O primeiro verão europeu do resto de nossas vidas (ou não)
Barcelona, sexta-feira de calor de 2021.
Neste exato momento, o vizinho desgraçado escuta “reguetón” no talo, enquanto cantarola (muy mal) como se estivesse rebolando com mil bundas dentro do meu crânio. Resignada, aproximo o ventilador da minha fuça, escutando música pra concentração e fantasiando que jogo five finger fillet* com a faquinha de cortar verdura enquanto rilho os dentes, rancorosa.
Já venho de uma véspera maldormida. Ontem à noite, xovens se reuniram na praça diante de casa até altas horas pra fazer “botellón” (como se chamam aqui as festinhas de rua improvisadas regadas a álcool e sei lá mais quê), e tome mais putz putz modernim estriquinado.
Nessas horas, sempre viro pro meu companheiro de apartamento e digo: “pega a escopeta do vô”.
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Parecem cenas prosaicas, mas nada é exatamente prosaico na Barcelona pós-pandemia, aka Cidade Condal Em Polvorosa Porque É Quase Verão, Bebê.
Pra começar, o clima festivo de pós-pandemia.
O verão europeu começa oficialmente na semana que vem, em 21 de junho, mas os españoles e respectivas províncias já levam pelo menos duas semanas esquentando os motores –demasiado, na modesta opinião dessa brasileña suando em bicas num apê veraniego em Barcelona. É possível sentir isso na esquina, nas notícias e nos vizinhos.
Mesmo com as restrições à vinda de ingleses y outros ou os reveses devido à tal variante Delta Beta Gama, atualmente em expansão na Espanha, a vacinação massiva, apoiada pela propaganda positiva do governo, vem untando o clima de alegria-alegria-já-ganhou.
Até agora, mais de metade da população acima de 16 anos recebeu pelo menos uma dose (e 32%, a pauta completa). A expectativa é ter 70% dos espanhóis completamente imunizados até o fim do verão. A campanha avança por contagem regressiva de faixas de idade –neste momento, o alvo é o coletivo de 40 a 59 anos.
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Desde o fim do estado de emergência no último dia 9 de maio, e de olho não só nas férias de verão, mas também na reabertura turística internacional, as províncias espanholas vêm, pouco a pouco, flexibilizando as regras para a diversão coletiva.
Andaluzia, no sul da Espanha, foi das primeiras a reabrir as discotecas, depois de um ano de portas fechadas. Em todas, lotação controlada e pistas de dança abertas somente em espaços exteriores, com uso obrigatório de máscara.
Já na icônica e já-abarrotada-de-turistas Ibiza e demais ilhas Baleares, a redenção do ócio noturno dá um passo importante neste sábado (18), com a abertura de cafés, bares e restaurantes até as 2h da manhã. Único porém: ainda não se pode dançar (!) –o que, considerando que estamos falando de uma meca da vida clubbística, indica que a normalidade ainda não tá assim tão normal.
Sigo no instagram a conta de uma popular loja de roupa ibicenca. Situada na capital Eivissa, numa das ruas mais movimentadas de Dalt Vila (a parte histórica, circunscrita por muralhas que datam do século 16), está rodeada de um mar de restaurantes e bares. Ultimamente, cada “story” diante da loja me lembra o Carnaval de Olinda onde, uma vez, fui alçada do solo e levada passivamente pela multidão ondulante, de tanta apinhação de gentes.
Ao entardecer, os transeuntes ademais se juntam numa ceninha tipo êxtase: levantam-se das mesas com suas roupas brancas, à moda ibicenca, e começam a bailar, gritar, bater copo e fazer tim tim. Tal é a alegria incontrolável do europeu bronzeado neste verão 2021.
O previsível efeito manada, efeito catarse, efeito f***-se, parece, está em toda parte. Nas praias de Barcelona, pouco a pouco volta a ser difícil encontrar lugar na areia –por um egoísta e irreal momento, tive esperanças de que poderíamos ter deixado isso em 2019.
Mais preocupante de tudo: as línguas escutadas ainda são predominantemente locais. Isso significa, ladders and changemen, que muitos turistas “guiris” (estrangeiros) ainda estão pra chegar e se somar à procissão que busca um lugar ao sol, eu incluída.
O vizinho silenciou. Espero que tenha morrido. Não: espero que tenha se conscientizado de que somos todos um e que, mesmo com verão e vacina, respeito mútuo, solidariedade e cautela diante da incerteza-sobre-o-que-virá ainda são um item. Ai, que saudade de algum inverno longínquo…
* nada de apologia a faquinhas ou facões aqui, e muito menos à automutilação. Dedos e vizinhos não foram feridos na confecção deste artigo
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