Não é agressão homofóbica, é purê de batatas: investigação sobre morte de brasileiro desperta polêmica na Espanha

Impressionante.

O recente assassinato de um jovem brasileiro despertou um monstro na sociedade espanhola.

Ou muitos –o que não é de todo mau. Saiam dos armários, monstros.

Às 3 da manhã do último dia 3 de julho, um sábado de reabertura pós-covidiana, Samuel Luiz Muñiz, 24 anos, nascido no Brasil e criado aqui por pai brasileiro e mãe espanhola, falava animadamente ao celular numa videochamada, acompanhado de uma amiga, numa rua movimentada de bares da Corunha, cidade da Galícia, quando passa um casal.

O cara –dizem — acabava de ser expulso da boate próxima por conta de tretas escandalosas com a namorada, que o acompanhava no momento. Pensa que está sendo filmado e, ato seguido, parte pra cima. O primeiro grito de guerra que se ouviu, segundo testemunhas, incluía a provocação: PUTO MARICÓN!

(“viado de merda”, em tradução livre e dolorosa)

Uns poucos dias antes, o país tinha se colorido para os protestos e festas do Orgulho. Também uns poucos dias antes, depois de muita disputa, aprovou-se finalmente o anteprojeto da chamada “lei trans”, que contempla direitos do coletivo LGBTQIA+.

Mais de uma dezena de caras se juntaram à cena, convocados pelo primeiro. Os investigadores acreditam que todos os agressores eram amigos e vizinhos, com idades que variam, estima-se, entre uns 17 e 25 anos. Alguns estão detidos, outros, ainda não.

Samuel foi encurralado por uma chuva de porrada. A perícia, analisando as gravações das câmeras de segurança no local, calcula que ele tentou esquivar os golpes por uns 200 metros antes de cair ao solo e ser morto por golpes que resultaram em um traumatismo craniano. Mas nem precisa câmera: há muitíssimas testemunhas.

Como se diz aqui: así de claro.

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Com toda essa exposição, parece claro como o dia que, além de homicídio, deve entrar na conta dos agressores o agravante de crime de ódio –neste caso, com motivação homofóbica.

Parece claro, mas não é, gente.

Pois essa é a revolta. Os investigadores e parte da imprensa espanhola, como se manuseassem com patas de elefante a taça de cristal mais swarowskiana do mundo, hesitam em considerar o assassinato de Samuel um crime motivado por homofobia, porque, segundo os tais investigadores, seria complicado provar que os agressores já conheciam o Samuel e sua orientação sexual.

Oi?

Samuel Luiz Muñiz, morto em ataque na Espanha (Reprodução / Facebook)

Nos últimos dias (talvez na tentativa genuína de botar uns pingos em alguns iiis), alguns editoriais da mídia “variopinta” do país (adoro essa palavra, tão sonorososa) botaram de escanteio o PapoReto em prol de mil teorias criativas, entrevistas com “expertos” de toda sorte e azar etc.

Algumas dessas teorias se concentram em esmiuçar fatores “motivadores” do crime, como a namorada do cara (aaaah, mulheres, essas malditas), a infância triste do menino rico (a identidade de um dos agressores principais, conhecido apenas como “Álvaro F.” ou “Yumba”, seu apelido, começa a vir à tona), os partidos de direita e de esquerda (é verdade que Vox, partido de ultradireita, tem 45478908 incitações de ódio a 41835708 coletivos no currículo), a maconha, o haxixe, outras mil drogas, o alcoolismo entre jovens, o endless topic dos imigrantes e a cultura da violência com seus videogames e filmes de porrada.

Como disse essa pessôua abaixo, ecoando a pergunta de muitos:


Gente, vamos perguntar pra sobrinha de três anos que eu não tenho. Ela deve saber a resposta.

Vamos nos perguntar, de verdade, se linchar um cara a pontapés e socos até morrer ainda pode ser considerado culpa da sociedade, do videogame, do purê de batatas.

Coitados dos que foram obrigados a comer brócolis quando eram crianças. Talvez essa tortura imperdoável tenha gerado esses seres humanos distorcidos, com sede de vingança.

A maioria dos detidos até agora pela morte do Samuel nunca cometeu um crime –que se saiba. Mas eu discordo.

Imagino que suas atitudes criminosas começaram muito antes. No primeiro pensamento, no primeiro gesto de desprezo ao próximo, por Não Ser Considerado Igual. Caramba. Quantos pronomes teremos que usar, quantos fluxogramas e rodas vivas e defesas precisaremos inventar?

Os dois senegaleses que tentaram apartar a briga viraram microcelebridades e ganharam até promessa de regularização de papéis express do governo, abraços e agradecimentos on camera etc. Como se a legalização fosse um prêmio ao “bom imigrante”. Hm.

Notem bem, não que não seja bacana. Mas, gente… pensa. Se, ao invés de um imigrante considerado “exótico” (sim, falemos as palavras pelos seus nomes! eu, brasileira, aqui sou considerada “exótica” também, peraí que vou buscar minhas bananas!), fosse um branco cis local, duvideodó que haveria toda essa encenação condescendente e tipificadora.

Não preciso de phD em abaporucicabas pra ousar afirmar: que puta circo do c***.

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Outro dia, conheci um jovem que saiu em tudo quanto é jornal aqui na Catalunha há coisa de um mês. Tinha um ostensivo olho roxo sobre a máscara e um talho na sobrancelha. Outro crime homofóbico.

Sobreviveu, sim. Com a mandíbula deslocada, dentes quebrados e uma conta no dentista de 7 mil euros (em torno de R$ 42 mil) que ainda não sabe como vai pagar.

Segundo diferentes associações espanholas vinculadas ao coletivo LGBTQIA+, está claro que há uma subnotificação de casos de homofobia no país.

O diretor do Observatório Madrilenho contra a LGTBfobia estima que apenas 30% ou, “extrapolando os dados”, como declarou a um jornal local, inclusive 2 a 5% dos incidentes chegam ao conhecimento institucional.

Além do mais, os últimos anos vêm registrando um aumento de incidências. Entre os motivos, comenta-se o fortalecimento do discurso de ultradireita, sobretudo materializado no partido Vox, o terceiro mais poderoso do país, e a volta à vida social pós-pandemia.

“Hoje, senti algo que nunca tinha sentido antes”, desabafou comigo o rapaz com o olho roxo. “Vesti uma camisa rosa, mas, na hora de sair, tive medo. Por causa de um pensamento que jamais teria me ocorrido antes: e se alguém decidir me agredir — pela cor da minha camisa?”

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