O verde nosso de cada dia

(ou: ode aos parques anônimos de Barcelona)

Domingo de manhã e tô explorando uma outra parte de Barcelona, desconhecida pra mim até agora, na zona de Sants-Montjuïc.

E olha que levo anos nessa ciudad.

Sem querer, ao dobrar uma esquina qualquer, descubro, por exemplo, o Jardim dos Direitos Humanos, um oásis metido entre edifícios residenciais y uma casa de linhas clean e planta livre com ar meio 1950s.

A essa hora fresca da manhã, cedo ainda e sem canícula (como se chama a onda de calor que nos vem surrando por aqui), avisto um cara penteando um labrador, duas senhoras passeando lado a lado com seus respectivos poodles, fonte, flores, e é isso.

Jardí dels Drets Humans, Barcelona (Susana Bragatto / Folhapress)

Nada especial, francamente. Me faz pensar no Burle Marx, em São Paulo, por conta do espelho d´água e alguns espécimes tropicais aqui e ali. Deve ser saudade de casa, e me sento na beiradinha da água pra contemplar o conjunto.

Descubro depois que esse jardim foi erigido sobre um antigo pátio de descanso para operários da fábrica Philips, e que a tal construção 1950s supracitada de fato foi projetada em 1960 pela mulher do dono da fábrica, uma paisagista holandesa.

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Barcelona tem três parques-estrela: o Güell, Montjuïc e Ciutadella. Fontes com estátuas douradas, torceduras gaudinianas, caminhos de palmeiras, cenários preferidos de eventos culturais, uma maravilha, cartões-postais da cidade.

Ironicamente, como em outros lugares, a maioria dos parques barceloneses nasceu como necessidade colateral da Revolução Industrial. De repente, era tanta gente e concreto na cidade que faltava verde.

Parc Güell, projetado por Gaudí, Barcelona (Divulgação)

O primeiro grande reduto-oásis a ser construído foi o Parc de la Ciutadella, um projeto ambicioso feito sob encomenda para receber a Exposição Universal de 1888.

Na primeira metade do século XX, com a onda de renovação urbana modernista, surgiriam outros grandes parques, como o Güell, projetado por Gaudí (1923), e os Jardins da montanha adjacente de Montjuïc, criados especialmente para a Exposição Internacional de 1929.

Parc de la Ciutadella, um dos mais famosos cartões-postais de Barcelona (Reprodução)

Um icônico personagem articulador desse processo de parquificação intensiva de Barcelona foi o arquiteto e paisagista catalão Nicolau Rubió i Tudurí, que esteve à frente da Direção de Parques Públicos da cidade até o exílio na França, em 1937, após o início da Guerra Civil Espanhola.

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Mas hoje meu corazón quer homenagear os cantos verdes anônimos das nossas vizinhanças. Esses que só talvez, ou casualmente, cê descobre que têm nome e história. E que, no vaivém rotineiro da city cruel, te acolhem com sombras de árvores e momentos de pazzz.

Como o Parque de La Pégaso, perto de casa, no bairro histórico-operário de Sagrera. É meu preferido. Foi construído onde antes havia uma companhia de caminhões que, justamente, produzia os famosos modelos Pégaso.

Sempre vou lá fazer o meu chi kung e meu workout-de-app debaixo de eucaliptos esvoaçantes. Os quais, por sua vez, me recordam a casa onde cresci, atrás da qual tinha uma espécie de bosque que nos brindava com um ruído namastê-selvagi agradabilérrimo cada vez que vinha uma tempestade de verão.

Fico feliz quando coincido com a hora em que ligam as fontes pra limpar os tanques de água (onde às vezes rola um pato ou um cachorro nadando).

Pronto. Aí vem o labrador ca bolinha azul na boca.

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Essa mina não tá falando  naa-di-náa (como diriam aqui, sincopando), cê pode pensar.

O tal labrador (ca bolinhazul na boca) (Susana Bragatto / Folhapress)

Não tô, mesmo. Esse é o (meu) ponto. Hoje o papo é normcore (faça um muxoxo, vamos, que o tempo urge, que o parafuso aperta, que o julgamento cozinha o miojo além do ponto…).

Quanto de nossas vidas de transeuntes (sobretudo, urbanos) deixamos desvividas pelos cantos com tanto excesso de tudo, me pergunto. Sorvendo, deglutindo, consumindo avidamente tudo ao redor, de informação a semáforos a twix sabor abacaxi.

Podemos resistir ao FOMO e apenas contemplar um arbustinho, uma primavera em frô? (também me pergunto, porque pra mim mesma às vezes é difícil)

Parc del Centre de Poble Nou, Barcelona (Susana Bragatto / Folhapress)

As ilhas de verde, tão corriqueiras na paisagem de Barcelona, são, entre outras bênçãos, espaços de Fazer Nada. De Encontro e Contemplação. Alguns, como eu, loopam pelos caminhos entre árvores pra dar conta da corridinha matutina, mas o mais comum por aqui é isso: a Desaceleração.

Parc del Clot, em Barcelona, construído aproveitando uma antiga vila ferroviária (Reprodução)
Aula de tai-chi pós-pandemia no Parque de Can Dragó, Barcelona (Susana Bragatto / Folhapress)
Minha estátua preferida, na Plaça del Congrés Eucarístic, Sagrera, Barcelona. Sempre vou lá trocar uma ideia ca comadre (Susana Bragatto / Folhapress)

Como os inúmeros bancos e bulevares de pedestres, os Parques Anônimos de Quase Cada Esquina são, aqui, parte pulsante-vital do tecido social. Convites à ocupação das ruas. Desaceleram, mas alimentam o corazón.

Vê, o labrador agora tá perseguindo pombas. Quer latir, mas leva a bolinha azul na boca…

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