O sonho da bolota

(Parte II: O Âmago)

Eu lembro que eram dias frios, e que o chão estava coberto delas. As bolotas de espinhos. Que soltavam gritos bichóvicos de agonia à medida que eu avançava, hesitante e hipnotizada, massacrando-as com minhas galochas de borracha. Solene e mórbida, eu ia pedindo desculpas.

As cúpulas das castanheiras se juntavam num abraço, e a luz filtrada sobre nós me fazia pensar em capelas marcianas, o luto da avó, alfaces hidropônicas.

Não. Sou uma mentirosa.

Porque, naquele longínquo tempo, quando minha cabecinha dura batia nos cotovelo dos adulto, minha avó ainda vivia, eu ainda não tinha visto um marciano (mas isso fica pra outro dia) e não fazia ideia de que um dia faria ideia do que são alfaces hidropônicas.

O sonho da bolota…

Agora, uma verdade: eu-pequena achava que castanha e ouriço-do-mar eram meio que a mesma coisa, do mesmo jeito que Bagu, nosso jabuti, era meio que uma tartaruga, só que de terra.

O fato é que o contraste entre a casca hostil e a maciez amadeirada das bolotas de castanhas foi pra mim uma das primeiras Pequenas Grandes Impressões De Sei Lá Quê Sobre A Vida.

A gente coletava ouriços-de-castanha nesse bosque perto do sítio dos meus avós japoneses em Piedade, interior paulista, e minha mãe preparava uma compota com essas castanhas que meu pai comia de colherada. Sinceramente, eu via mais graça em pavê de chocolate.

***
Ora, ora. Anos depois, aqui estou eu, ainda batendo a minha cabeça dura nos cotovelo dos adulto, falando como se soubesse do que tô falando sobre, quem diria, uma pequena porção de castanhas confeitadas sobre cama de foie gras num boteco barcelonês.

Inesquecível foie gras com castanhas e cogumelos do Quimet & Quimet, em Barcelona: ayyayaye (Susana Bragatto / Folhapress)

A culpa dessa microrreviravolta, já disse na parte I desse artigo, é do Anthony Bourdain. Que eu curto tirar o meu da reta e adoro uma simplificação.

Em seu livro Cozinha Confidencial, que o lançou à fama de chef-roquenroler-arretado, ele recorda uma viagem que fez quando criança à França, com os pais e o irmão.

Além de a trip virar uma école-infantil-da-boemia-criminal pro Bourdainzinho, com cigarriño entre amiguinhos franceses aos domingos e “vin ordinaire” diluído pras crianças, foi aí que ele teve seus primeiros Assombros Com A Comida/Vida.

Primeiro, por meio de uma sopa Vichyssoise a bordo do navio (“fria!”, recorda, pra seu espanto).

Depois, uma ostra. Sugá-la recém-abatida direto da concha diante dos pais, do pescador grosseiro véideguerra e do irmão pequeno, encolhido de asco, era ir contra o mundo, era ser marvado, era ser fodão. Comer aquela gosma meio-viva, meio-sexual, extraterrena era saltar ao desconhecido, ganhar superpoderes, transcender o inominável. “Everything was different now. Everything“. Pronto, eis como nasce um caráter (torrey anos de terapia com essa frase).

Assim, é fácil entender por que o Quimet & Quimet, bodega centenária localizada em um bairro popular de Barcelona, pouco mais que uma portinhola abarrotada de vinhos e produtos de mercearia boiando em bandejas de metal, ganhou o corazón do Bourdain. Ele amava Barcelona e amava esse buteco. Vejamos.

Quimet & Quimet, bodega centenária no bairro de Poble Sec, em Barcelona (Susana Bragatto / Folhapress)

Terminei o artigo anterior dessa coluna falando que o dono do bar era ríspido ou, pelo menos, antipático, comparado com o nosso espírito hospitaleiro brazilêro. Tenho um estranho fascínio por esse tipo de gente. Banquei a submissa-bajuladora: pedi uma recomendação.

E veio a primeira, sem um sorriso, mas, segundo consta, bem harmonizada: um vinho branco fresco com um “montadito” (cousas sobre uma torrada) de anchovas sobre pimiento de piquillo (espécie de pimentão vermelho assado em conserva, onipresente na culinária botequística espanhola) e coroado por uma guindilla (pimenta) curtida no vinagre.

