O diabo, a nuvem e alguma lágrima

O que nuvens de celofane, diabos soltando fogo e sistemas planetários têm em comum?

Se cê chutou Carnaval, quase.

(eu chutaria Terry Gilliam, mas é que eu sou romântica)

Aqui na Espanha, o Carnaval não é assim Aqueeeela Data Do Corazón como pra gente aí no Brazel. As exceções honrosas talvez sejam os carnavais de Tenerife ou Cádiz, internacionalmente conhecidos.

Apesar disso, a verdade verdadeira é que, na percepção parcial, mas consistente dessa imigrante que vos fala, os espanhóis são uns party animals. Nunca vi tanta festa de rua como aqui.

O calendário anual de festas populares inclui centenas delas, entre grandes, pequenas e minúsculas. Em parte, motivadas pelo profundo histórico religioso-cristão do país, com homenagem a santo, data bíblica e tal.

Mas tem pra tudo: festa pra abrir primavera, pra fechar o verão, pra homenagear o patrono da cidade, pra festejar a colheita de cogumelos (os de comer no strogonoff, gente), pra fazer guerra de tomate (a famosa Tomatina, em Valência) e por aí vai.

Festa da Tomatina, Buñol, Espanha (Reuters / Juan Medina)

***

A pandemia, claro, afetou o ritmo de fiesta español costumeiro. Em 2020, tudo cancelado.

Este ano, em agosto, finalmente começam a ressurgir algumas celebrações aqui e ali, embora dependa muito da localidade –Madri, por exemplo, suspendeu por ora as principais festas populares do mês, por cautela covidiana.

Carnaval da ilha de Tenerife, Espanha. Parece um bokado com o nosso (AFP PHOTO / Desiree Martin)

Em Barcelona, a grande festa popular de agosto acontece esta semana até o próximo sábado (21), depois de uma última edição pandêmica completamente virtual (aka: não aconteceu) em 2020.

É a “Festa Major” (festa maior) do catalaníssimo bairro de Gràcia.

Onde, por cierto, eu vi o diabo, a nuvem, o arco-íris e muito mais.

***

As festas maiores são um clássico espanhol. Acontecem em diversas partes do país ao longo do ano. Cada bairro, distrito ou município pode ter a sua, com dinâmica e peculiaridades próprias. Algumas tradições remontam pelo menos à Idade Média.

Festa maior de Gràcia, 1915 (Reprodução)

E o marr legal: quase sempre, os próprios moradores e negócios locais participam da organização, decorando ruas e organizando pequenos concertos (concertos, que era isso mesmo?) e “barras” (balcões de bar) para servir drinques e “tapas”.

Em Barcelona, com seus 10 distritos e 73 bairros, há cerca de 20 festas maiores ao longo do ano. A mais famosa é, sem dúvida, a de Gràcia, celebrada há mais de 200 anos.
***
Passear pela festa de Gràcia 2021 é assim meio mágico. Digo yo.

Ainda mais este ano, em que ressurge com gostinho de fênix.

Festa Maior de Gràcia, Barcelona, 2021 (Susana Bragatto / Folhapress)

Festa Maior de Gràcia, Barcelona, 2021 (Susana Bragatto / Folhapress)

Há algo singelo e comovente nas decorações temáticas com celofane e papel machê penduradas entre os balcões, sobre os postes de luz, enlaçadas em persianas e fios de eletricidade.

Algumas me lembram trabalho de aula de arte da escola.

Outras parecem aventuras protospielberguianas.

Mas a maioria fica no meio do caminho entre o esmero de mãos não necessariamente expertas, mas amorosas. O resultado é um conjunto vistoso, que nos brinda aos críticos-malas-que-não-metem-a-mão-na-massa como eu com um espetáculo imersivo mezzo alucinatório, mezzo poético.

Em meio ao caos das ruas festivas, os locais montam mesas na rua e celebram o esforço (às vezes, de meses) com um banquete pra eles mesmos e amigos. Quero chegar a ser uma insider assim um dia. Hay que vivir en Gràcia.

Festa Maior de Gràcia, Barcelona, 2021 (Susana Bragatto / Folhapress)

Festa Maior de Gràcia, Barcelona, 2021 (Susana Bragatto / Folhapress)

Cada rua tem uma onda diferente. Uma lata de tinta que vomita mil cores sobre nossas cabeças; planetas e meteoros banhados por luzes sci-fi; intermináveis guirlandas de flores, polvos, dragões.
Depois que termina a festa, qualquer um pode bater na porta da associação da rua e pedir um pedacinho da decoração de lembrança.

Minha amiga catalã já tinha escolhido o que queria pedir: uma longa trança de flores e folhas de papel.

***

Lembro da minha primeira festa maior de Gràcia, nos idos de 2000 e algo. Não dava pra andar na rua de tanta gente. E mal se via a decoração, de tantos turistas bêbados alçando canecas de cerveja. Terminei a noite banhada em cerveja, e olha que eu nem curto cerveja, chaval.

Também mal ouvia a música com tanto alarido de gentecontente.

A única experiência da minha vida que se compara a essa badalada festa de bairro pré-pandemia é o carnaval de Olinda, quando, uma vez, eu fui carregada pelo movimento autônomo da multidão enquanto por sinal chupava um sorvete de cajá (proezas pessoais, falemos delas).

Ah, Brazel.

É legal, mas, neste momento pós-pandemia, tá diferente.

Este ano, em Gràcia, teve fila indiana pra entrar em cada uma das ruas decoradas. Está mais organizado, mais contido. Mas, ainda assim, bunito.

Porque festa popular, gente, é pra mim mais do que um banho de cerveja e uns boffs ou um passeio em família. Mais do que nunca, nesses tempos demasiado surreais, talvez ofereçam também uma oportunidade de conjurar aquela lágrima há tanto guardada no canto do olho, inspirada pela sensação indescritível, mas quentinha e confraternizadora, de pertencer ao jogo do mundo, ao tempo dos ventos, ao balouçar dos crepons.

(Siga o Normalitas no Instagram)