O pato, o palácio e a Padilha

Quando eu vim pra Espanha, anos atrás, pairava sobre minha cabeça um bololô de fantasias. Imaginava ruas coalhadas de laranjeiras e touradas, ciganas, paellas e personagens do Almodóvar gritando “olé” e fazendo clicclic com sapatos de flamenco na calçada (me deixem com mi imaginación, ostiii).

Hoje em dia, meus estereótipos se diversificaram ou, pelo menos, regionalizaram-se. Agora sei que o catalão tem fama de pão-duro, que os galegos são considerados meio tontos e arredios, que os madrilenhos se acham o centro do universo e os andaluzes………

… Bom. Pelo menos a parte das laranjeiras é verdade.

Recentemente, num arroubo mochileiro pós-pandemia, visitei Sevilha, coração da terra andaluza. Foi minha primeira vez no sul espanhol, uma das zonas mais pobres e também mais brilhantemente ricas em cultura e história do país.

Peguei fila pra entrar no famoso palácio de Alcázar, epítome da salada histórica mediterrânea ao longo do último milênio.

Esse impressionante complexo de edifícios e jardins apresenta uma fusão lôka de mil estilos, consequência de sua sucessiva dominação por diferentes povos-y-tendências: islâmico (da época de sua fundação, na Alta Idade Média), mudéjar (um estilo transicional entre muçulmano e cristão), gótico-barroco-renascentista-brutalista-etc.

Nesse lugar único y portentoso, gravaram alguma temporada do Game of Thrones (ambientaram aí o reino de Dorne, na quinta temporada) e cenas do mítico Lawrence da Arábia (1962).

Cena de Game of Thrones ambientada no palácio de Alcázar, em Sevilha (Reprodução)

Em Sevilha, dei um pulo também no Archivo de las Índias, onde se guarda um dos dois originais do Tratado de Tordesilhas –aquele em que portuguischis e españholis passam a régua no mapa múndi então conhecido e dizem, tu fica com a esquerda, eu com a direita (o outro original está na Torre do Tombo, em Lisboa).

Eu queria ter virado notícia como a brazilêra que invadiu o Archivo e devorou o Tratado a dentadas (egofantasias) enquanto aproveita pra gritar ForaBolfffso (imaginem os papeizinhos voando qual paçoca Amor, que legauu), mas infelizmente tal docu se encontrava no sótão quando eu fui, guardadinho para ser preparado para uma exposição, junto com outros preciosos documentos.

Pena, gente. Fica pra próxima, tá.

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O palácio de Alcázar, erguido durante a Alta Idade Média e depois reapropriado e recauchutado em 34579 estilos umas 2480798 vezes ao longo da história, é a principal atração turística de uma cidade que, depois de ser um longevo centro de poder e disputas políticas da Península, vive hoje em dia do turismo.

Lindo. Imponente. Interessante. E, ao mesmo tempo —

Vou dizer. Nas ruas de Sevilha, não vi toureiro, não vi a cigana de Bizet (Carmen, a ópera, é ambientada na cidade). É tudo lindo e cheio de passados monumentais? É. A comida é boa e farta, as “tapas” (porçõezinhas de comidiñas) são fenomenais? Sim. Um dia conto mais. A Giralta, a catedral, o castelo….? Sí, sí. Na famosa Plaza de España, criada para a Exposição Iberoamericana de 1929, gravaram Star Wars e mais Lawrence da Arábia (1962)? Yea. É uma cidade magaviosa. Mas.

Talvez seja complexo de colonizada. Ou mais ou menos colonizada, que ao mesmo tempo eu sou descendente de italiano e japonês, ou seja, cheguei na festa tupiniquim muito tarde, e todos os meus antepassados se ferraram pra fazer a vida no Brazel, como outros muitos etc.

Todo aquele luxo, toda aquela pompa régia. Quem pagou? O pato e o palácio?

Lembro de uma conversa com um senhor português durante uma road trip em Portugal. Pra meu choque, ele afirmou que seu país tava economicamente na m… porque “deixou” o Brasil e suas outras colônias virarem independentes.

Pois é, ora poix, nada fixe.

Em lugar de argumentar, também lembro que optei por guardar silêncio e balançar meu pezinho na borda da piscina do hotel, vendo como fazia círculos na água.

Por isso, me emocionei, mas não tanto quanto imaginava, diante da visão do ostensivo-magnífico palácio de Alcázar, até hoje utilizado pela realeza espanhola como hotel privê em suas visitas à cidade (é o palácio real em atividade mais antigo do mundo etc).

Pátio das Donzelas no palácio de Alcázar, Sevilha (Susana Bragatto / Folhapress)

Balançou um pouco mais meu corazón, por exemplo, a antiguidade das muralhas defensoras remanescentes e seus líquens e rodapés pré-ibéricos.

Ou Itálica, sítio arqueológico perto de Sevilha onde o imperador Trajano nasceu e mosaicos romanos sobrevivem entre oliveiras. Tá certo que tal assentamento, o primeiro fundado pelos romanos na Hispania, era basicamente um super resort de gente bacana do Império Romano, feito, again, à base de suor escravo e subjugação de muuuchos povos… mas que chata sou, não?

Minto. Dentro de Alcázar, um lugar em particular me chamou mucho a atenção: a cisterna (aljibe) subterrânea do palácio, onde, diz a lenda, banhava-se a María de Padilla, amante do rey Don Pedro I de Castilla (aka O Cruel ou O Justiceiro, dependendo do retratista).

Jardins do palácio de Alcázar, Sevilha (Susana Bragatto / Folhapress)

Sim, essa Maria Padilha. Fonte de inspiração para uma das pombagiras mais famosas dos cultos afrobrasileiros, e aqui na Espanha também retratada como mulher livre e ousada para seu tempo. Como a Carmen, a hipnótica cigana enroladora de cigarros da ópera sevilhana de Bizet (que, por sua vez, curiosidade, nunca esteve em Sevilha).

Conhecido como “los baños de doña María de Padilla”, esse espelho de água criado na época almohade (lá pelo século 12) reflete as abóbadas góticas que o abrigam, construídas entre os séculos 12 e 13, gerando um olho mágico de simetrias onde, sim, adoraríamos imaginar a Padilha lavando o sovaco, sob a mirada apaixonada de seu Pedruco.

Banhos de Maria Padilha no palácio de Alcázar, Sevilha (Susana Bragatto / Folhapress)

Pena que provavelmente é só uma fantasia. Ou não. Na época de Pedro e Padilha, o mundo cristão não era muito fã de banho, mas é verdade que Sevilha já possuía então muitos banhos coletivos ou hammams –ao lado dos pátios interiores e fontes de água, um dos grandes legados da influência árabe na Península.

O pátio de doña María é da mesma época. O aspecto atual guarda pitadas do terremoto de 1755 (o mesmo que derrubou Lisboa) e afrescos renascentistas nas paredes laterais, atualmente em recuperação. Belíssima pedida para um selfie dentro de um majestowwwso castelo castellano.

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Na saída, detrás de uns explodentes lírios brancos no jardim, escuto um jardineiro muito idoso comentando com uma turista que essas flores eram utilizadas como psicoativas, ao que a senhora abanava a cabeça, não sei se entendendo nada ou tudo demais. Olhei à minha volta e voltei atrás. Minha paixão pelo castelo coronado de lendas pintou no epílogo….