Ava Gardner, o holandês voador e um sonho espanhol

Tô lá fazendo meu topless na areia quando escuto um sambão.

Coisa de chamar a atenção, porque não estoy em Copacabana, mas numa baiazinha na fronteira da Catalunha Profunda, em Tossa de Mar, um belo balneário mediterrâneo com interesse histórico-medieval a uma hora e pouco de Barcelona, em Girona.

Não resisto e interpelo a mulher que tá botando som por alto-falantes na praia, do lado de um telão desligado com o mar de fundo.

Brasileira, claro, de Belô.

Brasileiro, quando encontra os patrícios na gringa, via de regra, fica todo emocionado.

“Eu, hein, de onde cê conhecia essa pessoa?”, já me perguntaram mais de uma vez. “Nada, acabo de conhecer, mas brasileiro quando se topa no mundão é assim, sai logo perguntando da vida, dando abraço, falando da saudade e combinando um churrasco lá em casa….”.

Clarice, que vive em Tossa há anos, me conta que vai ter projeção de filme à noite, aproveitando a lua cheia.

Não qualquer filme: mais exatamente, a superprodução que botou esse discreto vilarejo de pescadores na rota dos interesses hollywoodianos, há exatos 70 anos.

Cena de abertura de “Os Amores de Pandora”, 1951 (Reprodução)

A cena de abertura mostra uns “extras” contratados pra atuarem como os pescadores locais que trocam uma ideia em catalão chulo enquanto puxam uma rede anormalmente pesada do mar:

–Què creus que hi tenim a n’aquí, una ballena (O que você acha que temos aqui, uma baleia)?

–Una manada de ballenes!

As “ballenes” resultam ser cadáveres. Fim da cena de abertura.

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“Os Amores de Pandora” (Albert Lewin, 1951) estrela Ava Gardner e James Mason nos papéis principais.

Ava interpreta Pandora Reynolds, cantora arretada e devoradoradehomens de passagem pela Espanha, que quebra as perna ao se apaixonar perdidamente por um misterioso e circunspecto holandês que atraca seu navio na baía de Tossa (no filme, Esperanza).

(quem nunca, não é mesmo)

Ava Gardner no filme “Os Amores de Pandora”, de 1951 (Reprodução)

O filme é uma mistura de mito grego, dramalhão hollywoodiano e a lenda do holandês errante, com toques surrealistas devidamente co-orquestrados pelo fotógrafo e artista vanguardista dadaísta surrealista ista ista Man Ray.

Ray se meteu com a fotografia do filme, salpicou a cenografia com umas esculturas romanas descabeçadas aqui e ali e criou o genial tabuleiro de xadrez que aparece em uma das cenas (assistam, assistam), além de ter metido a mão, dizem, no roteiro.

Por essas e outras, vale a pena ver a produção. Atentem para a cena superrr moderna da corrida de carros e a sequência que mostra uma louca festa de ricaços na praia –dá pra sentir o cheiriño de fotomontagem, desconstrução narrativa, subversão lógica à la dadá.

Cena de “Os Amores de Pandora”, de 1951 (Reprodução) (Me chamem pra essa festa, por favor)

Surrealismos à parte, “Os Amores de Pandora” não deixa de ser um desfile estilizado de belas paragens mediterrâneas, becos poéticos, dramas burgueses, boa comida, noitadas com dança flamenca e touradas sanguinolentas (estrelando o toureiro-na-vida-real Mario Cabré, com quem, dizem, Ava teve um lance durante as filmagens).

A Espanha de “Pandora” é naïf y estereotipada no úrtimo, o que, por sinal, convinha ao desejo de “abertura” (…!) do governo franquista no início dos anos 1950. A interpretação caricatural de Cabré como o toureiro Juan Montalvo me fez sentir uns cringe deitada à luz do luar na praia de Tossa.

Ava Gardner e James Mason no Filme “Os Amores de Pandora” (1951) (Divulgação)
Mario Cabré como o toureiro Juan Montalvo em “Os Amores de Pandora”, 1951 (Reprodução)
Tossa de Mar, Catalunha, em cena de “Os Amores de Pandora”, de 1951 (Reprodução)

O filme foi rodado em diferentes pontos da chamada Costa Brava, incluindo a bela Platja (praia) d’Aro e a praça de touros de Girona.

