A vida não é um anúncio de sapatos… às vezes

Que Nike, nada. A moda da vez é Top Manta.
Não, espera. Deixa eu reformular.

Esta semana foi lançada em Barcelona uma coleção de tênis de uma micromarca local que está dando o que falar.

Produzidos em pequena escala — são apenas 400 pares — entre Espanha e Portugal e com o apoio de dois designers locais, não são o tipo de sapato que eu poria no meu peziño 36. Diria, mesmo, que para meu gosto são bem horríveis (#prontoabrimeucorazónnn). E caros: custam 115 euros, ou R$ 713. Quase o mesmo preço de um air max, modelo popular da tal Náike, e mais caro que alguns da linha air zoom aqui na Europa.

Os tais (Top Manta / Reprodução)

Mas meu gosto ou o gosto do Pepe Pimentón para tênis não é o que importa.

Mais do que uns sapatos de sola monumental com uma pegada mezzo trator, mezzo estampa africana, o interessante é o coletivo por trás da marca.

São, principalmente, imigrantes senegaleses que, até pouco tempo atrás, viviam ilegalmente no país.

***

A cooperativa Top Manta foi criada em 2019 a partir do Sindicato de Vendedores Ambulantes de Barcelona como uma maneira de apoiar a coletividade “mantera” e suas famílias.

O nome da marca é uma alusão ao universo original de seus criadores, também conhecidos como “manteros”, personagens integrantes da cena barcelonesa que podem ser comumente vistos no centro vendendo imitações de bolsas e tênis de marcas famosas sobre mantas ou cangas (que eles recolhem rapidinho quando pinta a polícia).

***

Segundo o último censo, há hoje em dia quase 77 mil senegaleses registrados na Espanha. Concentram-se principalmente em Barcelona e nas ilhas Baleares.

Não chegam aos pés das principais comunidades estrangeiras no país, como a marroquina (762 mil) ou a romena (667 mil), e estão inclusive atrás da brasileira (pouco mais de 84 mil), mas seu número vem aumentando nos últimos anos, principalmente a população jovem.

***

Assim como o design dos tênis, também tenho mixed feelings sobre a abordagem publicitária escolhida para o lançamento dessa pequena coleção –mas, de novo, são meus dois centavos.

A campanha pega carona na linguagem e slogan das propagandas da Náike, diante da qual o coletivo se posiciona como “concorrência” ou “antagonista”. Não é que eu esteja defendendo a Top Marca. Mas é preciso mesmo recorrer a essa estratégia?

Anyway.

O vídeo publicitário começa com um cara diante do mar observando o horizonte e a voz em off que diz: acredite em você.

Segue-se aquela montagem depropagandadetênishype que nos é familiar –um cara correndo na natureza, corpo em esplendor, acompanhado de uma narração eloquente à la be-yourself muy parecida ao de uma campanha da gigante “concorrente”, culminando com a exata frase “just do it”.

Aix.

A provocação é deliberada. Segue-se a reviravolta. O vídeo corta pra praia de novo –mas, desta vez, diante do cara tem um barco. Uma canoa, quase. Apinhada de gente. Gente que chega, chega de onde? Do outro lado do oceano, depois de, como dizem por aqui, “pasar putas” (se ferrar) numa viagem sem volta.

São imigrantes ilegais. Como marroquinos e outros, vêm, sobretudo, do continente africano, fugindo de guerras ou da pobreza, buscando uma vida melhor. Embarcam em “pateras” ou “cayucos” precários, pouco mais que barcos de pesca, pra chegar aqui nazoropa e viver o zoropean dream. Muitos não chegam jamais.

Cena da campanha publicitária de lançamento dos tênis Top Manta (Reprodução)

Corta pro mesmo personagem just-doing-it fugindo da polícia, a cara amassada contra o solo, as mãos em seu pescoço, os gritos. “A vida”, anuncia agora a cortante voz em off de uma mulher com sotaque estrangeiro, “não é um anúncio de sapatos”.

A peça publicitária termina com uma reformulação dos dizeres naikianos: “It’s not about just doing it, it’s about doing it right”. O do-it-right encontra ressonância na frase oficial da campanha, emprestada da língua wolof ou ulof, falada no Senegal e Gâmbia: Ande Dem, ou Caminhando Juntos.

Em tempo: o valor arrecadado com a venda dos tênis (yess, presume-se, daí o preço elevado) vai para ajudar as famílias de “manteros” e ampliar as atividades da cooperativa.

Entre outras coisas, o projeto Top Manta já propiciou a regularização da residência espanhola de dezenas de senegaleses, além de atualmente dar emprego direto a algumas dezenas deles e oferecer cursos de idiomas e formação profissional.