Minha parede, minhas regras
Na minha fantasia, os moineau, sabiás típicos daquela região da França, bateram em revoada com o entardecer e os gritos que saíam do trem.
“Senhora, o uso da máscara é obrigatório… coloque-a, sivuplê”, comecei, em inglês.
A senhora em questão, magra e francamente emaciada, os óculos de lentes grossas pendurados na ponta do nariz, levava uma máscara cirúrgica naquela já clássica posição kama sútrica transgressora debaixo do queixo. Não só: tossia, tossia muito, tossia como a maníaca assassina do catarro, e finalmente tossiu na minha cara, sentada a seu lado.
“Je tuss, je tuss”, protestou ela, sem levantar a máscara (perdoem meu francês, literalmente), tossindo ainda mais. E se recusou a botar a máscara. Até onde entendi, exatamente porque ela tava tossindo. Eeer.. wot.
Poupo vocês de mais detalhes. Digamos que a coisa escalou rápido, de je tusse, je tusse para tossir e protestar ainda mais, “cê num manda em mim”, e eu levantar minha voz, evocando ideias antiquadas e bregas como respeito, solidariedade e pandemia. Santa ignorância dessa desgraçada alma, sentada debaixo de um adesivo gigante que sublinhava a obrigatoriedade da máscara no trem. Je tusse, je tusse. Mandei ela à merda e mudei de vagão.
… Só pra ver a fiscal do trem atender o telefone e, ora, brulée brulée, tirar a máscara pra conversar alegremente.
Esta era minha primeira viagem em transporte público terrestre desde que começou a pandemia, quase um ano e meio atrás. Objetivo: visitar meu irmão, que vive perto de Toulouse, França. Na mão, meu certificado Covid, documento europeu internacional que atesta que completei o protocolo de vacinação e estou portanto apta a cruzar fronteiras dentro da União Europeia.
No ônibus, horas antes de pegar o trem entre Toulouse o pequeno povoado de Cazères, já havia tido outras oportunidades de me indignar.
A francesa do banco de trás do meu civilizadamente botou a máscara quando eu educadamente lhe pedi. Me comovi, quase tive vontade de abraçá-la.
O cara mais atrás com a napa de fora, provavelmente porque se sente a última paella da Barceloneta e dane-se essa mina krakatoa pensando que pode mandar num macho, fez que não ouviu e botou cara blasé de desprezo.
Verdade: é chato, irritante e embaraçoso demais alguém mandar a gente colocar a máscara; tão pensando que somos crianças malcriadas colando ranho debaixo da carteira na escola?
(Siiiiiiim)
Finalmente, numa parada da longa viagem de 6 horas, eu me deparei com fulanes comendo tranquilamente dentro do ônibus. Migalhas pra todo lado. Aqui, como aí e alhures, está proibido comer, falar e qualquer outro gesto que implique tirar a máscara dentro de um transporte público.
Meu olhar se encontrou com o de um menina que, por sua vez, parou com o croissant na boca, talvez esperando algum confronto. A essa altura, todo mundo no ônibus já me conhecia, porque no início da viagem eu tinha me levantado pra ajudar o simpático y desiludido motorista búlgaro a explicar aos passageiros que a máscara é obrigatória, CARAYO. Cansada, desta vez não disse nada. Que eu seja a mala da história, a estraga-prazeres, a “pesada”. Sô mesmo. Mas —
Conto essa história pra ilustrar a falta de cooperação que, sim, a gente pode encontrar em qualquer lugar. Porque brasileiro tem mania de pensar que europeu é superior, educado, exemplar. Hay de todo.
Ultimamente, ando especialmente pasmada por meus papos com franceses sortidos. É algo comum entre estes a ideia de que a pandemia é uma conspiração do governo pra controlar corpos e mentes. E já escutei de mais de um, explicando por que se recusa a tomar a vacina: “meu corpo, minhas regras”.
Próxima vez eu vou de blablacar. Ou fico sem ver meu irmão mais uns 2 anos, olhando a parede de casa e pensando: minha parede, minhas regras.
(Siga o Normalitas no Instagram)