“Montadito” de anchovas e piquillo do Quimet & Quimet (Susana Bragatto / Folhapress)

Quim, o señor supracitado, é pai do Quim, que também nos atende. O jovem é a quinta geração de Quins. Jeez.

São pouco mais de sete da noite de uma quarta. Locais e turistas vão surgindo dos buêro, formando fila e burburinho na entrada. Quim (de Joaquim, Quimet, em catalão) pai e Quim filho me explicam: tenho 45 minutos. Porque há lista de espera, e é necessário rotatividade.

Parto sem pausa pro segundo round: uma “tapa” (porção) de nêsperas (outra memória da minha infância) em calda com queijo de cabra e mais anchovas. Por cima, uma translúcida emulsão de vinagre que é dichorá de alegria. Vem também a famosa “tapa” de foie gras com compota de castanhas, algo de que nunca más me olvidaré.

Nêsperas da minha infância e tomaaaa mais anchovas no Quimet & Quimet, em Barcelona (Susana Bragatto / Folhapress)

Desta vez, peço um tinto e provo o Venta las Vacas 2015, um Ribera del Duero deliciê cujo distribuidor se chama, auspiciosamente, “uvas felices”.

“Quando o bar abriu [em 1914], essa região já era urbanizada”, conta Quim-pai. “Nossos fregueses eram gente do bairro: trabalhadores portuários, pequenas oficinas — todas essas lojas que agora estão fechadas ou são casas pertenciam a pequenos negócios… eram açougueiros, ferreiros, lavadeiras, sastres (alfaiates)…”.

O Quimet & Quimet, no mesmo endereço desde o princípio, seguia a estrutura das vivendas da zona: na parte da frente, o pequeno negócio; na parte de trás, o lar. “Toda a minha família nasceu aqui, e eu cresci nesta casa”, conta.

Quimet & Quimet from the sarjeta (Susana Bragatto / Folhapress)

Segue-se uma “tapa” de carrillada de cerdo ibérico (bochecha de porco) com fios de ovos, pimentão e outras simples maravilhas. A carne é overmacia, puxada no vinagre.

Bourdain, lembra Quim, apareceu no bar pela primeira vez lá pelos idos dos 2000, trazido por um amigo em comum, o chef estrela Michelin catalão Ferran Adrià, até hoje frequentador do local.

“Hoje em dia é normal, está por toda parte, mas naquela época eram uns três ou quatro ‘gatos’ que tinham essa relação roquenrol e aventureira com a comida”, comenta Quim. “Aquela geração de chefs tinha um caráter muito mais humilde”.

“A influência desses personagens foi tremenda, mas não só sobre o Quimet & Quimet, e sim sobre Barcelona como um todo”, diz. “O ambiente hoje em dia mudou muito com o Covid, mas naquela época havia turistas que vinham à cidade para ver a Sagrada Família e turistas que vinham expressamente para comer em Barcelona”.

Aliás, comenta, isso acontecia em toda a Espanha. “As pessoas vinham tanto para provar a nova cozinha quanto a clássica. Esses chefs também tinham de característico jamais desprezar a cozinha de sempre –ao contrário, valorizaram-na muito. Foram inovadores até nisso”.

Como muitas bodegas, o Quimet não tem cozinha, e tudo, preparado diante de nossozóio, sai de latas e vidros em conserva –mas QUE conservas.

Quim, quarta geração familiar à frente do Quimet & Quimet, em Barcelona (Susana Bragatto / Folhapress)

Enquanto meus cotovelos esfriam contra o metal prateado do balcão, diante de mim se desenrola uma ininterrupta coreografia tira&põe de bandejinhas coloridas dentro de uma vitrine de vidro.

Em cada uma, empilhados, curtidos, mergulhados, curados, escabechados ou caramelizados, anchovas do cantábrico, cecina (carpaccio de atum), pulpos recheados, mexilhões do tamanho do dedão do pé do Tostão, pimientos, berberechos, salmões, queijos, azeitonas gordas, bacalhau, nêsperas em calda, favas asturianas, alcachofras, camarões, fios de ovos, ovas, ostras, sigo?, o foie, QUE FOIE É ESSE, MINHA GENTE.

