O assobio ancestral dos canários

Estávamos num hotelzinho rural na perdida y maravilinda cidade de Juià, no Baix Empordà, serra catalã.

Na mesa do café, entre jamones ibéricos e uma cava rosada que eu trafiquei diretamente da Xampanyería, famosa bodega de Barcelona, falávamos sobre a África.

Meu saudoso ex-namorildo catalão lembrava uma viagem sua a Botsuana e à tribo dos sãs ou sans, também conhecidos como bosquimanos.

Um nativo se destacava dos demais, com seus tênis náike e inglês impecável. Batia numa pedra e dizia: aqui há escorpiões. E havia.

“Conhecemos muito bem o nosso entorno!”, disse. “We are the new generation”. Ele também falava a língua tradicional, cheia de sons guturais e golpes de glote.

Daí que lembrei do meu (ex-, saudoso também) sogro canário, quando me contou algo fantástico sobre a ilha de La Gomera, a segunda menor do arquipélago espanhol de Canárias.

Marcada por uma topografia vulcânica, coberta por uma vegetação que parece um patchwork de cerrado e Mata Atlântica (lá, conhecida como laurisilva), a ilha é famosa também por uma língua ancestral, até hoje ensinada nas escolas.

O assobio (“silbo”) gomero remonta a eras pré-hispânicas, quando castelhanos se mesclavam com as tribos de origem berber (do norte da África) conhecidas genericamente como “guanches”.

Meu sogro lembra quando era pequeno e ouvia os “mayores” (mais velhos) articulando zilhones de conversas aka cantosdepassarinhos por meio de assobios que, dizem, podem chegar a até quatro, cinco quilômetros de distância.

Essa linguagem ancestral coletiva era usada para transmitir notícias sobre mortes, incêndios, perigos, tudo o que pudesse afetar a comunidade.

Mas não se trata de uma relíquia antropológica, e sim de uma língua viva y operante: alguma xovem canária comentou, numa matéria na tevê, que usa o “silbo” pra se comunicar com amigos em festas, por exemplo :). Alguém comparou a um Whatsapp dazantiga…

Uma professora de silbo gomero explica: “nas conversas assobiadas, é muito importante o contexto, porque uma única palavra assobiada pode ter até 30 significados diferentes na linguagem falada”.

E é fácil aprender? “Uma vez que você aprende como botar os dedos na boca e na língua, é só praticar”, diz.

Como a estrutura linguística do assobio canário é silábica e vocálica, dá pra transmitir mensagens em qualquer língua do planeta. Até em prutuguêis do Brazeeel! Imagina um gomero cantando tico-tico no fubá em gomerês —

Desde 2009, essa bunita tradição é considerada Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Unesco. O aprendizado da linguagem assobiada gomera está integrado à educação básica, o que favorece sua preservação para as futuras gerações.

O silbo gomero aparece inclusive em filmes, como The Whistler (La Gomera – A Ilha dos Assobios), thriller do diretor romeno Corneliu Porumboiu:

Olha que cousa maravilhosa. Conversa entre pastores de cabras, com direito a legenda. E crianças aprendendo a assobiar na escola. Pqp, esses gomeros son mucho amour…!

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