mesmo assim…” –deixa a frase no ar. Não precisa completar, yo entiendo. “A ajuda seria de uns 300 euros, o que não é muito, mas, pra eles, sim”, acrescenta.
Faço um cálculo mental: amigo, onde é que 300 euros é pouco? Quase 2 mil reais. Yo soy brasileña, amigow.
O cartaz principal da petite manifestação denuncia a “invisibilidade” do coletivo dedicado a deixar os hospitais, corredores e salas de cirurgia limpos, esterilizados, prontos para novas curas.
Vamos a veire, é óbvio: se se tratasse de um protesto de médicxs e enfermeirxs, apareceria imprensa sapeando, replicando, botando manchete. Mas não. Nessa sexta nublada em Barcelona, só eu, de sobretudo vermelho e mirada cansada, escrevendo uma discreta coluna pra um jornal d’além mar.
Irritada, uma jovem manifestante me explica: não só não receberam a tal gratificação como não têm o amparo da Seguridade Social em caso de positivo pra coronavírus –ao contrário dos profissionais de saúde, para os quais uma licença por Covid é considerada acidente de trabalho.
***
A Espanha se prepara para o 9 de maio, quando se prevê o fim do estado de emergência, em vigor desde março passado, quando eclodiu a pandemia. Restaurantes, por exemplo, poderão ficar abertos até as 23h. Em teoria, deixaria de existir também o toque de recolher (no caso da Catalunha, entre 22h e 6h) em vigor há meio ano.
Mas o governo da Catalunha já pensa em deixar na manga um decreto-lei que manteria o tal com alguma flexibilização, deixando-nos perambular livres até as 23h ou 24h.
Embora os gráficos covidianos estejam dando sinais de melhora (pouco mais de 9.000 casos e 136 mortes em todo o país nas últimas 24 horas) e a vacinação tenha se acelerado no último mês (até agora, com 10% da população vacinada com as duas doses), a Espanha já levou chulepada do destino vezes demais pra sair liberando tudo sin más.
É verdade, porém, que se avizinha junho, O Clássico Mês Em Que Começam A Chegar Os Turistas Pra Curtir O VerãoZão Español. Veículos de imprensa britânicos já festejam a reabertura de fronteiras anunciada pelo governo espanhol (com 8415879 PCRs e ressalvas), e as reservas de hotéis já tão uma doideira.
Lembro dos tempos não-saudosos em que “guiris” (estrangeiros) embriagados não nos deixavam dormir com suas festas em apartamentos alugados, ou lotavam tanto as atrações culturais e históricas de Barcelona que nós, moradores, desistíamos de tentar nossa vez, acabrunhados com tanta avidez. Será um longo e curioso verano…
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