Acepipes dus dioses no Quimet & Quimet, Barcelona (Susana Bragatto / Folhapress)

“Aqui, com o tipo de comida que servimos, que não tem nada a ver com a cozinha que praticavam esses chefs que nos visitavam, sempre nos apoiaram e valorizaram muito”, conta Quim.

E como era o Bourdain no Quimet?

“Muito cordial e simples… mas [essas são pessoas que] buscam mais o conceito: sei lá, quem sabe não falemos de família ou de futebol ou música; mas falamos de comida”.

A essa altura eu tô concentrada numa porção de alcachofras com pasta de pimentão e caviar e outra de pupurri de frutos do mar, incluindo uma muy fálica navaja que tento inutilmente desfalificar pra foto.

Melhor mexilhão em lata da vida desta que vos escreve (Susana Bragatto / Folhapress)

Pergunto ao Quim do que o Bourdain mais gostava no bar. “Le encantaba el pimiento“, dispara, rápido.

“É um contraste, porque o Ferran (Adrià) não gostava de pimentão”, lembra. Mas tanto faz: no fim, “o que importa é a qualidade do produto. Trata-se de buscar a melhor matéria-prima, a elaboração, e luego a combinação pode ser melhor ou pior. Mas, se o produto não é bom, se acabó Hola!“.

E, assim, sem nenhuma palavra mais, Quim-pai me abandona pra se ocupar, com sua seca e eficaz amabilidade, de outros fregueses recém-chegados.

Ah, o charme catalão. Diretos como um jab de direita numa liquidação da Zara. O amor sem tapinha no ombro, mas amor.

E assim vai se encerrando o ato dois da noite Frinder co’s Quim: apaixonar-se.

Primeiro, uma sensação crescente de conforto e familiaridade vai inundando o corazón. O vinho ajuda, claro. Também ao observar o movimento, pouco a pouco o visitante vai se integrando, sentindo-se mais próximo dos outros comensais. À minha esquerda, há um cara que eu juro que é famoso. Ou não. A gente se entreolha e sorri, confraternização de bar é assim em qualquer canto do mundis. Nunca vou saber quem é, mas, de verdade, não me interessa.

Só há tempo para um epílogo, que meu tempo-no-bar já acaba –e tinha que incluir mais castanhas.

De saída, um casal de idosos passa por mim gritando ao Quim-pai: “que maravilha de castanhas com vinagre! O que que é aquilo! Adeu, adeu!“. Ato seguido, lá tô eu comendo castanhas com vinagre. E queijos de proximidad sem conservantes acompanhados de uma gelatina de vinho moscatel. Eu queria outra taça de tinto pra acompanhar, mas o Quim-pai é taxante: nem pensar. Se quer algo com o doce, vai tomar o que eu der.

Sim, senhor. Cacilda. Obediente, provo uma sidra moderadamente ácida e nem de longe borbulejante e genérica como as Xereser de minha juventud (me desculpem os expertos).

Queijos com gelatina de moscatel do Quimet & Quimet, Barcelona (Susana Bragatto / Folhapress)
Sidra artesanal no Quimet & Quimet, Barcelona (Susana Bragatto / Folhapress)

***

“Nunca foi minha intenção ser um repórter, um crítico, um porta-voz”, declarou Bourdain uma vez. “Sou um contador de histórias. Eu vou pros lugares, eu volto. Eu conto o que esses lugares me fizeram sentir”.

Deu a minha hora. Já vou, já vou. Só me deixam terminar a sobremesa rapidim, mas ó, déiz minutiño y tchau tchau tchauuuu.

Semi-enxotada, de pança cheia e com uns vin na cabeça, sento na sarjeta do outro lado da rua com meu amigo, que chegou no meio da velada pra me ajudar ca comilanzza. Enquanto fumo um cigarrinho roubado (parei, mas hoje não), contemplo o burburinho incessante diante daquela portinha de moldura vermelha que me devolveu as castanhas da minha infância.

Bourdain, Bourdain. Tô contigo.

 

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