Um passeio pelo maior sebo da Espanha
O chão se enrola em si mesmo, formando quadrados vertiginosos que suportam poltronas de veludo. O palco está vazio, exceto por um piano de armário onde falta uma tecla, um ré central –tomo nota, mentalmente, enquanto dedilho.
No lugar de paredes, livros. Muitos. Los que quieras.
Enfileirados, empilhados, eretos, debruçados, pairam sobre as cabeças passeantes umas coleções extensíssimas, arte, psicologia, clássicos, edições raras.
Num outro aposento, sobre uma mesa com tampa de vidro e cadeiras estilo Luís XV, um gordo lustre ilumina um livro infantil ilustrado, talvez recentemente folheado por mãozinhas ou mãozonas: Las pesadillas de Winnie the Pooh (Os Pesadelos do Ursinho Puff).
Logo ao lado, uma cozinha industrial, moderna e minimalista, rodeada de –adivinhou –mais livros. Ali, rolam aulas de culinária e outros eventos gastronômicos.
Outras estantes carregam fotos de toureiros, bibelôs, dedicatórias esmaecidas, pôsteres de outra Espanha, histórias de outras vidas.
Este é o El Siglo (O Século), o maior sebo da Espanha, um mundo fabuloso e complexo entocado num galpão dentro do Mercantic, famoso mercado de antiguidades e artigos lokos de segunda mão no município de Sant Cugat, a meia hora de Barcelona.
A livraria ostenta esse título desde 2013, quando incorporou os 100 mil exemplares de outro templo sebístico de Barcelona, o La Canuda, que funcionava desde 1948 no centro perto da Plaza Catalunya e fechou as portas pra dar lugar a alguma super loja de fast fashion das que hoje abundam por ali.
Hoje, o El Siglo possui em torno de 150 mil livros, revistas e documentos distribuídos em 800 metros quadrados. É lugar pra chegar, se perder por horas e emergir com algum livrinho barato (ou não) na mão.
Adentro o hall principal, onde há um bar e o burburinho de uma discreta massa, num domingo de sol de final de agosto. Tô emocionada.
Não só pela impressionante abundância de volumes e lustres de cristal, que dão ao local um arzim épico-charmoso de templo-dos-traça-lovers. Mas, principalmente, porque é dia de música ao vivo.
Minha primeira vez em muito, muito tempo.
Os indícios de uma pandemia ainda rondam aqui e ali: vemos gente mascarada, álcool em gel e mesinhas distantes umas das outras. Mas, de resto, a experiência é mansa y dulce.
A música ao vivo tem voltado aos poucos em alguns lugares. Ainda não muito.
Encontramos um cantinho pra sentar, equilibrando no colo vermutes e vinhos verdejo. Nesse salão principal, num palco maior que o mencionado acima, um duo de baixo acústico e piano começa a produzir as primeiras notas de um standard de jazz desses que a gente cantarola e não lembra de onde conhece.
Depois, entra a cantora: uma catalã entoando chansons francesas. Ne me quitte paaaaaaas, e a gente vai balançando ao ritmo dessa súplica poética, tentando esquecer por um momento que, apesar de 70,9% da população imunizada após 8 meses de campanha de vacinação, ainda temos alguns milhares de casos novos de Covid no país diariamente; e empurrando pro fundo do intestinus delgadus os alertas dos tais Especialistas Epidemiologistas, que vêm nos dizendo: cuidado que pode vir mais, cuidado que tem o frio chegando, cuidado que a vacina não funciona assim tão bem com as novas variantes.
Hoje não, por favor. Termino meu verdejo, o último de muitos. Tout peut s’oubliee–eeeeer lalalala.
Debaixo do braço, trupicando, mas ainda em pé, levamos uma edição marota setentista de Leaves of Grass, de Walt Whitman. Pra não sair de mãos abanando, pra arrematar a visita com uma mesura a esse belo lugar, pra declamar em voz alta, detrás de uma máscara cirúrgica 2021, num canto alumiado de algum aposento da alma cansada, I celebrate myself, and sing myself….
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