Mas é Tossa, esse lindo pueblo catalão de menos de 6 mil habitantes, que ganha os louros como A Cidadezinha Espanhola da Ava.

 

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Ava, Ava. Era a primeira vez que pisava em solo espanhol, e não seria a última –muito menos isenta de drama, mas isso fica pra outro artigo. Tinha então 28 anos e já dois divórcios nas costas, além de um namorico incipiente com Frank Sinatra.

O cantor Frank Sinatra e a atriz Ava Gardner, com quem se casou em 1951 (Reprodução)

A passagem da estrela por Tossa está em toda parte, a começar pela parte mais alta da Vila Vella, onde contempla o mar, eternizada em uma estátua de bronze de tamanho natural. Também há fotos suas em bares, restaurantes como o Tonet e hotéis da região. Todo mundo quer uma casquinha da Ava.

E do Frank. Na época, Sinatra era o beau da bella. Tinha largado mulher e três filhos pra estar com ela. E, dizem, ciumento, veio vigiar o set e aproveitar pra tomar uns bons drink (imagino).

Também lá está ele eternizado em Tossa em fotos e anedotas entrelaçadas nos papos fugazes com os locais, uma gente muy catalana e ao mesmo tempo acolhedora, e que, por motivos abstratos e flanológicos, e até onde minha totalmente parcial exploração de terreno pode concluir, costuma tomar o partido da Ava, ao mesmo tempo que vê o Sinatra como um acossador que era dado ao álcool e ao maltrato à mulher.

Por exemplo, um dono de bar à beira-mar me comentou, entre terno e divertido, que Ava “era terrível” (hmmm) e fez menção ao seu fugaz caso com Cabré, o toureiro do filme.

De fato, Ava diria depois a um biógrafo que foi “só uma noite”, e que o toureiro era um “diablo guapo”. “Depois de uma daquelas noites espanholas românticas, cheias de estrelas, dança e drinques, me despertei e me encontrei ao lado de Mario Cabré”, conta ela em suas memórias.

Tossa, Sua Linda (Susana Bragatto / Folhapress)
Tossa de Mar, Vila Vella medieval, Catalunha. Ainda vou ter uma casinha dessas (Susana Bragatto / Folhapress)

Já Cabré, muitos anos depois, confessaria que se apaixonou pela diva “como un ceporro (panaca!)”. Também poeta, em seu “Dietario Poético para Ava Gardner”, de 1950, escreveu: “Rocio sobre amapolas, tus labios guardan asombros”….

Três anos mais tarde, em 1953, Ava viria a Madri para viver um tempo. Ali, teria um caso tórrido com outro toureiro, o lendário e controvertido Luis Miguel Dominguín, amigo de Dalí e de Franco, bróder do Orson Welles e do Hemingway (Hemingway, essa onipresença), mulherengo dukacete. Também causo pra outro artigo.

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À noitinha, sento na areia fresca da praia de Tossa, entre famílias, casais e grupinhos barulhentos de xóvenes, para ver “Pandora”. Estou só. Venho quase sempre sozinha a Tossa. É meu refúgio, minha ilha da fantasia. Um dia, penso, vou ter uma casinha de pedra dentro da zona da “Muralla”.

Tossa foi declarada Monumento Histórico-Artístico Nacional em 1931 e é hoje o único pueblo medieval fortificado preservado de toda a costa catalã.

À direita do telão, um breve desvio de olhar nos leva para as torres da cidade amuralhada. Coisa mais linda. Com um perímetro de uns 300 metros quadrados, a cidade “Vella” foi construída entre os séculos XII e XIV como defesa contra a pirataria.

Lua cheia, Ava Gardner nadando nua no mar, ruínas medievais. E volto a pensar na simples letra de Paulo Onça em versão de Jorge Aragão ecoada horas antes. Confesso que não está nas minhas playlists, mas semeia em minh’alma uma estranha saudade de casa:

Queria o prazer do amoooor / Assim desejando estoooou
Só vou sossegar / Quando te conquistaaaar………..

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